Foi num encontro informal, nos bastidores do Festival de Cannes, que Caroline Scheufele — co-presidente e directora artística da Chopard — reparou na Palma de Ouro, pousada discretamente no escritório do então presidente Pierre Viot. Era uma peça em acrílico, simples, sem alma. “Posso fazer melhor”, disse. Viot aceitou o desafio. E assim começou, em 1998, a história da Palma como a conhecemos hoje: uma peça de alta joalharia.

Este ano, a Palma de Ouro celebra 70 anos desde a sua criação, e 27 anos desde que começou a ser produzida pelos ateliers de Alta Joalharia da Chopard em Genebra. Não se trata apenas de um troféu, mas de um objeto de culto, carregado de simbolismo, meticulosamente construído com ouro ético de 18 quilates e um bloco de cristal de rocha talhado como um diamante. Ao todo, são necessárias 70 horas de trabalho artesanal, repartidas por seis artesãos especializados, todos joalheiros com formação em técnicas tradicionais de fundição, cravação e polimento.

O pequeno coração esculpido na extremidade da haste é um detalhe quase invisível, mas essencial. É o símbolo da Chopard. E, tal como o cinema, vive dos pormenores. 

Palma de Ouro: 70 anos de glamour, desejo e precisão suíça da joia que consagra o cinema
Palma de Ouro: 70 anos de glamour, desejo e precisão suíça da joia que consagra o cinema créditos: Divulgação Chopard

Um prémio com alma e história

Antes de ser o troféu que hoje conhecemos, o prémio principal do Festival de Cannes assumia formas diferentes. Entre 1946 e 1954, chamava-se Grand Prix du Festival, um troféu de design variável, geralmente sob a forma de uma obra de arte. A história da Palma começa em 1955, quando foi entregue pela primeira vez ao filme "Marty", de Delbert Mann. A mudança para um símbolo permanente surgiu após um concurso entre vários joalheiros, vencido por Lucienne Lazon, que desenhou uma palma inspirada no brasão da cidade de Cannes, cujas origens etimológicas remetem à palavra latina canna, ou seja, o caniço, evocando o símbolo vegetal da vitória.

Houve interrupções, regressos e reinvenções. Entre 1964 e 1974, o festival voltou a premiar com o Grand Prix, reflexo de divergências internas quanto ao formato e simbolismo do galardão. em 1984 se retomou a ideia da Palma como prémio principal. Nos anos 1990, a base assumiu um formato piramidal em cristal, e em 1992, o joalheiro Thierry de Bourqueney introduziu as atuais 19 folhas de palmeira, com uma nova configuração estética.

Mas foi em 1998, com a entrada em cena da Chopard e a visão criativa de Caroline Scheufele, que o troféu ganhou identidade definitiva — uma peça de alta joalharia com alma de cinema. Scheufele modernizou a forma, acrescentou subtileza e volume, e desenhou um objeto que respeita a herança simbólica da Palma, mas com o requinte técnico da relojoaria suíça. A parceria com o Festival de Cannes começou e nunca mais se quebrou.

Alta joalharia com consciência

O processo de criação da Palma é uma lição de precisão suíça. Criada nos ateliers de Haute Joaillerie da Chopard em Genebra, tudo começa com a técnica ancestral de fundição por cera perdida (lost wax casting), em que a peça é moldada em cera e depois fundida em ouro a vácuo, após passar por um molde cerâmico aquecido a 900 °C. Cada folha da palma é depois soldada à mão, uma a uma, e a base de cristal de rocha é perfurada com ferramentas de diamante, para permitir a montagem invisível da estrutura.

Palma de Ouro: 70 anos de glamour, desejo e precisão suíça da joia que consagra o cinema
Palma de Ouro: 70 anos de glamour, desejo e precisão suíça da joia que consagra o cinema créditos: Divulgação Chopard

Desde 2014, a Chopard assumiu o compromisso de produzir todas as Palmas com ouro proveniente de fontes éticas e certificadas, alinhando-se com os princípios do seu programa Journey to Sustainable Luxury. Trata-se de um detalhe, mas que pode ser essencial num momento em que o luxo contemporâneo exige transparência, responsabilidade e respeito por quem trabalha nos bastidores da cadeia de produção.

Como afirmou Caroline Scheufele: "não é apenas um troféu. É uma declaração de amor ao cinema."

Mais do que um prémio, um símbolo cultural

Desde "Marty", de Delbert Mann, o primeiro filme a receber a Palma em 1955, a Palma de Ouro tornou-se sinónimo de consagração no cinema. Um objecto de desejo e, para muitos realizadores, o auge de uma carreira.

Jane Campion foi a primeira mulher laureada, em 1993, com "O Piano" — e mesmo assim, partilhou o prémio. Trinta anos depois, seguiram-se Julia Ducournau ("Titane", 2021) e Justine Triet ("Anatomia de uma Queda", 2023), que assinaram dois dos discursos feministas mais fortes da década.

ANATOMIA DE UMA QUEDA (1 de fevereiro de 2024 nos cinemas)
ANATOMIA DE UMA QUEDA (1 de fevereiro de 2024 nos cinemas) Realizado por Justine Triet com Sandra Hüller, Swann Arlaud e o cão Messi. Palma de Ouro do Festival de Cannes e Óscar de Melhor Argumento Original, entre dezenas de outros prémios e nomeações. Uma escritora alemã torna-se a principal suspeita quando o seu marido francês é encontrado morto no chalé isolado nma cidade remota dos Alpes franceses. O julgamento tornar-se-á uma inquietante viagem psicológica às profundezas da relação conflituosa do casal. créditos: Divulgação

Ruben Östlund juntou-se ao grupo restrito de realizadores com duas Palmas e recebeu versões especiais cravejadas com diamantes nas edições de 2017 e 2022, assinalando, respetivamente, os 70 e 75 anos do Festival. Junta-se a nomes como Francis Ford Coppola, Emir Kusturica ou Ken Loach — nove no total — que venceram duas vezes o prémio máximo.

Curiosamente, a Palma é um troféu único: são produzidos dois exemplares por edição — o oficial e um suplente, em caso de empate, como aconteceu em 1997. A peça não é vendida nem reproduzida. Uma vez entregue, pertence à história.

O regresso de Juliette Binoche

Este ano, o prémio será entregue a 24 de maio, na cerimónia de encerramento da 78.ª edição do Festival de Cannes. A actriz Juliette Binoche, que preside o júri, regressa a Cannes quatro décadas depois de ter subido pela primeira vez aquelas escadas, com "Rendez-vous", de André Téchiné. “Em 1985 subi as escadas com toda a incerteza de uma jovem actriz. Nunca imaginei que, 40 anos depois, estaria aqui nesta posição. É um privilégio e uma responsabilidade”, confessou.

Juliette Binoche
Juliette Binoche créditos: AFP

É também um gesto de reconciliação: Binoche tem manifestado, ao longo da carreira, reservas em relação à mediatização dos prémios, mas a sua presença este ano simboliza eterno poder do cinema como lugar de reencontros.

Trophée Chopard: as estrelas de amanhã

Além da Palma, a Chopard criou em 2001 outro símbolo de reconhecimento no mundo do cinema: o Trophée Chopard, destinado a dois talentos emergentes — um ator e uma atriz — com carreiras promissoras. Em 2025, os distinguidos são a francesa Marie Colomb, conhecida por "Laetitia", "As Bestas" e "Culte", e o britânico Finn Bennett, estrela em ascensão de "True Detective", "Black Doves" e do futuro "A Knight of the Seven Kingdoms", spin-off de "House of the Dragon".

Palma de Ouro: 70 anos de glamour, desejo e precisão suíça da joia que consagra o cinema
Palma de Ouro: 70 anos de glamour, desejo e precisão suíça da joia que consagra o cinema A francesa Marie Colomb e o britânico Finn Bennett são os distinguidos deste ano do Trophée Chopard. créditos: Divulgação

A cerimónia decorrerá a 16 de maio, na icónica praia do Carlton, com uma anfitriã à altura: Angelina Jolie, madrinha da edição deste ano. A atriz, realizadora e produtora — reconhecida também pelo seu trabalho humanitário e pelo projeto criativo Atelier Joliefoi escolhida por Caroline Scheufele por ser um exemplo de talento, impacto e generosidade. “Sei que os jovens artistas que homenageamos este ano se vão inspirar no seu percurso”, afirmou em comunicado.

Palma de Ouro: 70 anos de glamour, desejo e precisão suíça da joia que consagra o cinema
Palma de Ouro: 70 anos de glamour, desejo e precisão suíça da joia que consagra o cinema Trophée Chopard créditos: Divulgação Chopard

A política e o cinema: quando o festival palco à consciência

A política voltou ao primeiro plano no Festival de Cannes, que sempre teve as portas abertas às reivindicações da comunidade cinematográfica. Este ano não foi exceção. A 78.ª edição foi inaugurada com uma homenagem comovente a Fatima Hassouna, fotojornalista palestiniana morta num ataque israelita em Gaza. Fatima é protagonista do documentário "Put Your Soul on Your Hand and Walk", da realizadora iraniana Sepideh Farsi, selecionado para a secção paralela ACID. Morreu um dia depois de o filme ter sido anunciado.

Fatima deveria estar aqui, entre nós. A arte permanece. Ela é o testemunho poderoso dos nossos sonhos. E nós, os espectadores, acolhemos isso”, disse Juliette Binoche, presidente do júri, durante a cerimónia de abertura, visivelmente emocionada. “O vento da dor é tão violento hoje que leva embora os mais frágeis”, acrescentou, recordando também “os reféns de 7 de outubro e todos os reféns, os prisioneiros”.

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A referência remete para o ataque de 7 de outubro de 2023, em que milicianos do Hamas mataram 1.218 pessoas em Israel, a maioria civis, e sequestraram 251. Segundo o exército israelita, 57 permanecem em cativeiro, incluindo 34 dadas como mortas. Em resposta, a ofensiva israelita causou mais de 52 mil mortos na Faixa de Gaza, a maioria civis, segundo o Ministério da Saúde de Gaza. Estes números não são auditados independentemente, mas têm sido usados como referência pela ONU.

A poucas horas da cerimónia de gala, mais de 380 personalidades da indústria cinematográfica publicaram uma carta aberta de denúncia à guerra. Entre os signatários estavam Pedro Almodóvar, Susan Sarandon, Richard Gere, Alfonso Cuarón, Javier Bardem e Costa-Gavras. A carta recordava a tragédia de Hassouna e deixava uma pergunta incisiva: De que serve o nosso ofício se não é para aprender com a História, se não estamos presentes para proteger as vozes oprimidas?”

O festival é político quando os artistas o são”, declarou Thierry Frémaux, delegado-geral de Cannes, em conferência de imprensa. Este ano, mais do que nunca, o cinema voltou a ocupar o lugar que sempre lhe pertenceu: o da arte que confronta, emociona e transforma.

Uma Palma que carrega mais do que ouro

A Palma de Ouro é, muito, mais do que um troféu: é um espelho do seu tempo. Feita de ouro ético e cristal de rocha, carrega em si o peso da História, mas também o brilho da esperança. É símbolo de excelência artística, sim, mas também de liberdade criativa, de coragem e de compromisso.

Neste 78.º Festival de Cannes, o cinema reafirmou o seu papel enquanto força cultural e política. Ao homenagear Fatima Hassouna, ao escutar as vozes dos cineastas que recusam o silêncio e ao manter acesa a chama da memória — mesmo nos momentos de maior dor — Cannes mostrou porque continua a ser o palco mais relevante da sétima arte.

Como disse Juliette Binoche: “A arte permanece.” E, com ela, a Palma. Setenta anos depois da sua criação, continua a ser entregue a quem ousa imaginar, a quem resiste e a quem transforma. Polida com emoção, moldada com consciência, é a joia mais desejada do cinema. E continua a brilhar como se fosse a primeira vez.