Escrevo esta crónica da Escócia para onde venho, pelo menos uma vez, todos os anos. A primeira razão por que venho com tanta frequência é porque tenho cá família. A segunda é porque gosto muito de cá estar. A Escócia é como a Nova Zelândia. Lava-nos a vista com uma paisagem impoluta feita de água, árvores e carneiros, sem cimento, nem plástico, nem obras, nem lixo, nem cemitérios de automóveis e de eletrodomésticos.
É campo a sério como era há 500 anos, com muros que já testemunharam as batalhas que por lá decorreram há séculos e em que a arquitetura das casas não anda muito longe do que sempre foi. Maio é talvez o mês em que a natureza está no seu apogeu, o campo em várias tonalidades de verde rasgado pelas manchas amarelas da colza e até do tojo, as bolbosas plantadas em novembro, todas em flor.
O percurso de Edimburgo até St. Andrews, à saída do avião, é-me logo suficiente para esquecer as agruras das 12 horas de viajem necessárias para chegar aqui, com mudança de avião nesse fosso humano indescritível que é o Terminal 5 de Heathrow, em Londres, capital de Inglaterra. Hoje em dia, com o reforço das ligações aéreas, algumas delas diretas e mais económicas, é mais fácil mas, há uns anos, não o era.
Na Escócia, os invernos são tão rigorosos em termos de frio, de chuva e de neve, com uma escuridão instalada a partir das quatro da tarde, que o ténue despontar da primavera. Umas meras temperaturas máximas de 11º C são suficientes para provocar o delírio das plantas que não tiveram mais remédio senão hibernar durante os meses de dezembro, janeiro e fevereiro. Invejo a pujança das túlipas, dos narcisos, dos rododendros, estes em maciços brutais de flores cor de rosa, que o nosso inverno moderado não consegue estimular.
As casas, por muito modestas que sejam, têm quase todas um front garden, um jardim frontal, geralmente imaculado e irrepreensível, onde os proprietários competem uns com os outros pelo espaço mais colorido e mais bem cuidado. De um modo geral, as habitações dos que residem fora dos maiores agregados populacionais nunca têm mais de dois andares, o que se reflete na paisagem, bucólica e serena.
A jardinagem é como uma vingança cultural da rigidez do clima, representando também o triunfo da bonança que segue a tempestade. O melhor acesso é por Edimburgo onde, após uma visita de dois dias à cidade, é obrigatório alugar um carro e avançar em direcção às Highlands, as terras altas da costa oeste, passando pelos trossachs e pelos vários lochs, assentando praça para meditação no fabuloso Glen Coe.
As inúmeras paisagens que pode (re)descobrir de carro
O carro é essencial porque é um verdadeiro prazer descobrir o campo, com os seus rebanhos de carneiros comandados pelos geniais cães da reça Border Collie e o verde sempre diferente e interminável. A água abunda sob a forma de lagos e rios e, para além dos famosos castelos, há muito jardim para visitar. Apesar do rigor do clima, a Escócia é o paraíso das actividades ao ar livre, nas quais o golfe e o hiking predominam.
Há uma data de pontos de interesse para explorar, bem mais inocentes, como, por exemplo, visitar jardins. Destes, logo à chegada, o Jardim Botânico de Edimburgo, não desmerece os seus congéneres ingleses. E o mesmo sucede com o Jardim Botânico de Glásgua, mais conhecida em Portugal pela sua designação em inglês, Glasgow, uma das cidades a incluir no seu roteiro numa visita à Escócia.
Sugiro também famosíssimos Inverewe Gardens, na costa oeste, sobre os quais já escrevi em tempos na edição impressa da revista Jardins, com a qual colaboro regularmente. Para quem tenha a coragem de desafiar o desconforto da condução à esquerda, atravessar a Escócia é uma experiência que nos remete para uma tranquilidade de espírito e uma sensação de bem estar com nós mesmos.
A tentação demoníaca desta viagem
Julgo que tem a ver com uma ausência de agressão visual e auditiva e com um regresso às coisas essenciais. Não há compras a fazer, a não ser a tentação demoníaca de uma visita a um garden center, o de Cupar, por exemplo, é um dos que eu recomendo, já que, nem a moda nem os gadgets são o forte deste recanto da Europa, o que não faz diferença nenhuma a quem não faça disso objetivo e interesse.
E, mesmo a esses, não lhes fazia mal nenhum vir aqui, parar para olhar e pensar, e concluir o quão longe o progresso da humanidade nos roubou os prazeres mais simples. Apesar de já ter percorrido a Escócia várias vezes, St. Andrews permanece o meu poiso favorito, onde, por sorte, tenho uma casa de família. É uma cidadezinha medieval, em que muitas das casas foram construídas com as pedras da catedral do séc. XII há muito em ruínas, onde os únicos telemóveis e computadores estão nas mãos dos estudantes da universidade e onde a população, maioritariamente constituída por reformados, se dedica ao golfe e à jardinagem.
Os jardins de St. Andrews estão num brinco e são todos cuidados pelos respetivos proprietários, que vivem com os olhos postos no mês de agosto, altura em que estão abertos ao público, a troco de uma libra, que reverte mais tarde para um fundo de beneficência. Enfim, a Escócia é um retiro do consumo compulsivo e do stresse citadino e, para quem não goste de muito calor e de praia, é o destino ideal para o verão.
Texto: Vera Nobre da Costa
Comentários