Neste artigo, a pediatra Joana Martins aborda a importância da consulta pediátrica pré-natal e o seu papel na escolha do médico mais adequado às suas expectativas.
Da figura autoritária e distante do médico, com uma postura paternalista, mudamos progressivamente para uma figura de consultadoria na saúde. Haverá áreas onde esta mudança se tornou mais evidente, como as especialidades com elevado número de consultas de vigilância de saúde – na qual se inclui a pediatria, e outras áreas onde ainda não se nota tanto, como na emergência médica ou nos cuidados intensivos.
Porque é que falo disto? Porque para falar de consultadoria, para que o médico possa deixar de ser a figura central na tomada de decisão (quem nunca disse ou ouviu: “faça o que achar melhor, doutor”) para passar a ajudar a escolha do doente, então temos dois problemas: ou aumentamos o nível de literacia em saúde em Portugal (difícil) ou aumentamos a acessibilidade e tempos de consulta (no paradigma atual: impossível).
O que é que isto significa na prática?
Numa consulta de 15 minutos de pediatria eu não consigo explicar os diferentes métodos de diversificação alimentar para um bebé de 6 meses, vantagens, desvantagens e riscos de diferentes abordagens. Não, numa consulta de 15 minutos, quanto muito, vou dizer que se vai fazer a sopa da forma X e iniciar com os legumes Y, W ou Z. Nada contra esta abordagem em si, no entanto, eu sei que em termos de comunicação, informação, ajuda à tomada de decisão, é nitidamente insuficiente.
E realmente, nos últimos anos, o que vimos foi o escalar destas mini consultas, deste toque-e-foge. Quer pela pressão assistencial de um Sistema Nacional de Saúde (SNS) a rebentar pelas costuras, quer pelas exigências lucrativas dos grandes grupos privados, com a proliferação de diferentes tipos de seguros, esta é a realidade atual.
O que me deixa aqui numa grande encruzilhada: para poder ter um papel de assessora clínica à decisão dos pais, contribuindo para esclarecer as suas dúvidas e com tempo para avaliar decentemente uma criança, liberta dos constrangimentos da lista de consulta, terei que trabalhar em consultório privado. O que, digo-vos, conceptualmente seria uma ideia um pouco abstrata para mim, já que fiz (e faço) a esmagadora maioria da minha trajectória no setor público.
A contrariar este movimento de liberalização de consultas, com clínicas a funcionar em grandes superfícies comerciais, surge a ideia que um médico assistente é bem mais do que acessibilidade, trata-se também de tempo, continuidade e qualidade. Porque, não venhamos com ideias tolas, o tempo é um fator de luxo e reflete naturalmente na qualidade dos cuidados médicos.
E como procuramos o melhor para as crianças, naturalmente gostamos de ir a um médico que tenha tempo para olhar para elas. Como a vigilância de saúde da criança saudável não é feita por pediatras em sede do SNS, é natural que haja uma certa tendência a procurar um pediatra com quem nos identifiquemos. Sempre existiram relatos de alguém que não gostou do pediatra A e passou a gostar do B. Mas precisamente porque não temos todos as mesmas características é que a escolha de um pediatra não deveria ser deixada ao acaso.
E uma maneira de fazer isto, muito simples, muito direta, é através do agendamento de uma consulta pré-natal. E vocês pensam: que esquema rocambolesco é este de cobrar um consulta de pediatria a uma criança que ainda não nasceu? Pois, eu disse que não era um tema fácil…
Uma consulta pré-natal com um pediatra pode ter uma incrível vantagem: o pediatra vai conhecer-vos enquanto família e os recursos que têm disponíveis. Vai conseguir-vos explicar como decorrem os primeiros dias de um bebé recém-nascido. Parece pouco, certo? Mas verão que é um assunto que dá pano para mangas… Por exemplo, pode alertar-vos para a importância de fazer contacto pele com pele na primeira hora de vida, especialmente se têm previsto um parto numa unidade de saúde não classificada como Hospital Amigo dos Bebés, pode alertar-vos para a o início precoce do aleitamento e assim, proteger-vos dos inadvertidos biberões na maternidade, pode falar sobre o estado da mãe, o sono do recém nascido, ou mesmo apenas e só sobre as vossas expectativas. No entanto, um pediatra poderá identificar-vos os sinais de alarme mais importantes, bem como descodificar algumas ocorrências normais no período neonatal imediato, como a perda de peso do recém-nascido ou a icterícia (coloração amarelada da pele do bebé).
Caso seja o vosso desejo, o pediatra pode sugerir o apoio de conselheira de lactação que trará um enorme conforto naqueles primeiros dias. Mais: ao conseguirem identificar um pediatra de quem gostem e no qual tenham confiança, pode ser uma excelente âncora na eventualidade de acontecer algo de errado e inesperado com o vosso bebé. Assim, no meio da tempestade inicial, têm alguém de fora, igualmente técnico, com um compromisso com a vossa família, para vos ajudar na transição para a vida fora do hospital.
Outros aspetos que poderão ser abordados numa consulta pré-natal dizem respeito ao estilo do pediatra que querem adoptar. E reparem, na minha experiência, são muito poucas as famílias que fazem este tipo de perguntas logo no início.
É certo que existem recomendações científicas, mas nem tudo está protocolado e há imenso espaço para uma boa dose de experiência e bom senso. Daí que perguntar a opinião do pediatra sobre assuntos tão diversos como as vacinas, a duração da amamentação, o sono na cama dos pais, o chuchar no dedo, o treino do bacio e/ ou a disciplina, possa ter muito interesse para se identificarem com um estilo mais próximo do vosso. E reparem, estamos a falar de um serviço de consultadoria que é suposto ajudar a família. No entanto, frequentemente assisto ao inverso: famílias ansiosas por não estarem a cumprir estritamente as indicações do pediatra; famílias que ocultam do pediatra que a miúda de 2 anos passou a dormir na cama dos pais, porque já sabem que ele irá emitir uma opinião mais rígida; ou o contrário, com pais com muita vontade de por o bebé a dormir fora do quarto aos 6 meses certinhos e um pediatra a aconselhar mais tempo de vigilância.
Flexibilidade e acessibilidade
Por fim há um aspeto muito sensível que é a questão da flexibilidade e acessibilidade: hoje em dia exige-se um contacto directo com um pediatra. O que nem sempre é fácil, tendo em conta que, grande parte dos pediatras trabalha um horário completo num hospital ou consultório. No entanto, ouvem-se imensos rumores sobre a suposta inacessibilidade de alguns profissionais. Mas o que vos aconselho é que perguntem: atende o telemóvel em que horário? Responde a mensagens? Prefere comunicação por e-mail? Isso sim são perguntas relevantes e que ajudam muito a não defraudar expectativas.
Assim, tendo o cuidado de calmamente seleccionar o médico que lhe parece responder às necessidades da sua família, tenho a certeza que terá mais e melhor informação. E é para isso que o pediatra serve.
Um artigo da médica pediatra Joana Martins.
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