Nenhuma criança nasce ensinada. É através da relação que é estabelecida com as figuras de vinculação e na interação com o meio que a criança aprende e desenvolve diversas competências.

Comer é também um processo complexo cujas competências requerem igualmente uma aprendizagem. Por vezes esta aprendizagem segue um caminho sinuoso com vários fatores e condicionantes que podem tornar esta aprendizagem bastante árdua.

Todos os pais ambicionam uma criança que seja “um bom garfo”, muitas vezes impulsionados pela ideia socialmente aceite que, uma criança que coma bem é uma criança mais saudável. Contudo, nem sempre as crianças correspondem a estas expectativas. Expressões como “o meu filho é esquisito a comer”, “o meu filho come sempre os mesmos alimentos”, “não quer experimentar nada de novo”, são constantes em contexto de consulta e preocupam imenso os pais ou outros cuidadores.

Esta preocupação está relacionada sobretudo com o medo que os pais têm das consequências que esse comportamento alimentar (restritivo) possa ter na saúde e no desenvolvimento da criança.

Em 2013 com a publicação do DSM-V, crianças com dificuldades alimentares, não enquadradas numa perturbação do comportamento alimentar clássica (tais como a Anorexia ou a Bulimia Nervosa), obtiveram uma classificação concreta: Perturbação de Ingestão Alimentar Restritiva e/ou Evitante (ARFID).

As ARFID incluem crianças com diversas especificidades ao longo da esfera alimentar:

Dificuldades sensoriais – quando no processo de transição dos alimentos líquidos para as papas ou sólidos, é possível já observar uma tendência para recusar determinadas texturas (ex. prefere alimentos em formato de puré mas recusa alimentos sólidos). Estas dificuldades, quando não ultrapassadas, mantêm-se ao longo da vida da criança;

Neofobia – receio em experimentar novos alimentos, querendo apenas comer os alimentos que já conhece. Aqui a criança poderá manifestar sinais de ansiedade persistentes quando exposta a alimentos desconhecidos ou que vão para além da sua zona de conforto (ex. os alimentos devem ser sempre da mesma marca);

Evitamento – pode acontecer por diversos motivos desde o facto de a criança não gostar do sabor de determinado alimento; alguma vez o alimento ter provocado o vómito e/ou, a pressão gerada para a ingestão desse alimento (o que leva criar uma associação negativa).

Um aspeto importante a ter em consideração é o facto de estes comportamentos alimentares poderem resultar num impacto significativo no desenvolvimento da criança, na aquisição do peso esperado para idade ou no seu funcionamento social e manutenção de relações com os outros.

Um grupo de pessoas que apresenta uma grande prevalência deste tipo de comportamento alimentar é o grupo de crianças e jovens com Perturbação do Espectro do Autismo (PEA). Sim, de facto, uma grande percentagem de pessoas com PEA poderá apresentar uma ARFID.

Um estudo recente (Mayes & Zickgraf, 2019), que contou com uma amostra de 2102 crianças e jovens (das quais 1462 com PEA), verificou que 70% das crianças e adolescentes com PEA apresentavam comportamentos alimentares atípicos, o que contrastava de forma muito significativa com as percentagens de crianças com outras perturbações (13,1%) e de crianças com desenvolvimento típico (4.8%).

As crianças com PEA têm muito frequentemente seletividades alimentares e um padrão de comportamento alimentar restritivo

Os comportamentos alimentares atípicos mais frequentes estão relacionados com uma alimentação seletiva (leque restrito de alimentos preferidos), hipersensibilidade à textura/cheiro de determinados alimentos, insistência em comer alimentos de uma marca específica, “encher a boca sem engolir os alimentos”, rituais associados ao momento da refeição, entre outros. Não será por isso difícil de imaginar que uma grande percentagem destas crianças tenha ou possa desenvolver uma ARFID ao longo do seu desenvolvimento.

Além das características e problemas nos domínios da Interação Social e da Comunicação, há várias caraterísticas e traços no perfil de funcionamento de uma pessoa com PEA que podem ajudar a explicar o desenvolvimento de uma ARFID, tais como:
inflexibilidade cognitiva e comportamental, dificuldades para lidar com mudanças e situações novas, presença de padrões comportamentais repetitivos e restritivos (que se podem verificar por exemplo, na presença de interesses circunscritos, bem como aderência a rituais e rotinas de forma tendencialmente inflexível).

Na PEA é frequente existir alteração ao nível do processamento sensorial, que podem manifestar-se por hipersensibilidades (sensibilidade aumentada a diversos estímulos presentes no ambiente, tais como: sons, sabores, texturas, entre outros) e/ou hiposensibilidades (sensibilidade diminuída a um ou vários estímulos) que podem desempenhar um papel importante para o desenvolvimento de uma alimentação restritiva/evitante.

As pessoas com Autismo também podem ter, e têm com frequência, alterações na forma como “percebem” o seu mundo interior (os estímulos e sentimentos que advêm do seu próprio corpo e organismo), que podem resultar, por exemplo, em dificuldades ou alterações na forma como percecionam os estímulos interocetivos, nomeadamente a fome ou a saciedade.

Muitas vezes, a presença de uma ARFID, além de condicionar de forma significativa as relações familiares, pelo aumento de tensão e conflito que pode gerar no momento da refeição, também pode condicionar o desenvolvimento da relação com os pares ao longo da adolescência e da vida adulta. O padrão de comportamento alimentar diferente da maioria poderá causar problemas, por exemplo, quando a criança está em ambientes sociais (ex. dormir em casa de um amigo) ou levar a que um adolescente se prive de ir a uma festa de aniversário num restaurante, onde estarão todos os seus amigos e colegas.

Por essa razão é importante que estas dificuldades alimentares sejam tidas em consideração e possam ser alvo de intervenção psicoterapêutica atempada, de modo a minimizar impactos significativos na vida das crianças e jovens com PEA. Convém realçar que a intervenção será diferente dependendo da avaliação da ARFID presente em cada criança, dos fatores que contribuíram para a sua origem e manutenção ao longo do tempo (fatores sensoriais, emocionais, comportamentais, relacionais).

De modo a prevenir um acumular de problemas associados à alimentação, será importante que os pais recorram, logo que possível, a ajuda especializada, realizada habitualmente por uma equipa multidisciplinar composta por médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e nutricionistas.

Autores:

Ivo Pinto, Psicólogo Clínico – Núcleo das Perturbações do Espectro do Autismo (PIN - Em todas as fases da vida)

Joana Fernandes, Psicóloga Clínica – Núcleo das Perturbações Alimentares (PIN - Em todas as fases da vida)