“Sugiro-lhe o quiosque do café do Parque das Conchas. É um local calmo, onde podemos conversar”. Foi desta forma que arrancou, ainda por telefone, a conversa que se prolongaria num frente a frente com uma mulher de vida dedicada à história e que, a dado momento, liga essa paixão de sempre a uma das mais doces narrativas da gastronomia portuguesa. Maria Máxima Vaz no interlúdio a esta conversa, rodeada de natureza, faz menção de sublinhar: “não sou gastrónoma, sou historiadora”.
Certo, balizamos como ponto de partida. Uma historiadora, também investigadora e por largos anos professora que se interessou nesses âmbitos, há umas quantas décadas, por uma casa religiosa responsável por algumas das mais doces memórias das copas portuguesas e que, no século XVIII já arrebatava “D. João V, monarca guloso, apaixonado e galanteador, e um dos mais celebrados comedores de ladrilhos de marmelada”, citando Gustavo de Matos Sequeira, jornalista, político e escritor Olissipógrafo.
Pode o leitor nunca se ter deleitado ou ouvido falar do manjar real, dos arrepiados, do manjar branco, dos tabefes, dos fartens ou dos esquecidos. Por certo não lhe terá escapado a menção à marmelada de Odivelas que, conta, inclusivamente com Confraria Gastronómica e com qualificação e registo da marca “Marmelada Branca de Odivelas.
Como também não será estranho ao leitor dado à gulodice, o queque (“Keque” no original), os ovos-moles, as queijadas de amêndoa.
Todos eles doces provenientes da mesma casa, o Mosteiro de S. Dinis e S. Bernardo de Odivelas fundado pelo rei D. Dinis em 1295 e destinado à ordem de Cister. Entre o longínquo século XIII e o momento presente medeiam mais de 700 anos e neles cabem a história da mais rica casa religiosa feminina do nosso país, da pobreza em que cai após as Guerras Liberais de 1836, da introdução do açúcar na Europa, das `campanhas eleitorais` das abadessas, de um manuscrito que se pensou perdido, depois resgatado, transposto para livro e, agora, esse mesmo documento, revisto e investigado pela nossa interlocutora, licenciada em História, mestre na primeira leva da Faculdade de Letras de Lisboa (1984) e, mais tarde, com um doutoramento, “com nota máxima”, como sublinha, “sobre as leis sociais e horários de trabalho na Primeira República”.
É bem mais longe no tempo que mergulha a nossa curiosidade e conversa com Maria Máxima Vaz, olhar arguto, cinzelado a azul; uma beirã nascida no Sabugal com obra publicada (ex. “No tempo de D. Dinis”, “O Concelho de Odivelas, Memórias de um Povo”).
Situemo-nos, então, no século XIII e nas fundações do Mosteiro. “Nele acolhiam-se as filhas de famílias nobres, cujo futuro era incerto. Ficava garantido o abrigo e o sustento com a mesma segurança de vida dos palácios familiares. Reis e nobres faziam largas doações a estes mosteiros”.
“Repare, o rei vai fundar o mosteiro numa quinta dele que tinha Paço Real. A corte tinha fácil acesso, era grande o número de quintas nas proximidades da capital do reino. Frielas, Unhos, Camarate, Sacavém eram terras da Corte e tiveram um importante papel. Dou-lhe um exemplo, o filho de D. João I, Duque de Bragança, casou em Frielas”.
Desconstruímos, neste ponto, uma ideia feita. Vida monacal não pressupunha, neste caso, voto de pobreza ou sentença de completa clausura. A este propósito conta-nos Maria Máxima Vaz: “a entrada na vida de clausura não obrigava a vocação para a vida religiosa. As jovens entravam no mosteiro com as criadas que ali continuavam a servi-las".
“A partir de certa altura muitas destas jovens nem se vestiam de freira, usavam vestidos da corte, muitas só iam ao mosteiro para dormir. Repare, não era fácil mandar nestas senhoras porque eram filhas de nobres. Claro que havia freiras cumpridoras das regras”, assegura-nos Maria Máxima Vaz, acrescentando, “um frade quis impor hora de recolher e as jovens revoltaram-se”. Na época o mosteiro ficava fora de Lisboa, a duas léguas, distância longa para se fazer à noite, depois das festas.
Com a abundância de açúcar chega a tradição doceira
Naturalmente, para existir uma tradição doceira, há que existir o ingrediente base que lhe dá o travo guloso, o açúcar. “Na Idade Média não havia sobremesas doces, consumia-se muita fruta fresca e seca. O açúcar era um bem raro, caríssimo. Pensa-se que a cana-de-açúcar tenha origem na Índia e até ao século XIII divulgada na Europa pelos povos árabes”. A democratização do açúcar acaba por ser feita muito mais tarde pelos portugueses. Os nossos antepassados percebem a importância da economia de escala. Inundam o mercado com grandes quantidades de ouro branco. Os engenhos no Brasil serviam a procura crescente de açúcar.
“No século XVII já o número de doceiros em Lisboa ia em 54, mais 12 biscoiteiros e ainda moças que vendiam pelas portas”, conta-nos a nossa interlocutora baseada num dos documentos em que se apoiou nesta sua investigação, “o registo de Frei Nicolau de Oliveira”.
Na prática o açúcar acaba por chegar dentro das portas do mosteiro para um casamento com as gemas, as claras - então utilizadas para branquear os hábitos-, as frutas frescas e secas.
“Não há registos que o comprovem, mas deduzo, e é só uma hipótese, que vindo estas jovens de casas abastadas, com cozinhas ricas e levando as suas empregadas, estas conheciam doces e por esta via estes tenham entrado no mosteiro”.
“A disponibilização destes doces para fora do mosteiro ter-se-á feito através da Roda, que neste caso não era a dos enjeitados; era o correio de onde saíam as encomendas dos doces. Ou seja, havia já uma clientela".
Têm o entrelaçar dos factos destas coisas. “No século XVI as abadessas até então nomeadas pelos reis, passam a ser eleitas pela comunidade. Tinham um mandato de três anos e faziam verdadeiras campanhas eleitorais, oferecendo festas pagas pelas famílias com dinheiro. Paralelamente, decorriam outras festas, mais acessíveis, os Outeiros, pelo São João, frequentadas por poetas e nobres boémios, atores. Aí eram oferecidos em pratos os doces. As religiosas procuravam que os doces deterioráveis fossem consumidos nos dias de festa. Outros, como os Esquecidos e a Marmelada, aguentavam vários dias. A marmelada secava ao sol e era vendida aos quadradinhos, cristalizada”. Fora das festas estas delícias eram divulgadas como “maravilhas”. Chamemos-lhe um bom golpe de marketing com três séculos. Havia inclusivamente o cuidado de manter a uniformidade nos doces, no “sabor, textura, consistência para agradar aos clientes, o elogio era importante e estimulava”, conclui Maria Vaz.
A tempestade no século XIX
Em 1834, após as Guerras Liberais e a nacionalização das ordens religiosas, há perdas de regalias, cortes nas rendas e nas doações. Neste quadro, o Mosteiro de Odivelas não é exceção. Há que subsistir nas dificuldades. “Um dos recursos a que lançaram mão para sobreviver foi a produção de doces que vendiam para a corte e palácios da nobreza. Outro recurso, a venda de tabaco que chegava do Brasil. Também transacionavam com objetos de arte que ficaram na casa e iam vendendo em períodos mais difíceis”, conta-nos a historiadora e investigadora.
Somos aqui chegados através das palavras da nossa interlocutora a um quase ponto final no percurso de seis séculos do Mosteiro de Odivelas. Termina um capítulo para abrir outro, o que liga a historiadora ao trabalho de investigação que tem agora entre mãos. Um documento com mais de 150 páginas datilografadas onde expõe com pormenor os factos aqui traçados e elenca todas as receitas que sobreviveram ao fim da antiga cozinha do mosteiro.
“As receitas dos doces foram-nos legadas pela monja cisterciense D. Carolina Augusta de Castro e Silva, última religiosa a sair do Mosteiro de Odivelas. Em 1888 retira-se para uma casa sua, situada no Largo do Couto, em Lisboa, onde viveu com a senhora D. Virgínia Adelaide Simões dos Santos até à morte, em 1909. Foi esta religiosa que nos legou o manuscrito com as receitas que chegaram até nós”, descreve Maria Máxima Vaz.
Um manuscrito que há anos motiva uma procura por parte da investigadora. Encontrei-o referido “em 1970, exposto numa iniciativa da Biblioteca Nacional sobre culinária. Mais tarde reencontrei menção ao manuscrito em ´Doces lembranças do mosteiro de Odivelas´, título de uma brochura em mostra, em 1986, numa iniciativa da Biblioteca Nacional e conduzida pelo Dr. Paulo Caratão Soromenho”. A historiadora teve uma deceção. O documento não continha as receitas.
“Mais tarde, vim a encontrar o caderno original nas mãos da D. Maria Helena dos Santos Abrantes, em Caneças. Através de uma conhecida desta, tive acesso ao caderno. Eram as receitas manuscritas pela última freira, as genuínas, as autênticas”.
Maria Vaz inicia, de acordo com a própria, “um longo caminho de diligências para salvaguardar o documento. É património cultural de todos nós. Deveria ser entregue num arquivo que o pudesse tratar e guardar. Por exemplo, a Torre do Tombo”.
Catorze anos volvidos, o manuscrito é confiado por Maria Helena dos Santos Abrantes a Deolinda Santos, Diretora do Instituto D. Afonso.
“Entretanto, eu já havia fotocopiado o manuscrito para preservar o seu conteúdo. Entreguei um exemplar à senhora que na altura exercia, no Instituto de Odivelas, o cargo de Regente, outro nos serviços culturais da Câmara de Loures, um terceiro na Junta de Freguesia de Odivelas, o quarto ficou na posse de Maria Amélia Figueiredo, à data presidente da Junta de Freguesia de Caneças. O quinto exemplar ficou nas minhas mãos”.
Em 2000 a editora Verbo lança, “para grande satisfação minha” o “Livro das receitas da última freira de Odivelas”. As receitas estavam salvas e ao dispor de quem as pudesse e quisesse adquirir.
Agora, a historiadora quer publicar nova edição. “Um livro de preço acessível, ao alcance de todos”. Quer, também retificar quantidades “dado no livro anterior não estarem com as equivalências bem transpostas o que induz em erro”.
Fique o leitor informado, a título de exemplo, que uma canada corresponde a 1,5 l, um quartilho a 0,375 l, um marco a 0,230 Kg e uma onça a 0,030 Kg. “Em tempos passados havia muitas doceiras e elas é que, pela experiência, sabiam calcular as quantidades dos ingredientes e quando se tratava de misturar aromas e especiarias, a medida era a seu gosto. O excesso de rigor nunca foi seu apanágio”, remata Maria Máxima Vaz em fim de conversa.
Um último fôlego de palavras. A receita da Marmelada Branca tal como a podemos ler, adaptada, da prosa do já referido manuscrito: “Vão-se descascando os marmelos e deitando-se em água fria. Põem-se a ferver em lume forte; estando bem cozidos se passam por peneira. Para 1 Libra de massa, 2 Libras de açúcar em ponto alto de sorte que deitando 1 pinga na água, coalhe; tira-se o tacho do lume e se lhe deita a massa muito bem desfeita com a colher; torna ao lume até levantar bolhas; tira-se para fora e bate-se até esfriar para se pôr em pratos a secar”.
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