"Aos olhos da sociedade, uma mãe ama os seus filhos de forma incondicional, de olhos postos na sua felicidade e bem-estar, colocando-se muitas vezes em segundo plano para que nada lhes falte. Mas será sempre assim?"

Este foi o mote para o livro "Mãe, porque não gostas de mim?", que apresenta oito testemunhos, de 1 homem e 7 mulheres com idades entre os 20 e os 60 anos. Testemunhos, esses, emocionados e sofridos de filhos que nunca se sentiram amados pelas suas progenitoras.

Falamos com a jornalista Lucília Galha, a autora do livro.

Porque resolveu escrever um livro sobre um tema tão "duro" e, ao mesmo tempo, complexo?

A ideia partiu do meu editor, que me desafiou a escrever sobre o tema. Achei interessante e, ao mesmo tempo inquietante, porque tinha sido mãe há apenas 10 meses e também partilhava daquela visão romântica de que uma mãe ama incondicionalmente os seus filhos. Depois de recolher os testemunhos percebi que este alegado amor incondicional pode, afinal, não existir.

Por outro lado, os temas mais duros e difíceis são aqueles que me dão mais prazer trabalhar, tanto enquanto jornalista como enquanto autora, porque me desafiam e não são lineares.

Como conseguiu estes testemunhos (não é um tema fácil de partilhar...)?

Com bastante persistência e paciência e batendo a muitas “portas” diferentes: contactos pessoais, psicólogos, etc. Não é um tema fácil de partilhar, sobretudo com uma desconhecida, porque constitui uma grande mágoa na vida destas pessoas. Só lhes tenho a agradecer a generosidade que tiveram comigo.

Qual o testemunho/história que mais a impressionou?

Todas me impressionaram, cada uma à sua maneira. Ainda é difícil, para mim, perceber como é que existem mães que dizem a um filho coisas como: “Eu nunca gostei de ti” ou “Se não tivesses nascido, eu era feliz” (como acontece em dois casos do livro). Ou progenitoras que não resguardaram os filhos, ainda pequenos, dos problemas. Não é suposto uma criança suportar os problemas da família ou do casal, como aconteceu no primeiro caso relatado no livro.

Que impacto estas vivências tiveram de uma forma geral nas pessoas com quem falou?

Posso dizer que são pessoas com uma enorme mágoa, inseguras, instáveis e muito vulneráveis por causa dessa ausência/lacuna que existiu nas suas vidas: a falta do amor de mãe. E que isso teve consequências nas suas vidas enquanto adultos e nas suas relações. Não é que tenham que tenham dificuldade em amar o(s) outro(s), mas algumas acabaram por procurar um parceiro com o mesmo perfil “abusivo” que tinham em casa, outras acabaram por não adquirir ferramentas para socializar e há quem projecte a sua insegurança nos filhos. Mas, apesar disso, penso que quase todas estas pessoas conseguiram impedir que o padrão se perpetuasse e não repetiram com os filhos aquilo que as suas mães fizeram com elas.

Quando acabou de escrever o livro, sentiu que o tão falado amor incondicional de mãe afinal não é bem verdade? Há um lado B da maternidade de que ninguém fala?

Sim, percebi que o alegado incondicional amor de mãe pode não existir e que há várias razões para isso acontecer, não é tão simplista como dizer que há boas ou más mães. Existem casos em que a vinculação (o laço que se estabelece entre uma mãe e o bebé à nascença) pode não acontecer. Por outro lado, algumas destas mães retratadas no livro tiveram vidas complicadas, relações com as suas mães complicadas, e o padrão tende a repetir-se e a perpetuar-se a não ser que haja uma intervenção, o que implica apoio profissional. Estas mulheres, fruto das circunstâncias das suas próprias vidas, não conseguiram dar mais ou fazer melhor.

Pode dizer-se, sim, que há um lado B da maternidade que acaba por ser tabu, esta ideia de haver mães que não gostam, ou não querem, ser mães é uma coisa que ainda não é socialmente aceite e é encarado, de alguma forma, como uma atitude egoísta.

livro mãe porque não gostas de mim
livro mãe porque não gostas de mim créditos: A Esfera dos Livros

Porque é que há mães que não sentem instinto maternal

Lucília Galha refere no seu livro que de acordo com os últimos estudos, 3% das mulheres assumem não sentir prazer na maternidade, nem no que a experiência acarreta.

Pedro Vaz Santos, Psicólogo Clínico e Terapeuta Familiar do PIN (Centro de Desenvolvimento Infantil), responde: "Pensando na ausência do instinto materno no pós-parto, há sem sombra de dúvida uma dimensão biológica no instinto materno, por isso falamos em instinto. A natureza é extraordinária na forma como prepara o corpo da mulher para a maternidade. Existe um caldo neuro químico que de forma simplista, prepara o cérebro para o estabelecimento da relação precoce e reforça os comportamentos de atenção e de cuidado para com o bebé. Neste sentido é expectável que em algumas mulheres, esta expressão neurobiológica, orientada para os comportamentos de proteção do filho não se organize de forma eficaz e consequentemente a disponibilidade de estabelecimento da relação precoce esteja condicionada".

Aos filhos que contaram as suas histórias neste livro, esta experiência de vida "trouxe-lhes alguma fragilidade, insegurança, instabilidade e mágoa na idade adulta".

Poderá o padrão perpetuar-se entre gerações?

"A ciência parece indicar uma associação entre a qualidade dos cuidados que uma criança recebe e a forma como na idade adulta vive a maternidade e a qualidade dos cuidados que presta ao seu filho. Neste sentido, em algumas situações, pode-se perpetuar um padrão transgeracional menos adequado. Contudo, devemos ter muito cuidado neste tipo de análise e de afirmações. Todos dias, todos nós reinventamo-nos, mudamos, libertamo-nos das nossas histórias e, consequentemente, do nosso passado. Por isso, ninguém está preso verdadeiramente a um passado", explica Pedro Vaz Santos.

E acrescenta: "Pela nossa experiência clínica no trabalho com famílias em contextos de maior vulnerabilidade e na quais ocorrem comportamentos de abuso e de negligência, muito frequentemente encontramos na história da infância dos pais episódios semelhantes. São ciclos, por vezes, muito difíceis de quebrar, enraizados em crenças fortes sobre o que a educação ou na ausência de modelos permitam muitas vezes encontrar a diversidade de soluções que são necessárias para os desafios diários da maternidade".