Esta é uma conversa a três vozes, a de quem entrevista e a de um casal de viajantes e cultores de uma alimentação consciente e equilibrada, a Daniela Ricardo e o Luís Baião. Juntos dão a conhecer o mundo a quem com eles quer viajar. Ambos, com a sua Zen Family, convidam-nos a retiros. Momentos para refletirmos que mundo queremos e como podemos melhorá-lo através de escolhas conscientes.
Daniela publicou o seu terceiro livro “Sabores do Viajante”, um manual que reúne muitas viagens mundo fora deste casal. Um livro que é a dois tempos, um guia para o viajante e um reconciliador com a cozinha feita com amor.
É sobre estas viagens, onde cabe o Butão, Marrocos, a Argentina, Portugal, entre outros destinos que conversamos com Daniela e Luís. Não esquecemos o prémio internacional que a autora conquistou com o seu título anterior, “Cozinhar com Amor”. E a “surpresa” de Daniela quando soube que estava designada para uma das categorias do galardão. Afinal de contas, como nos diz, não escreve para prémios.
Daniela, “Sabores do Viajante” é o seu terceiro livro. Regressa, de novo, a dois temas que lhe são grátis, as viagens e a cozinha consciente. O que vamos encontrar neste seu novo título?
Daniela Ricardo - Nos três livros que já publiquei [anteriormente, “Viagens da Comida Saudável” e “Cozinha com Amor”] há uma linha condutora, o facto de trazermos a alimentação para o campo do consciente e do natural e levar quem nos acompanha a isso. Neste “Sabores do Viajante” levo esta dimensão da viagem mais a fundo, com dicas e informações sobre o país. No meu primeiro livro, apesar de estar presente a viagem, o foco estava na gastronomia. Agora, também deixo o desafio. Ou seja, todos podemos ser chefes, seguir as receitas e nos deixarmos envolver. É mesmo simples cozinhar. Já no meu segundo livro fazia esse convite, o de irem para a cozinha e cozinharem com amor.
Luís Baião - Também tirei o curso de macrobiótica há 16 anos. Tenho as noções todas, mas a Daniela é a grande alquimista dentro das cozinhas. Agora, volto com a Daniela aos lugares onde já estive. Mas sei que a Daniela vai intervir com a sua cozinha e a descoberta de novas culinárias, o que tornar a experiência diferente.
É o Luís que prepara os roteiros de viagem?
LB - Tenho rotas que faço há 25 anos, o que naturalmente gera uma certa engrenagem. A Daniela entra com o toque feminino, a doçura. Mas também começámos a ter outras rotas não exploradas com percursos montados à nossa imagem. Por exemplo, o Japão, antes trabalhava com guias locais, hoje a Daniela desempenha esse papel.
Depois de tantas viagens em redor do mundo ainda existe margem para a surpresa?
LB - Ainda existe.
DR – Sim, claro. Não obstante há uma preparação anterior à viagem. Testamos sempre antes de levarmos os participantes na viagem a experienciarem. Temos de comprovar se a dica que nos deram sobre, por exemplo, um restaurante é boa. Se a comida é boa e carrega uma boa energia.
LB – Basta, por exemplo, ter mudado a equipa e muda toda a energia do espaço.
Temos de comprovar se a dica que nos deram sobre, por exemplo, um restaurante é boa. Se a comida é boa e carrega uma boa energia.
Esta questão da energia que emana no alimento é importante para vós.
LB - Tudo se sente na comida. Por exemplo, em que condições estão as pessoas a trabalhar. Se há exploração das pessoas, rispidez, uma equipa desestruturada, nem sequer vamos ao restaurante. Não levamos os nossos viajantes a nenhum local onde não tenhamos entrado antes na cozinha. Algo interessante no Oriente é que, genericamente, os locais cozinham com amor, porque não têm a questão do ego. No Oriente não há segredo. Sabem que para lá da receita que nos podem dar, há a energia de própria pessoa que também é um ingrediente. Ficam muito orgulhosos quando alguém quer aprender. Faz-me lembrar as nossas avós. E ainda abrem a porta das suas casas para, de facto, conhecermos as suas avós.
DR - A nossa energia passa para a comida. O mesmo prato, feito por duas pessoas diferentes é diferente.
Daniela, como foi receber um prémio internacional com o seu anterior livro, o Gourmand Cookbook Award?
DR - Foi uma completa surpresa. Não sabia que havia um prémio destes para livros de cozinha. Nunca escrevi um livro com esse sentido, o de ganhar um prémio. Quando a editora me disse que “Cozinhar com Amor” estava indicado para uma categoria do prémio, não liguei. Então, a editora disse-me que eram prémios mundiais. E fez-se luz [risos]. É indescritível, porque como nunca pensaste nisso a sensação ainda é melhor. Fomos à Ásia, participámos na gala. São quatro dias de festa, muito informais. E todos falavam de comida. Isto com 500 pessoas presentes.
LB – Ali, há todo um espetáculo em torno da comida que é fantástico.
Tudo se sente na comida. Por exemplo, em que condições estão as pessoas a trabalhar. Se há exploração das pessoas, rispidez, uma equipa desestruturada, nem sequer vamos ao restaurante.
No seu mais recente livro encontramos os “mandamentos” para nos tornarmos mestres na cozinha. O primeiro diz-nos: “Cozinhar é uma forma de amar”? Andamos a amar pouco através da nossa cozinha?
DR - Andamos a amar pouco e amamo-nos pouco. Cozinhar é uma forma de amor próprio. Ao preparamos a melhor refeição possível para nós, essa é uma forma de nos amarmos. Quando temos bebés é assim, quando começamos a namorar, também, depois parece perder-se. E há que reencontrar esse caminho.
Mas a própria sociedade e a indústria alimentar parece não nos convida a esse amor…
DR - Temos de nos informar, saber escolher entre toda a informação a que estamos expostos. Tenho um princípio: Todos os alimentos que precisam de publicidade, por norma, não os compro. Ninguém faz publicidade aos brócolos. Comida que é mesmo comida, não tem publicidade.
Daniela, os pratos que nos apresenta são esteticamente muito agradáveis e diversos nos ingredientes. São de fácil produção em Portugal, com ingredientes que encontramos nos nossos mercados?
DR - A cozinha tem de ser simples. Para termos uma alimentação equilibrada não precisamos de nos preocupar constantemente com os ómegas, vitaminas, gorduras, precisamos, sim, de incorporar macronutrientes hidratos de carbono, fibras e vitaminas e uma parte proteica que pode ser animal e vegetal. Se formos variando estes componentes no prato, temos tudo o que precisamos, sem recorrer a suplementos ou ao produto x ou y porque está vitaminado.
Ou seja, muita informação nem sempre nos torna bem informados?
LB - A ideia é essa, baralhar, para deixar as pessoas confusas. Se nos focarmos no passado, vemos o que é importante. A partir dai é a variedade, a qualidade. Andamos pelo interior do país, olhamos para as populações e vemos que, genericamente, quando não há abusos, têm uma saúde incrível.
Fazem este vosso trabalho de consciencialização junto das crianças?
LB - Também elas estão muito afastadas da natureza. Quando tens crianças a dizerem que as ervilhas ou o bife de frango chega do supermercado é assustador. Quando se lhes mostra o animal, dizem-nos, “não pode ser”. É uma realidade que temos notado, principalmente, nas grandes cidades. No interior menos.
DR – Presentemente, em algumas escolas, já se faz o trabalho de ter hortas. Aí, as crianças percebem que, por exemplo, a cebola vem da terra.
Se nos focarmos no passado, vemos o que é importante. A partir dai é a variedade, a qualidade. Andamos pelo interior do país, olhamos para as populações e vemos que, genericamente, quando não há abusos, têm uma saúde incrível.
O que é para vós comer com consciência?
DR - Já fui vegetariana e o meu prato era muito incompleto. Este precisa do combustível, hidratos de carbono complexos. Não é a mesma coisa comer arroz branco e integral. O segundo tem fibra e a absorção pelo organismo é mais lenta. Logo, quantos mais cereais inteiros comermos, melhor. Depois, para a nossa máquina estar oleada, precisamos de fibras e vitaminas, as primeiras para limpar o trato digestivo e a segundas, vamos buscar às frutas e vegetais. Mas cuidado, a fruta tem frutose. Logo, não vamos comer em excesso.
Depois temos a proteína que constrói os tijolos do nosso corpo. Mas a quantidade é pequena. A Organização Mundial da Saúde diz-nos que a quantidade diária é a equivalente a uma peça de dominó. Aqui, uns escolhem a proteína vegetal, outros a animal. Devemos escolher a vegetal, o seitan, o tofu, o tempeh. Se pensarmos na nossa constituição dentária, só temos quatro caninos, um sétimo da dentição. Logo deve ser essa a proporção de proteína animal face ao total de alimentos que ingerimos.
A Daniela não tem guerras alimentares declaradas. Acha que no discurso atual há muito radicalismo?
DR - Dou consultas de orientação alimentar com clientes que comem carne. O que digo é que a reduzam na sua dieta. Porque a quantidade que comem é excessiva.
LB - Acima de tudo, o que nós trabalhamos é a qualidade. Comam menos, mas com qualidade, não é, certamente, na carne de uma galinha que cresce em duas semanas que vamos encontrar a qualidade.
Quando demos a volta a Portugal, alertando para a alimentação consciente junto de diversas famílias [o SAPO Lifestyle acompanhou esta viagem], focámo-nos na qualidade, face à quantidade. Isso dá uma perspetiva muito interessante. Já depois disso, a Daniela foi convidada a participar com a sua cozinha num evento da Confraria de Chaves, que tem um trabalho muito focado nos produtos à base de carne. Isso dá-nos uma ideia de que as coisas estão a mudar.
Essa viagem pelo melhor da produção nacional foi também um reabilitar do orgulho dos territórios, certo?
DR - Foi muito interessante porque muitas pessoas não sabiam da existência de lugares biológicos perto delas. E quando não os havia, tinham os vizinhos com as suas hortas.
LB - Sim, foi incrível ver como as pessoas têm orgulho nas suas terras. Chegavam pessoas ao pé de nós com um garrafão de cinco litros de oliveiras com 500 anos. Tudo está neste livro.
Há uns anos fizemos uma outra viagem na “Zeninha” [a carrinha que transporta o casal em muitas viagens], uma volta à Europa. O desafio foi provar que se conseguia fazer uma alimentação biológica durante um mês dentro de uma carrinha. E foi possível. Na vida tudo se faz. Em Portugal também. Os produtos biológicos são muito mais caros? Se for ao ´mercadinho` da aldeia, diretamente ao produtor, não os vai encontrar mais caros. Elimina o intermediário e o produtor recebe o preço justo, valorizamos o seu trabalho.
Foquemo-nos, então, nas viagens. O novo livro está repleto de caminhos. Quer destacar-nos alguns?
DR - Por exemplo, o Butão. O nosso guia nunca tinha recebido um abraço de um estrangeiro. Lá, faz-se uma grande vénia. Nós abraçamos de maneira diferente. Assim se criam laços, porque há uma ligação natural, uma entrega da nossa parte.
LB – Ou estar no deserto marroquino e sermos convidados para um almoço berbere. No fim, quando vamos pagar, a pessoa diz-nos, “não tu és o Luís, eu era o miúdo que tu ajudaste há 20 anos com os livros para a escola”. É emocionante.
A generosidade é de uma dimensão incrível e comove-nos. Quando há uma barreira e a pessoa abre-se, faz-nos continuar a querer ir aos locais. Há um lado de criança da pessoa que também vem ao de cima. No Ocidente andamos muitos amargurados com tudo. Quando chegamos ao Oriente e lhes contamos os nossos problemas, ganhamos perspetiva e tudo se torna ridículo. Há uns dias, estávamos em Bali, na Indonésia, e um amigo local levou-nos à sua casa. A estrutura de casa tem um pátio central rodeado pelas habitações. Ali vivem 29 pessoas. Dizíamos-lhe que na aldeia onde vivemos, em Mação, somos 27 pessoa e, entre estas, nós somos os mais novos. Ele ria-se. Pareceu-lhe caricato numa aldeia só existirem 27 pessoas. E ria-se com a espontaneidade de uma criança.
No Butão, o nosso guia nunca tinha recebido um abraço de um estrangeiro. Lá, faz-se uma grande vénia. Nós abraçamos de maneira diferente. Assim se criam laços, porque há uma ligação natural, uma entrega da nossa parte.
Daniela, já percebi que o Butão a fascina…
DR - Sim. O Butão fascina-me pela simplicidade e por tudo o que comemos ser 100% biológico. Em Portugal, notamos diferença quando comemos biológico. Agora, lá chegados, notamos diferença entre este nosso biológico e o butanês.
Fiquei surpreendida com essa diferença. Mas há um outro país que me surpreendeu, a Argentina, porque estamos à espera de só encontrar carne. Mas há muita variedade, muito cozinha de fusão, vegetarianismo. Tivemos na Terra do Fogo, junto ao estreito de Magalhães e mesmo aí haviam opções à carne.
LB – Com isto percebemos que o que sai de cada país é uma espécie de produto uniformizado. Da Argentina é a carne, do Japão, o Sushi, de Portugal o bacalhau. Mas todos somos muito mais do que isso. E percebemo-lo quando viajamos.
O Butão abriu-se recentemente ao exterior. Notaram ameaças a esse modo de vida tão próximo do natural?
DR - A única coisa em que percebo diferença é que há mais carros. Não obstante, procuram que todos os carros sejam elétricos. Aliás, eles são um país exportador de energia para a Índia. Agora até têm hora de ponta, mas é o equivalente a uma rua lisboeta à noite [risos].
LB - É um país muito ao contrário. Por exemplo, os turistas só entram depois de se construírem hotéis e mesmo assim o número é controlado. O Nepal gaba-se de ter a montanha mais alta do mundo escalada pelo homem. No Butão, têm a segunda montanha mais alta do mundo não escalada pelo homem. E esta montanha tem apenas menos 15 metros de que o Monte Everest. Têm, inclusivamente, um Ministério da Felicidade.
DR - Cinquenta porcento do país é reserva natural. Há outro aspeto de que gosto. Não há subsídios, mas há apoios. Se uma família enfrenta dificuldades, o rei dá-lhes uma porção de terra e aprendem agricultura. Os miúdos aos sete anos aprendem agricultura na escola.
Nestas vossas viagens algum local desagradou-vos por afastamento às suas bases culturais, vivências tradicionais?
DR - Sim, mas não está neste livro. Chocou-me o Vietname. A primeira fez que lá fui estava à espera de encontrar uma imagem que não corresponde à realidade, os cenários idílicos com os arrozais, o arroz integral. Saigão [atualmente Ho Chi Minh] bem pode ser uma capital europeia.
LB - O vietnamita procura tirar o máximo do turista. O país entrou na moda e hoje os voos charters com destino ao Vietname saem a toda a hora.
Daniela, qual é a melhor palavra para definir este seu novo livro?
DR – Talvez Paixão. Estou apaixonada pelo livro, pois conseguimos o compromisso entre livro de viagens e de cozinha. Depois tem tido uma resposta incrível. As pessoas reconhecem credibilidade no que nele se escreve. Não visitamos os países para o Instagram. Depois, há toda a fundamentação para os alimentos e a componente clínica.
LB - Também gostaria de desafiar as pessoas a fazerem retiros na “Casa dos Sonhos”, que é uma casa onde os meus pais habitam. Também, eles são agricultores biológicos. O meu pai com 77 anos foi este ano ao Nepal. Faz uma alimentação equilibrada, com exercício físico. Em suma, venham conviver uns dias connosco, cozinhar, passear, partilhar, conversar.
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