Mãos laboriosas revelam-nos a experiência de muitas horas em torno de uma grinalda de flores. São pétalas de um azul forte, recortadas em papel, dobradas com saber e alinhavadas numa corda. Juntam-se a tantas outras. Um saber revelado por Henriqueta, 67 anos, vividos sempre na sua vila raiana de Campo Maior, no Norte alentejano.
Esta campomaiorense entretém o tempo com as suas flores de papel, desafiando o passar das horas na soleira da porta. O estio ainda vem longe. Faz frio nas sombras do casco antigo da localidade.
Maria Henriqueta espicaça-nos a vontade para uma visita às “Festas do Povo” com uma mão cheia de postais. Volvemos a 1986, o cenário está montado. Sobre a multidão abre-se um teto de papoilas, malmequeres, rosas, margaridas, um sem fim floral.
O que vemos com premeio de 20 anos é uma manifestação de gosto genuinamente popular; um cenário garrido, que floresce numa noite. Findas as Festas Campo Maior retoma a paz, um modo de estar muito próprio, português, mas com uma mão a convidar a vizinha Espanha.
Por agora somos devolvidos ao presente, ao meio caminho até ao castelo. Percebemos que a subida até à fortaleza ainda nos levará tempo.
Cheira a café
Subimos ao castelo desde o Jardim Municipal, sala de entrada de Campo Maior, na parte nova da vila. As esplanadas enchem-se logo às primeiras horas da manhã, há um nervo de terra grande, de núcleo de atração. Percebe-se o dinamismo do concelho. Um crescimento ao qual não é alheio o desenvolvimento que a indústria da torrefação do café trouxe à região. Incontornável quando se fala em Campo Maior é a figura do Comendador Rui Nabeiro. A população reconhece-o. O fundador dos Cafés Delta tem estátua erigida frente ao Jardim.
Com uso do eufemismo quase se pode dizer que Campo Maior cheira a café. Vão longe os tempos do contrabando dos grãos moídos, quando o produto dava o pulo de fronteira, no lombo de burros. Mais tarde chegaria a vez das sortidas em bicicletas. Hoje, a região conta com a maior zona industrial de torrefação deste grão da Península Ibérica. Delta, Cafés cubano (do grupo Nabeiro), Cafés Silveira, Cafés Camponesa, Cafés Cubana, são apenas algumas das referências que fazem a geografia do café campomaiorense. Contas feitas são perto de duas mil pessoas empregues nesta indústria, numa população total de aproximadamente oito mil habitantes.
As alturas na proximidade do castelo reduzem a malha de ruas que se entrelaça abaixo da fortificação a um chão de telhados, espevitados pelas torres das igrejas Matriz e de São João Batista. Paramos para contemplar, mas também para recuperar forças. Percebem-se os contornos da muralha num abraço à vila antiga, culminando num conjunto de baluartes apontando quadrantes. O antigo castelo marcou o ponto de partida para o crescimento da localidade. Campo Maior espraiou-se na planície, abriu novas avenidas muito para além do núcleo original, artérias como a Calouste Gulbenkian, para Norte.
Transpomos a cerca urbana da vila primitiva. Estamos dentro do castelo. O silêncio do lugar é espicaçado, a espaços, pela toada de uma cigarra; pelo vento brando intrometendo-se numa seteira.
O castelo de Campo Maior conta uma história de tragédia, de uma madrugada de forte trovoada que ditou o destino da fortaleza e da própria vila. Um raio atingiu o paiol situado na torre grande. Lá dentro milhares de arrobas de pólvora e munições explodem. Chovem pedras sobre a localidade. Em menos de nada Campo Maior vê-se reduzida a escombros e a mortos.
Podia ter desaparecido ai a vila. Mas a sua importância estratégica ditou-lhe a continuidade. D. João V determinou a reconstrução do castelo, compondo-o como cenário medieval, o mesmo que vemos hoje, a necessitar de uma intervenção séria.
Para lá de Campo Maior
O horizonte abre-se, céu e terra fazem o cenário. A planície adquire os tons da estação. Há um verde intenso na vegetação. Tudo é ondulação ao vento, acolhendo sobreiros, azinheiras e oliveiras, muitas oliveiras, não fosse a olivicultura uma das atividades mais prósperas do concelho. De Campo Maior sai boa azeitona, como a “Azeiteira” que vai à mesa e que, contrariando o nome, é a que dá menos azeite. Para o nobre óleo serve a azeitona “Carrasquenha”.
Longe, a Sul, lê-se o perfil alvo de Elvas. Para Norte, a planície eleva-se e toma ares de montanha. Ali está a Serra de São Mamede, contorno cinza, onde se encavalita, num extremo, a sede de distrito, Portalegre. Para poente espraiam-se os campos ao encontro de Espanha, mantendo fisionomia idêntica do outro lado da fronteira. O país vizinho está muito próximo ditando amores e ódios históricos.
Campo Maior foi de Castela, depois de ter sido romana e moura. Só em 1297, pelo Tratado de Alcanizes, assinado por D. Fernando, rei de Leão e Castela e pelo português D. Dinis, a localidade passa a integrar Portugal, embora com o coração continuasse a bater pelo país vizinho. Isso mesmo demonstrou a crise de 1383-85 quando Campo Maior toma a parte do rei de Castela. Só a intervenção dura de D. João I irá sanar a situação.
Parte da paisagem urbana de Campo Maior é ditada pelas guerras com Castela nos séculos XVII e XVIII. Constrói-se, por essa altura, uma nova cintura de muralhas, cercando a vila que extravasara as originais.
Atualmente a invasão de Espanha é outra, bem recebida, sentando-se à mesa. Atravessa-se a fronteira de Castela para estas bandas com o fito da cozinha local. Os nossos vizinhos ibéricos adoram o Bacalhau Dourado, os nacos de Porco Alentejano, que se confecionam com preceito deste lado da fronteira.
Ouguela
De Campo Maior rumamos a Ouguela, um pulo com pouco mais de dez quilómetros. A paisagem que avistáramos da altura ganha pormenor. Lá estão os montes, a alvura nas paredes, o casario rasteiro que casa na perfeição com a orografia. Percebe-se o abandono. Há telhados tombados, portas e janelas desertas, muito silêncio. Este interior não é exceção à desertificação humana. Não obstante vamos vendo marcas do labor humano: os campos de cereais; os vinhedos, o sobreiro e a azinheira, o langor dos rebanhos de ovelhas, a preguiça espojada das varas de porco alentejano, o rumo indolente do gado. Há azeitona, vinho, cortiça, bolota, queijos, enchidos, há os couros, há boa carne.
Domina o olival alinhando em corredores bem definidos de oliveiras. Assim impõe a colheita, hoje em dia mecanizada, embora a mão humana não esteja dispensada. «Falta mão de obra nacional, obrigando a entregar a tarefa a força braçal estrangeira», conta-nos um olivicultor local.
Ouguela surge sem timidez, no alto de um morro mais atrevido entre o rio Xévora e a ribeira de Abrilongo. Impõe-se o castelo, muralhas de granito e xisto chamando junto a si a alvura de umas quantas ruas. Ouguela fez parte da mesma linha defensiva que integra os castelos de Juromenha, Elvas e Campo Maior. Terá sido um castro pré-romano, serviu os romanos, os visigodos, os mouros, que a terão fortificado. A terra que foi de Castela tornou-se, pelo tratado de Alcanizes, pertença da coroa portuguesa.
Em Ouguela, mais uma vez, o drama da desertificação humana. A localidade não conta mais de 80 habitantes, a maioria de idade avançada. A escola, empoleirada no monte, miradouro sobre a planície a Norte, é hoje um centro dia. Foram-se as crianças, os professores, os projetos que incluíram páginas na Internet, expressão de apoio e amor à localidade.
Ouguela vive ao ritmo da idade avançada. Intramuros, umas quantas habitações, entre elas a antiga Casa do Governador e, ao lado, o velho quartel. A Igreja de Nossa Senhora da Graça lança o corpo dentro da muralha, embora com a entrada voltada para o exterior. Abordamos um dos locais, um senhor a quem nos esquecemos de perguntar o nome. Acabara de amanhar a terra frente à casa. Não há segredos. Não quer que a erva cresça pois traz “bicharada”. Oferece-nos rosas viçosas, oferece também conversa. Ali há tempo e recordam-se outros tempos.
Temos que estar preparados para aquele silêncio, para a ausência. Fazemos a volta à muralha, o caminho da ronda. Abaixo, os campos abertos, o fio do horizonte que se perder longe, para os lados de Albuquerque.
Monforte
Rumamos ao concelho de Monforte pela estrada que passa por Santa Eulália. De súbito a planície surpreende-nos. Os campos dão lugar a um espelho de água. É a Barragem do Caia, represa do rio com o mesmo nome. O Sol lampeja na superfície que o devolve em reflexos frescos. Faz-se a pesca desportiva, praticam-se desportos náuticos, há um parque de campismo. As margens atraem. O lugar é um santuário para os observadores de aves.
Chegamos a Monforte, terra de ganadaria brava e de cavaleiros tauromáquicos com nome feito, caso de João Moura e Paulo Caetano. O centro histórico da localidade é pitoresco, não esconde a alma alentejana, uma graça discreta, alva, debruada a cores fortes. Ali estão as laranjeiras nas praças, os cafés típicos povoados de bricabraque, de petiscos e de conversas demoradas.
Na Praça da República frui-se o dia de sol, embora ventoso. Um retângulo empedrado à portuguesa acolhe uma pequena fonte no centro. Brota água fresca que atrai o desassossego de uns quantos pardais.
À nossa frente está o edifício dos Paços do Concelho, imponente. Próxima, a igreja da Ordem Terceira. Atravessamos o arco da câmara e saímos do amuralhado junto à torre do relógio, onde se abria, em tempos, uma das quatro portas da vila. Próximo temos a praia fluvial com a sua ponte romana. No cenário destacam-se, ligadas por um percurso pedonal, três igrejas, a do Calvário, de forma curiosa, a de São João Batista, a precisar de uma séria recuperação e a de Nossa Senhora da Conceição. Volvemos à malha urbana para subir a Rua do Castelo. Chegamos ao miradouro onde outrora existiu a fortaleza, poderosa ao que consta pelo século XVI, no tempo de D. Manuel.
Villa Romana de Torre de Palma
Próximo a Monforte, na estrada que liga a Cabeço de Vide, espicaça-nos um enorme telheiro, ornamento peculiar na paisagem aberta e plana. Saímos da estrada principal, encetamos um caminho marginal. Chegamos à estação arqueológica da Villa Romana de Torre de Palma. Um pouco de história, de encontro com a civilização romana, com uma família que ocupou estas terras entre o século II e V da nossa era. Chamavam-se Basilli. Dezasseis séculos separam-nos do quotidiano desta família. Lemos as pedras, a arquitetura que compõem. Ficamos a saber pela visita guiada que a Villa se compunha pela residência dos proprietários e termas, pela parte destinada à criadagem e pela parte de armazéns, lugares, estábulos e currais. Existia, ainda, uma área de exploração agrícola.
Aos poucos o caos em pedra das ruínas compõe-se. Percebemos as ligações na arquitetura milenar e, com alguma imaginação, reconstruímos um quotidiano. Percebemos o pátio central, com um alpendre assente em colunas; espaço de ligação às divisões: a sala de música, a sala de banquetes, com as paredes revestidas a frescos. Belos mosaicos, com musas, cavalos, Baco, revestiam o piso da residência, embora estejam no Museu Nacional de Arqueologia, a par com inúmeros artefactos encontrados ao longo de mais de 50 anos de escavações descontínuas.
Reportagem publicada inicialmente em maio de 2019.
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