Não havendo a delimitação física, a fronteira não passará da linha imaginária que marca o estar deste lado e o estar do outro lado. No que respeita à restauração portuguesa, tal como em todas as demais atividades, a fronteira foi delimitada em março último. Tem um nome, COVID-19. Esta fronteira traça os limites entre dois territórios, um antes da pandemia, outro depois - ou durante, pois continuamos a vivê-la - ao qual chamamos o “agora” e que não se limita a pedir-nos que ultrapassemos a linha física, com o “desconfinamento”, mas também psicológica. Na prática, restabelecer a confiança nas nossas vidas fora de portas, na vida pública.

A 18 de maio, a reabertura dos restaurantes e estabelecimentos similares em Portugal, na segunda fase do desapertar do laço, trouxe mais do que a enxurrada de notícias das novas regras e preceitos que envolvem o ato alimentar fora de portas. Agora há máscaras, soluções desinfetantes, talheres descartáveis, etiqueta respiratória, circuitos dentro dos espaços, ementas digitais, recomendações que, em poucos dias, interiorizámos.

Também há, neste presente, um limite, se preferirmos, uma fronteira não tangível a superar. No que toca, em particular, à restauração, o caminho é mútuo, entre clientes e proprietários/chefes de cozinha/equipas dos restaurantes.

No caso presente, o teste à confiança partilhada, a do visitante e do visitado, fez-se na nova vida da Peixaria da Esquina, do chefe Vítor Sobral, casa que reabriu portas a 19 de maio.

Como é voltar a um restaurante? Não complicar, respeitar e fruir. Fizémo-lo na companhia de Vítor Sobral
Como é voltar a um restaurante? Não complicar, respeitar e fruir. Fizémo-lo na companhia de Vítor Sobral Atrás do balcão, toda a equipa enverga máscara. Os colaboradores de sala também.

Há pouco mais de dois meses o chefe de cozinha, também empresário, à frente do Grupo Quina, detentor, entre outros, dos espaços Peixaria da Esquina, Talho da Esquina, Tasca da Esquina e Padaria da Esquina, tomou a decisão de encerrar as portas dos seus estabelecimentos. Isto, mesmo antes da entrada em vigor do estado de emergência a 19 de março último. Sobral, com operações na restauração também no Brasil, manteve nas semanas pretéritas, os serviços de take away e as entregas ao domicílio em dois dos seus espaços, um deles, precisamente, esta Peixaria da Esquina.

Como é voltar a um restaurante? Não complicar, respeitar e fruir. Fizémo-lo na companhia de Vítor Sobral
Como é voltar a um restaurante? Não complicar, respeitar e fruir. Fizémo-lo na companhia de Vítor Sobral Uma mesa mais despojada. Mandam os procedimentos que todo o equipamento que vai acompanhar a refeição seja colocado no momento em que o cliente se senta.

Nos dois quarteirões de caminhada no bairro de Campo de Ourique que medeiam entre o carro e a porta com o número 56, da Rua Correia Teles, rememoramos a etiqueta de higiene e segurança deste mundo COVID-19, uma espécie de ladainha que nos acompanha diariamente: “entrar de máscara, não tocar na maçaneta da porta, higienizar as mãos, circuito direto para a mesa, verificar se se cumprem as orientações da Direção-Geral da Saúde: mesas despojadas de adereços, talheres e restantes utensílios para a refeição colocados na presença do cliente, ementa digital, empregados “mascarados”, e tudo o demais”. Em abono da verdade, cinco minutos de caminho não chegam para pôr a matéria em dia.

Selo "Clean & Safe" da DGS alargado a restaurantes. Para que serve?
Selo "Clean & Safe" da DGS alargado a restaurantes. Para que serve?
Ver artigo

Em segundos, a ansiedade - débil - esbate-se. Impondo-se a todos os novos procedimentos, do outro lado da porta - mais uma fronteira -, está um território que se reconhece. Sim, há menos proximidade física - com os dois metros de lei, entre uns e outros-, subtraíram-se metade dos lugares, somos recebidos com um convite a higienizar as mãos e nos rostos dos funcionários e nos nossos a máscara traça um meridiano. Contudo, rapidamente o anonimato da expressão ganha um nome: Rafael Cardoso, por sinal partilhando com o autor da peça a naturalidade, a cidade de Setúbal. Percebemos que, não obstante o papelinho com o código QR, para acesso digital à ementa, esta também nos chega na voz de Rafael. A carta mantém-se, juntando duas ou três novidades, como o choco na grelha, aliado de um elenco largo de pratos, dos peixes e mariscos marinados, aos clássicos mais marisqueiros, aos petiscos com travo português e às cataplanas e açordas.

Nesta noite, o choco frito e uma açorda de bacalhau com poejos fazem-nos companhia à mesa. Uma mesa previamente higienizada - quatro ou cinco borrifadelas de uma solução alcoólica - onde não nos sentimos sós. “As reservas antecipavam uma boa casa nesta reabertura”, confidencia-nos Rafael. Há nacionais, mas também estrangeiros; há conversas e música ambiente – algum saudosismo na voz de David Fonseca – e a sinfonia de talheres, copos e operações na cozinha que nos dão o pulso do restaurante.

Como é voltar a um restaurante? Não complicar, respeitar e fruir. Fizémo-lo na companhia de Vítor Sobral
Como é voltar a um restaurante? Não complicar, respeitar e fruir. Fizémo-lo na companhia de Vítor Sobral O "novo normal", como se usa dizer.

“Promoção, promoção, promoção” e confiança para o setor

“Quase esquecemos que estamos neste novo mundo COVID-19”, lançamos em jeito de confidência a Vítor Sobral, entretanto chegado à mesa, sem jaleca, de telemóvel em punho, a inevitável máscara e com o discurso solto que conhecemos ao homem, 53 anos, que desde criança soube que queria ser cozinheiro.

“Vamos lá para fora, falamos com mais calma”, sugere-nos Sobral que, a partir desta sua Peixaria da Esquina vai tomando o pulso, à distância de algumas chamadas, à noite na sua outra Esquina, a Tasca, entretanto também reaberta. “Não quero agourar, mas isto está a correr bem para primeira noite”, refere o nosso anfitrião.

Face ao atual e incontornável momento, Sobral reafirma “a minha forma de estar na vida. Quando surgem adversidades, temos de ser mais fortes e passar uma mensagem positiva”. Na prática, ao perceber o alcance do que se levantava a oriente, o empresário falou com a equipa. “Tínhamos de reagir. Na altura, a quebra de clientes era já de 90%”.

“Tenho alguma experiência de take away, pois tenho negócios no Brasil e, aí, é uma situação comum. Também tenho uma estrutura rotinada em entregas na Padaria da Esquina. Pus, então, essa estrutura de motoristas e carrinhas ao serviço das entregas e dez dias antes de fecharmos, em março, aloquei estes recursos”.

Como é voltar a um restaurante? Não complicar, respeitar e fruir. Fizémo-lo na companhia de Vítor Sobral
Como é voltar a um restaurante? Não complicar, respeitar e fruir. Fizémo-lo na companhia de Vítor Sobral Vítor Sobral pede "promoção, promoção, promoção por parte do Estado". créditos: Lemonnierfoto

Vítor Sobral não foi o único da sua classe a reagir, embora não concorde com algumas das reações. “Vi uma atitude negativa na minha área. Há pessoas neste setor com algum protagonismo que optaram pelo sensacionalismo, o que não será prioritário numa fase como esta. Antes uma postura consertada. Dar recados ao poder político, quando se tem a menor noção da evolução das coisas, é pateta”.

Entre telefonemas, relances breves à “movida” dentro do restaurante, o chefe de cozinha, sublinha que medidas, de facto e em seu entender, o setor precisa: “Promoção, promoção, promoção. O Estado tem de a fazer, tal como está a acontecer noutros países. Nesta fase, se tiver o restaurante cheio todos os dias, porque é que quero que me baixem o IVA? Chegando a setembro e outubro, aí saberei se preciso de ajuda. Não sou economista, não sei se a ajuda é baixar o IVA, não cobrar a TSU, ou criar um fundo de apoio para quem trabalhou de maio a setembro. Lá chegados, vamos ter um histórico e saber quem chegou ao banco e se endividou. Tenho 126 funcionários e paguei os ordenados tanto em março como em abril”.

Como é voltar a um restaurante? Não complicar, respeitar e fruir. Fizémo-lo na companhia de Vítor Sobral
Como é voltar a um restaurante? Não complicar, respeitar e fruir. Fizémo-lo na companhia de Vítor Sobral O antes da COVID-19. Agora, o número de mesas foi reduzido para metade. créditos: Jorge Simão

“Fomos [restauração] das atividades mais prejudicadas. Há uma fatura que vamos ter de pagar, de preferência nos próximos quatro, cinco anos, o que nos dará uma almofada para recuperarmos. Mas, claro, temos de abrir”.

Uma abertura que Sobral vê alicerçada no cliente português. “Não podemos preparar restaurantes para turistas. Claro que temos de os acolher bem, é nossa tradição”. Ainda no que respeita aos ventos que chegam de fora, o chefe de cozinha recorda: “Onde estão agora o 50º Best [lista The World's 50 Best Restaurants] e o Guia Michelin no apoio à restauração? Sempre que alguém vem a Lisboa conhecer um ou dois restaurantes Michelin, garantidamente vem aos meus restaurantes, ou outros com este perfil, de matriz portuguesa”.

Uma conversa que, como se usa dizer, “tem pano para mangas”, mas que Sobral precisa de interromper. A noite pede atenção redobrada, embora o nosso interlocutor não se assuste perante as novas orientações para a restauração em tempo de COVID-19, “grande parte das medidas já as praticávamos com o HACCP. Agora temos as máscaras, os desinfetantes, os códigos QR, mas faz parte”.

E é de máscara posta que retomamos o caminho até à mesa na Peixaria da Esquina para o sempre bem-vindo café. Isto sem dispensarmos o novo código de cortesia. Despedimo-nos de Sobral com a amistosa cotovelada.