Apesar de as crianças já se encontrarem identificadas como potenciais vítimas de violência doméstica quando expostas a situações de violência entre os seus progenitores, atenta a nova redação do art. 152º do Código Penal por efeito da entrada em vigor da Lei nº 57/2021 de 16 de Agosto, assistimos ainda a uma resistência muito grande por parte de todos os organismos e sociedade em geral no sentido de olharem para as crianças enquanto vítimas e de as tratarem como tal, ou seja, teima-se em evitar a aplicação da lei em vigor.

Esta resistência advém da ideia interiorizada e generalizada na sociedade que as crianças são testemunhas do que assistem em relação aos seus progenitores. Por isso, apesar da lei processual penal também ter sido alterada no sentido de possibilitar a aplicação de medidas de coação que impedem a continuação da atividade criminosa por parte do agente do crime, mormente a restrição do exercício da parentalidade relativamente ao progenitor agressor (atendendo à gravidade dos factos e relação de parentesco do agressor com a criança), são muito pontuais as situações em que essas medidas são aplicadas. Persiste-se em valorizar a violência física e nos demais casos, apesar de ser atribuído o estatuto de vítima à criança na sequência da apresentação da denúncia contra o progenitor agressor e relega-se para os Tribunais de Família e Menores a tomada de posição quanto ao regime de convívios que a criança poderá ter com o progenitor agressor. Ou seja, continua-se a não encarar a criança como vítima.

Consequentemente, o que sucede na esmagadora maioria das vezes é que os Tribunais de Família e Menores aplicam um regime de exercício da parentalidade que poderia ser adequado caso o progenitor não fosse agressor daquela criança, quando o que se passa é o inverso. No limite, atende-se à medida de coação de proibição de contactos entre o progenitor agressor e a vítima adulta - no sentido de respeitar a proibição de contactos entre os progenitores -, mas ainda assim, teima-se na ideia de fixar um regime de convívios em relação ao progenitor agressor como se a criança não tivesse estado exposta à violência e nada tivesse sofrido. O que ocorre mesmo quando as crianças são ouvidas e manifestam não querer estar com o progenitor agressor.

A falta de entendimento e acolhimento da manifestação de vontade da criança é claramente reveladora do não reconhecimento da mesma enquanto vítima e da inutilidade prática da sua audição quando assim acontece, pois, do que serve ouvir a criança se não se percebe os seus medos, angústias e os seus receios, ou seja, o impacto que a violência teve sobre a mesma. É preciso que se saiba que, muitas vezes, perante a recusa de uma criança em estar com o seu progenitor, continuam a estabelecer-se regimes de convívios de aproximação em relação a estes que só contribuem para perpetuar o sofrimento das crianças, já que não existe qualquer trabalho de atribuição de competências parentais e acompanhamento psicológico em relação ao progenitor agressor, permitindo-se, assim, a continuidade do massacre psicológico do progenitor agressor para com a criança. Um regime de reaproximação do progenitor em relação à criança tem de ter subjacente a existência de condições efetivas para essa reaproximação, o que é em muitíssimo descurado. 

Acresce ainda que, o que está na base da fixação dos regimes de convívios nas situações de violência doméstica é a errónea transposição do princípio da presunção de inocência do progenitor agressor para o processo de Jurisdição de Menores, quando a prevalência deveria estar sempre na defesa do superior interesse da criança. Na prática, perante a dúvida a respeito de uma situação de violência doméstica, dever-se-ia proteger a criança de eventuais e possíveis comportamentos abusivos ao invés de a expor num regime de convívios contrário ao seu bem-estar emocional, potenciador do seu sofrimento, ao abrigo do respeito pela igualdade de direitos entre ambos os progenitores. Sempre nos devemos questionar onde fica a percentagem dos direitos da criança quando o sistema judicial está tão preocupado em assegurar os 50% para cada um dos progenitores. Não estamos certamente preocupados com a criança, mas tão somente com os seus progenitores e os seus direitos.

A gravidade da situação prende-se com o clarividente desrespeito dos Direitos Humanos da criança. Não basta ouvir a criança! Há que saber interpretar e respeitar a sua vontade de acordo com as circunstâncias do caso concreto! 

Um artigo de opinião da Advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças.