“Viajávamos, saímos à noite, íamos ao cinema, percorríamos as ruas de Lisboa simplesmente a conversar. Namorámos muito. Hoje continuamos juntos, mas já não fazemos nada. Passamos os dias em casa a implicar um com o outro, é o nosso novo passatempo.”

A Ana e o João são um dos muitos, casais que vou conhecendo, que um dia acordam subterrados pelas exigências da rotina. Quando casaram, tinham a certeza, que a paixão, a fantasia, o erotismo, estariam sempre presentes. Os medos eram outros. Tinham receio da autonomia económica, do preço da habitação e do sucesso das carreiras. Os medos eram para ser ultrapassados, afinal, existia o sonho de formarem uma família e terem mais do que um filho.

Quinze anos depois, a Ana e o João, vivem num T3 às portas de Lisboa e têm dois filhos. A Rita, 10 anos, entrou agora para o 5.º Ano. O Afonso de 3 anos, "é uma peste" nas palavras dos pais, ninguém fica com ele, foi para a Sala dos três, no colégio da irmã.

Ambos com carreiras de sucesso, a Ana trabalha num escritório de advogados na baixa, o João numa multinacional às portas de Lisboa. Diariamente, esticam-se, dão cambalhotas, fazem o pino, dividem-se, entre os seus horários e os horários dos miúdos.

“Agora a nossa vida é um verdadeiro campo de batalha, repleto de trincheiras. Passamos a vida a discutir sobre quem faz as tarefas. A conversa é sempre: "Fazes tu, faço eu, ajuda por favor. Há sempre alguém que não pode, que está ocupado. Há sempre muito por fazer.”

A rotina torna-se uma guerra a ser travada diariamente, em equilíbrios e desequilíbrios de poder, de quem faz mais versus quem faz menos. Esta é a realidade de muitos casais, com filhos pequenos, a viverem nas grandes cidades.

Um dia acordam, esmagados pela rotina, sem a vontade de outros tempos, sem a iniciativa de surpreender o amante. O erotismo esfuma-se, a fantasia dá lugar ao concreto, a paixão transforma-se em ressentimento. Se por um lado a rotina traz segurança, estabilidade e conforto, por outro lado diminui o espaço para o improviso e a criatividade, ingredientes necessários à paixão.

O erotismo, precisa de espaço, de tempo, de ausência do outro e de uma dose de incerteza. Na verdade, o desconhecido é um enorme afrodisíaco. Desejamos o que não conhecemos na totalidade, o que nos desafia, o que nos afasta da nossa zona de conforto.

Será este o destino dos casais, ficarem esmagados pela rotina e perderem o espaço do erotismo?

Queremos acreditar que não. Há muitos casais que parecem saber manter a chama do erotismo. Um jantar surpresa, um programa a dois, uma mensagem a meio do dia, que convida a uma noite diferente. Um beijo prolongado, um elogio e um sussurrar ao ouvido, hoje à noite não temos crianças.

Recordo-me de um casal amigo, que incluiu no contrato da empregada doméstica, uma pernoita por mês, de forma a ficar com as crianças, e “obrigar” os pais a uma noite fora de casa. Poderá este ser um bom truque, a colocar na rotina, o espaço para a exceção e para a relação a dois.

O espaço a dois, parece ser o melhor antídoto para a monotonia da rotina do casal. Fora da rotina e das obrigações, o espaço de namoro, ajuda a criar um plano relacional para além do quotidiano. Óbvio que espaço a dois, não é sinónimo de desejo. O desejo e o erotismo parecem ter regras, mais complicadas que o simples quebrar da rotina e a introdução de uma certa criatividade romântica.

Os momentos a dois, não são uma simples receita, daquelas que corre sempre bem, mas sim um lançar os dados e nesse sentido, uma probabilidade. Há o risco, do momento ser a verificação do que já não existe, do que já não se sente. Ainda vale a pena arriscar a sorte? Queremos acreditar que sim. Afinal o risco, parece ser um bom afrodisíaco.

A Ana e o João, veem-se curiosamente confrontados com a necessidade de reinventarem a sua relação amorosa. Exercício que ambos têm a consciência que terá de ser eficaz. Se falharem, a ameaça do divórcio instala-se de forma definitiva.

É, talvez, preciso levar a relação ao psicólogo

À semelhança das empresas, que por vezes contratam uma empresa de consultoria, para ajudar na mudança organizacional, os casais também, por vezes, precisam de um consultor que os ajude a promover a mudança. É talvez preciso levar a relação ao psicólogo. É preciso olhar para a comunicação, para organização dos processos e mais importante, é preciso olhar para os espaços de improviso criativo.

Parece-nos importante, que ambos compreendam que é necessário fazer escolhas difíceis, possivelmente alterar a rotina, deslocar recursos e redefinir prioridades. É um processo que implica a perda do equilíbrio instalado e necessariamente o trabalho emocional associado a essa perda. Nos casais, mudar, sem trabalhar emocionalmente a perda, rapidamente gera ressentimento e a sensação que se abdica em favor do outro, o que mantém a relação num plano de jogos de razões, afastando-a de um espaço mais erótico. Quando a perda é emocionalmente trabalhada, a mudança torna-se natural e não forçada.

Há muitos terapeutas de casais que parecem ter a ideia que se a comunicação e a interação mudar, no sentido de uma relação mais “saudável”, o desejo erótico regressa. O erotismo para estes colegas, parece ser uma consequência direta da qualidade da interação. Não podemos discordar mais. O erotismo é, na nossa opinião, um processo relativamente independente da qualidade da comunicação na relação. O erotismo vive num espaço de fantasia, de imaginário e, por conseguinte, num plano pouco concreto.

Na nossa opinião, o problema, normalmente, é a forma como o espaço do imaginário fica refém da realidade concreta. O imaginário erótico não se desenvolve enquanto as pessoas estão focadas no que têm para decidir, no que têm para fazer, no que o outro disse ou não disse, no abdicar ou no forçar. Em resumo, o erotismo não convive bem com o jogo das razões. É este apego com o real, que por vezes torna o sexo no casal, tão pouco excitante.

A Ana e João vão ter que alterar a rotina, mas principalmente vão ter de criar uma nova visão de casal e de família, um novo sonho para cada um e para os dois. Vão ter que fazer o luto do seu projeto concreto, para possivelmente arranjarem um espaço, para se encontrarem fora do quotidiano que construíram. Nesse espaço fora da “realidade” poderão construir uma nova realidade de desejo erótico.

Pedro Vaz Santos - Terapeuta Familiar e de Casal