Chegados ao final de 2022 impõe-se uma reflexão e balanço anual a respeito do trabalho ao nível da prevenção e combate da violência doméstica em Portugal.
Em termos de prevenção, apesar do investimento de políticas públicas ao nível de ações de sensibilização e formações de profissionais, continuamos a ter um deficit muito grande de trabalho preventivo ao nível das escolas e no setor da saúde.
Reconhecendo-se a existência de ações de sensibilização nas escolas sobre a temática da violência doméstica e da inclusão da disciplina de cidadania, persistimos em não incluir nos currículos escolares das questões não estereotipadas de género, da resolução não violenta de conflitos, do direito à integridade pessoal e do direito à igualdade e não discriminação. Enquanto assim não acontecer estaremos sempre a permitir que as crianças e jovens encarem estas questões sem qualquer seriedade, propiciando a perpetuação de valores patriarcais e machistas que conduzem à violência doméstica praticada contra as mulheres mediante a réplica de comportamentos abusivos que muitas vezes as crianças e jovens auscultam nos seus progenitores.
Ao nível da saúde, continuam a não existir equipas preventivas especializadas que saibam e consigam evitar a instalação da violência doméstica no seio familiar. Ora, a Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, já alude a essas equipas como forma de prevenir o fenómeno da Violência doméstica sem que até hoje o Estado tenha feito um investimento sério no sentido de implementar estas equipas ao nível do território nacional com as inevitáveis consequências ao nível dos casos de violência doméstica instalados.
Ao nível do combate ao crime de violência doméstica, reconhecido que está como sendo um crime de natureza pública e um crime violento, continuamos a colocar a vítima no centro do processo fazendo depender da mesma a boa continuação do procedimento criminal. Continuamos a perguntar às vítimas se desejam procedimento criminal, quando estamos perante um crime público e violento, como se disse. E com esta atitude transmitimos a ideia que é possível desistir do processo. Da mesma forma que, a utilização do mecanismo da suspensão provisória do processo previsto nos arts 281º e 282º do Código do Processo Penal, que consiste na possibilidade conferida aos diversos intervenientes processuais de poderem chegar a acordo e parar o processo durante um determinado período de tempo mediante a imposição de regras de conduta impostas à pessoa constituída como arguido no processo crime em curso, independentemente de em alguns casos correr positivamente, acaba por representar mais uma oportunidade dada ao agressor de não ser submetido a julgamento. Ou seja, este mecanismo acaba por ser mais uma forma de contrariar a natureza pública do crime, quando na verdade estamos perante um crime violento. Caberá sempre a questão de saber por que motivo continuamos a questionar as vítimas de violência doméstica a respeito desta possibilidade de suspensão quando tal atitude não é levada a cabo noutros tipos de crimes violentos.
Por outro lado, continua-se a impender sobre a vítima o ónus de carrear meios de prova para o processo, sejam testemunhais, documentais ou até mesmo periciais, quando, na verdade, no encalce de evitarmos a revitimização da vítima esta deveria ser ouvida uma única vez, colaborar com o processo na medida daquilo que conseguiria, e, no mais, diligenciar-se por uma investigação criminal proativa que poderia apostar numa exploração minuciosa do cenário do crime e na forte articulação com as unidades de saúde que intervêm junto das vítimas por forma a obter informações clínicas senão mesmo meios de provas periciais.
Certo é que, analisados os diferentes momentos do processo crime continuamos a assistir a várias possibilidades conferidas ao longo do processo que comprometem a continuidade do procedimento criminal como se de um crime menor se tratasse, o que é claramente contraditório com o facto de estarmos a lidar com uma tipologia de crime que integra a criminalidade violenta e representa a violação do Direitos Humanos.
O que se espera para o próximo ano 2023 é que saibamos reconhecer estas lacunas e consigamos lapidar estas arestas ainda previstas na lei por forma a atuarmos de forma mais eficaz na prevenção e no combate à criminalidade violenta.
Um artigo de opinião da Advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças.
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