Nos últimos meses habituámo-nos a seguir nos ecrãs de televisão e também na plataforma digital criada para o efeito, uma dupla de apresentadores empenhados em divulgar a cozinha portuguesa, numa perspetiva nutricionalmente equilibrada.
O chefe de cozinha Hélio Loureiro e a nutricionista Patrícia Padrão são os rostos que, aos sábados de manhã na RTP1, fizeram (e fazem dentro e fora do ecrã) a defesa de uma cozinha arreigada à tradição, de produtos próximos dos territórios que lhes estão na origem e de pratos afastados do sal, açúcar e más gorduras.
Cozido à portuguesa, açorda de poejos, coelho na brasa, carne de porco com castanhas, arroz de polvo, não escusam lugar à mesa do programa de culinária “Nutriciência”. Estranho o recurso a estes pratos que associamos a uma mesa de substância quando se fala de cozinha equilibrada e sensata nutricionalmente? Não, se colocarmos a questão nos termos certos. Se, por exemplo, atentarmos nos números e percebermos que somente 27,8% dos portugueses apresentam uma adesão elevada ao padrão alimentar mediterrânico (dados do Inquérito Alimentar Nacional 2015/2016) e que acusam na sua dieta um elevado consumo de sal e açúcar.
Hortícolas, leguminosas, azeite, água, carne e peixe, estes dois últimos em quantidades quanto baste, são produtos inerentes à nossa inventiva alimentar tradicional e, também estão ligados à dieta mediterrânica, um dos padrões alimentares mais saudáveis do mundo. Uma cozinha que entronca num termo hoje pouco escutado: Frugalidade. Ou seja, moderação, que também pode estar presente num cozido à portuguesa ou numa carne de porco. Já iremos esmiuçar.
Hélio Loureiro e Patrícia Padrão são dois rostos visíveis da iniciativa que decorreu ao longo de dois anos e que chama pelo nome “Nutriciência: Jogar, Cozinhar e Aprender!”. Um empreendimento que continua com lugar cativo na plataforma online criada para o projeto e que envolveu, entre outras entidades, a Faculdade de Letras, Faculdade de Ciências da Nutrição, Faculdade de Engenharia e a União das Misericórdias Portuguesas.
A grande palavra portuguesa não é saudade, é comer
Já este 2018 os escaparates nacionais receberam uma obra onde verte a essência da Nutriciência. “Saudáveis e à Portuguesa”, com a chancela da Bertrand Editora, apresenta-nos três dezenas de pratos produzidos pelo chefe Hélio Loureiro e trabalhados em termos nutricionais por Renata Barros, Maria João Gregório, Patrícia Padrão, Nanna Lien. Uma equipa de nutricionistas que laborou igualmente nas 128 páginas deste título em muitos conselhos práticos.
Trinta receitas de sabor português que nos chegam às mãos depois de uma seleção entre 700 candidatas propostas pelas 1500 famílias de baixo nível socioeconómico que integraram o projeto visando o aumento da literacia nutricional e alimentar.
Como público-alvo, crianças de três a cinco anos em idade pré-escolar, das Santas Casas da Misericórdia de Portugal. Por natural ligação e proximidade também as respetivas famílias.
Enquanto o arroz apura falam o chefe e a nutricionista
É com “saudáveis e à Portuguesa” nas mãos que nos sentamos com Hélio Loureiro e Patrícia Padrão para, em jeito de tertúlia e com um arroz de polvo fumegante em preparação, percebermos o que move estas duas figuras ligadas à cozinha e à forma como nos alimentamos.
Damos, como tal, a voz aos protagonistas, a começar pelo chefe Hélio Loureiro: “A grande palavra portuguesa não é saudade, é comer”. Uma afirmação que o nosso interlocutor enraíza na natural “partilha que existe no ato de comer. As refeições de que nos lembramos são sempre aquelas na companhia de alguém. E esta questão da partilha, do comunitarismo é um princípio da cozinha Mediterrânica”.
Hélio Loureiro lança o mote para a conversa. Isto num tempo em que, como sublinha, falar da cozinha portuguesa e associá-la ao equilíbrio alimentar faz todo o sentido. Numa época em que navegamos na maionese”, talha com ironia.
Deixa que Patrícia Padrão aproveita e reitera, “temos de enaltecer a nossa gastronomia e voltar às origens”. “Não tanto às origens, não precisamos chegar ao Paleolítico”, acrescenta Loureiro numa alusão direta a dietas como à do tempo da “pedra antiga”.
Para o chefe portuense, também investigador do fenómeno gastronómico, “há hoje muita informação e poucos filtros. Temos de respeitar a autenticidade, a proximidade à origem geográfica dos produtos”. A este propósito, Hélio Loureiro dá um exemplo: “na Colômbia, país da América Latina, há muitas pessoas que deixaram de consumir a quinoa, base da sua alimentação. Porquê? A procura mundial disparou o preço do produto e os locais não têm como o pagar”.
há hoje muita informação e poucos filtros. Temos de respeitar a autenticidade, a proximidade à origem geográfica dos produtos
Hélio Loureiro fala e cozinha simultaneamente. Mas também nos fala sobre o arroz de polvo que apura no tacho. “Durante a Guerra Civil Espanhola muitos galegos demandaram Portugal e trouxeram o estrugido. Dado estes galegos dominarem na época o panorama da restauração em Lisboa, este tipo de confeção acabou por vingar. Se formos averiguar obras de cozinha anteriores aos anos de 1920/1930, não vamos encontrar menção ao estrugido”.
O chefe apela ao estrugido em ligação à base de cebola, alho, azeite e tomate cortado aos pedaços que acaba por receber o polvo aos pedaços e a água. A mesma cocção que irá acolher o “nosso arroz carolino”.
Patrícia Padrão aproveita a colher no tacho para fazer a ligação entre a alimentação e o equilíbrio nutricional. “Há uma ideia muito enraizada de que os pratos da tradição culinária portuguesa não são equilibrados. O que acontece é que tem havido alguma deterioração daquilo que é o receituário português. Por exemplo, a feijoada perdeu o feijão, para ganhar nas carnes. Acresce o abuso de sal e das gorduras que não são as mais indicadas para cozinhar”.
De acordo com a nutricionista, “podemos ter uma feijoada com 1000 calorias e outra com 300 calorias e em termos gustativos não vamos sentir as diferenças”. Porquê? “Porque estarão na confeção todos os ingredientes que fazem a feijoada, mas em quantidades moderadas e com privilégio para a leguminosa, o feijão”.
Hélio Loureiro traz-nos outro exemplo neste âmbito: “veja-se o arroz de morcela com grelos. Hoje em dia vamos acrescentar-lhe uns bifes, quando não é necessário. A quantidade de proteína animal é muito maior e deixámos de respeitar a sazonalidade. No passado havia o cuidado de levar à mesa determinada prato em consonância com as festividades. Os domingos eram excecionais à mesa. À sexta-feira as pessoas jejuavam. Se pegarmos nos livros clássicos da gastronomia, vamos perceber a quase inexistência da menção à carne de vaca. Há que pensar na questão da sustentabilidade alimentar e ambiental, na pegada ecológica que deixamos com a produção de carne”.
Ainda no departamento carnes, acrescenta o chefe de cozinha: “Hoje em dia estão na moda as carnes maturadas. É natural que assim se faça com a carne de animais com dez anos de idade. Em tempos passados chamava-se carne mortificada”.
Antes de 1960, depois de 1960
Para ilustrar a evolução dos hábitos alimentares dos portugueses, Hélio Loureiro, socorre-se de um dos seus passatempos, o colecionismo. “Tenho em casa um rol de pratos e das compras nas mercearias nos anos de 1960. É curioso perceber que nessa altura a lista corria invariavelmente os mesmos itens alimentares, o arroz, a massa, uma caixa de bolachas sortidas. Nada se deitava fora, tudo se aproveitava. Entretanto, começam a aparecer os frascos de sal fino para temperar as saladas e começa o desvario”.
Entra, agora, a água no polvo. Efervesce o estrugido, emanam os vapores carregados de suculência. Vai entrar em cena o arroz. A propósito do elemento líquido, recorda Patrícia Padrão: “não podemos esquecer a importância da água na cozinha. É um elemento fundamental. Por exemplo, ao cozinharmos com água a gordura não atinge uma temperatura muito elevada”.
Ainda no campo dos bons hábitos à mesa, a especialista em nutrição recorda-nos um imperativo: “a redução do consumo de sal. Os portugueses estão a consumir 10 gramas de sal por dia, o dobro do aconselhado. Há que sensibilizar as pessoas para reduzir o consumo de sal. Usar mais o alho, a cebola, o alho francês, bons substitutos gustativos do sal”.
“Esquecemos as especiarias e de como elas nos fazem bem. O gengibre está agora na moda, parece que foi inventado ontem. Por exemplo, em Aveiro, o pó de enguias não é mais do que a mistura de açafrão e gengibre. Ou seja, as pessoas consomem-no há décadas sem que se apercebam. Outro exemplo, a mostarda. Todos os mosteiros tinham mostardeiros, importantes para o uso da mostarda enquanto conservante das carnes”.
Arroz de polvo pronto. Há que servi-lo ainda quente. Remata-se com coentros picados e, ala para a mesa. Não obsta à conversa, naturalmente e ao desfilar as páginas de um livro cheio de sabor e que nos deixará muito menos culpas mesmo quando passamos o garfo e a faca por uma chanfana, por um arroz de cabidela ou por um arroz de tamboril com gambas. E como sabem bem.
Comentários