Com mão sabedora, o doceiro Nuno Gil socorre-se de um bico de pasteleiro para encimar com uma porção de doce de ovos o pastel que há poucos minutos saiu do forno. Falta ainda o toque final nas duas dezenas de pastelinhos mornos que repousam sobre a bancada de trabalho da Confeitaria São Julião, em Palmela. O miolo de noz culmina o preparo.

À fornada com os pastéis de pudim de nozes resta o aconchego das embalagens, de aspeto cuidado, seguindo para distribuição local.

Palmela: Nuno Gil, o homem que reinventa em doce a identidade da Península de Setúbal
Palmela: Nuno Gil, o homem que reinventa em doce a identidade da Península de Setúbal
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Todas as etapas estão nas mãos de Nuno Gil, homem que desde os idos da década de 1990 chamou a si uma missão, a de recuperar e reinterpretar os produtos ligados à doçaria - ou não - da Península de Setúbal. Tem-no feito lendo, pesquisando, cozinhando, conversando com as populações locais, com chefes de cozinha, com gastrónomos. No currículo, Nuno Gil traz um curso na Escola de Hotelaria de Setúbal.

Três décadas de trabalho dão margem para preencher um portefólio largo de produtos. Nuno Gil não esconde a afeição aos pastéis. Tem-nos de laranja, de queijo, de mel, de ginja, de feijão, de choco, de bolota, de maçã riscadinha (alguns deles sazonais), assim como um bombom de Moscatel. Apresenta, ainda, uma espécie de patriarca, um doce fundador desta linhagem e que remonta ao início dos anos de 1990, a Tarte de Santiago.

Em Palmela, o Pudim de Noz deu em querer ser pastel
Em Palmela, o Pudim de Noz deu em querer ser pastel Pastel Pudim de Noz. créditos: Confeiraria São Julião

Agora, com o seu Pastel Pudim de Noz, o doceiro ganha inspiração no livro de Alfredo Saramago e Manuel Fialho, “Doçaria dos Conventos de Portugal” (Assírio & Alvim, 1997) e na referência que ali é feita ao Pudim de Nozes do Convento de Jesus. Receita legada pela Madre Joana.

Uma receita com o contributo da manteiga, do açúcar, das nozes, das gemas. Nuno Gil fez as necessárias adaptações para dotar este pudim com a feição de um pastel. O resultado é um pastel de massa consistente e de textura suave e que ganha com a adição do apontamento de doce de ovos. A ´casquinha` e o miolo de noz oferecem um estaladiço agradável à dentada.

Conta-nos: “Sou um apaixonado por doçaria regional, mas acima de tudo pela doçaria conventual, pelo rigor, pelas receitas, pela veracidade da História. Há muito que faço pesquisa bibliográfica. Neste âmbito deparei-me com um livro do gastrónomo Alfredo Saramago. Na obra são citadas seis ou sete receitas, sem data específica, atribuídas ao Convento de Jesus”.

Nuno deu a conhecer esta informação ao município de Setúbal que acabou por delegá-la no diretor do Convento de Jesus “que avaliou os fundamentos do receituário. Temos ali matéria para estudar, desenvolver e para perceber a importância do Convento de Jesus no contexto da História de Portugal”, conclui o doceiro.

O Pastel Pudim de Noz encontra-se à venda por 1,20 euros, a unidade, nos concelhos de Setúbal e Palmela, nomeadamente na Casa da Baía, Moinho da Mourisca, Casa Mãe da Rota dos Vinhos da Península de Setúbal, no Mercado do Livramento e na Confeitaria Retiro Azul.

Pastel de Hidromel

Não são apenas as nozes e o doce de ovos que marcam as novidades apresentadas já este outono pela Confeitaria São Julião. Também à História, Nuno Gil resgata outro produto com raízes profundas, o Hidromel, bebida produzida a partir da fermentação alcoólica do mel, engendrada pelo homem ainda antes do aparecimento da vinha.

Apesar de admitir que o Hidromel “não tem particular expressão e tradição na cultura portuguesa”, Nuno Gil viu-se tentado na sua produção por um par de argumentos, a participação regular em feiras medievais e a oportunidade de incluir neste seu novo pastel alguns dos produtos que marcam o carácter da região de onde o doceiro é natural, o concelho de Palmela.

Foquemo-nos, primeiro, na Idade Média, através das palavras do próprio doceiro: "As noites nas tavernas medievais dos séculos V ao XV, diz a história, eram de pura anarquia. Homens, ora festejavam, ora se engalfinhavam por qualquer motivo. Os relatos da época contam que toda e qualquer manifestação pedia um item, indispensável para eles em qualquer ocasião. O que eles tomavam era uma beberagem doce, sagrada e ´meio mágica`, o hidromel".

Em Palmela, o Pudim de Noz deu em querer ser pastel
Em Palmela, o Pudim de Noz deu em querer ser pastel Pastel e bolo de Hidromel. créditos: Confeitaria São Julião

No caso vertente, Nuno Gil produz um pastel não partindo diretamente do hidromel, antes de uma bebida com produção local, o Licor de Hidromel. “Quis a receita o mais rústica possível. O pastel tem açúcar mascavado, ovos, farinha, leite, limão, laranja, amêndoa, canela, erva-doce, o licor de hidromel, como já referi, passas de uvas, casca de limão cristalizada e o mel”.

Por agora o pastel de hidromel conta com uma distribuição de pequena escala. Encontramo-lo, por exemplo, na Confeitaria Retiro Azul, em Palmela. Contudo, num futuro próximo, Nuno Gil garante “expandir a sua distribuição”.