Não resistimos começar esta entrevista pela pergunta óbvia: o segredo é a alma do negócio?

É muito mais do que isso: é a razão de ser do blogue. Nós sentimos que fazia falta um órgão de comunicação que não se limitasse a descrever as maravilhas dos restaurantes tal como o António Costa descreve a pujante situação económica do País. Um site que falasse uma linguagem que todos compreendem e que criticasse os restaurantes e os hotéis com a mesma honestidade com que uma mulher critica a sogra. E isso só se consegue se formos tratados sem as mordomias que normalmente são dedicadas aos críticos profissionais.

Nós achamos que a maneira mais genuína e honesta de relatar uma experiência num restaurante ou num hotel é se formos recebidos como qualquer cliente anónimo: sem bebidas oferecidas, sem atenções especiais, sem os mimos que os críticos profissionais recebem. E é por isso que precisamos de manter o segredo sobre a nossa identidade.

Num meio tão pequeno deve ser difícil manter esta vida dupla, certo?

Uma coisa que aprendemos desde que lançámos o blogue foi a respeitar devotadamente os homens e mulheres deste país que conseguem manter relações extraconjugais sem serem descobertos. Ter uma vida dupla é `muuuito` difícil. Não imagina o que é estar constantemente a trocar de conta no email, de utilizador no Facebook ou de perfil no Instagram; ter de minimizar o blogue no telemóvel quando o amigo nos pergunta o que é que estamos a fazer; não falar de Casal Mistério quando estamos em jantares de família.

O episódio mais próximo da desgraça que vivemos foi protagonizado por Ela, quando, numa tarde de domingo, resolveu atualizar o blogue com a mãe Dele em casa e acabou a ter de explicar que Casal Mistério não tinha nada a ver com troca de casais – era só um blogue de comida e hotéis que acidentalmente tinha acabado de encontrar.

Há um “Casal Mistério” na blogosfera. Nós tentámos desvendar o enigma e…
Há um “Casal Mistério” na blogosfera. Nós tentámos desvendar o enigma e… Até hoje esta é a única foto oficial deste "Casal Mistério". Terá uns anitos como se percebe pela imagem em anexo.

Também é mistério ou podem contar-nos como é que em três anos chegam ao livro, à rádio, ao canal de vídeos e ao evidente sucesso na blogosfera. É megalomania, como dizem na abertura do vosso livro?

Há uma coisa essencial para se conseguir o sucesso, seja na blogosfera, seja na imprensa ou em qualquer outro ramo da comunicação, é o respeito pelos leitores. É esse respeito e admiração pelos leitores que nos leva às duas obrigações seguintes: trabalho e seriedade. Com trabalho, consegue-se a persistência que é essencial para chegar às pessoas e levá-las a conhecer o blogue; com seriedade, nas críticas, nos elogios, nas avaliações, na forma transparente como apresentamos a publicidade, consegue-se o reconhecimento dos leitores que os leva a voltarem.

É verdade que nunca imaginámos chegar até aqui e num tão curto espaço de tempo. Mas os nossos leitores têm sido de uma generosidade sem limites.

Há um “Casal Mistério” na blogosfera. Nós tentámos desvendar o enigma e…
Há um “Casal Mistério” na blogosfera. Nós tentámos desvendar o enigma e… Uma das receitas publicadas no primeiro livro do "Casal Mistério". Mousse de chocolate e banana. A receita tem apenas três ingredientes.

De qualquer forma gostaríamos que se apresentassem. Ele e Ela é pouco, precisamos saber um pouco mais.…

Eu chamo-me Ele, sou alto, magro, olhos azuis e corpo atlético. Pelo menos é assim que me vejo. Se alguém vir outra coisa diferente, estará seguramente enganado... Tenho o espírito de aventura de um piloto de aviões, o romantismo de um escritor, a meticulosidade de um engenheiro bioquímico, o apetite de um lutador de sumo e a curiosidade de um jornalista (esta última não é obrigatoriamente uma qualidade).

Eu chamo-me Ela e o nome surgiu porque adoro que Ele me trate assim: “- Ela já jantou? -Ela quer um prato especial para o pequeno-almoço?”

Odeio cozinhar tanto quanto adoro comer e gosto tanto do meu trabalho que, sinceramente, preferia nem falar sobre "ele" (o trabalho, não evidentemente o meu marido). Vivo para viajar - de carro, de avião, de barco ou de comboio, desde que seja viajar - e prefiro descrever um destino do que descrever-me. Por isso, imaginem as Maldivas, as praias de areia branca, a água azul-turquesa, os corais de todas as cores, o sol abrasador, a margarita para refrescar. Agora ponham-lhe uma peruca loura na cabeça. Como dizia o Leclerc, do 'Allo, 'Allo, "It is I, Ela".

Na próxima página descubra os gostos culinários deste Casal Mistério.

Na apresentação ao vosso livro garantem que nos propõem 73 pratos que vão revolucionar as nossas vidas na cozinha. O que os torna transcendentes?

Uma mousse de chocolate, de um chef com três estrelas Michelin, que leva apenas dois ingredientes não é só a única receita do mundo que tem menos ingredientes do que estrelas Michelin, é uma revolução em qualquer cozinha. E depois há também bolos divinais feitos numa caneca, pratos estranhamente saudáveis ou as melhores receitas dos restaurantes para fazer em casa.

Neste livro juntámos as melhores receitas que comemos ao longo do ano e temos de tudo: pratos saudáveis, assim-assim ou para a desgraça. Mas todos eles surpreendentes.

Há um “Casal Mistério” na blogosfera. Nós tentámos desvendar o enigma e…
Há um “Casal Mistério” na blogosfera. Nós tentámos desvendar o enigma e… Em 2016 chegou aos escaparates o livro "As Escolhas do Casal Mistério". 73 receitas e muitas dicas.

Num universo editorial com os escaparates pejados de livros de gastronomia o que torna a vossa obra singular?

Ao contrário da maioria dos livros de receitas, o nosso não é um livro de um cozinheiro que tem um estilo e um leque de pratos limitado. O nosso é um livro de quem adora comer e passa a vida a comer. Por isso juntámos neste livro as melhores receitas que provámos, originárias de vários cozinheiros e com estilos absolutamente diferentes. E é só por isso que conseguimos ter no mesmo livro uma receita de um chef com duas estrelas Michelin, como José Avillez, ao lado de uma receita de lasanha feita em poucos minutos numa caneca.

Este livro reúne o melhor da comida: venha ela de onde vier.

A vossa escrita vem carregada de uma certa ironia. Podemos entendê-la como um “Descontraiam, não levem isto muito a sério” ou como um a “brincar estamos a falar de coisas muito sérias”?

É mais um “Não leve a vida demasiado a sério. Já que você veio ao mundo a chorar, pelo menos tente sair dele a sorrir”.

Houve uma grande colaboração de chefes de cozinha neste vosso livro. Querem partilhar connosco essa experiência?

O livro está dividido em duas partes: na primeira parte, nós partilhamos as melhores receitas que fizemos em casa e que são de chefs, sites e blogues internacionais; na segunda parte, nós juntámos as melhores receitas que provámos em restaurantes portugueses, e essas receitas são, muitas delas, receitas inéditas partilhadas, pela primeira vez, pelos chefs que as criaram. Isso só foi possível graças à enorme generosidade e simpatia dos chefs que contactámos. Ainda por cima, sem fazerem qualquer ideia de quem nós somos e depois de terem sido, algumas vezes, criticados no blogue.

O que fizemos foi encontrar uma representante que contactou os chefs um a um e que serviu de intermediária em todo este processo. Foi um trabalho complexo e gigantesco, mas o resultado deixa-nos tão orgulhosos como o José Sócrates cada vez que fala de si próprio.

Há um “Casal Mistério” na blogosfera. Nós tentámos desvendar o enigma e…
Há um “Casal Mistério” na blogosfera. Nós tentámos desvendar o enigma e… Outra das propostas que encontramos no livro. Esta, uma Piza sem glúten e com base de couve-flor.

Se tiverem de encontrar quatro ou cinco palavras que definam os gostos culinários de cada um quais são?

Ele: Comida, comida, comida, comida, comida (o apetite Dele não tem limites).

Ela: Dieta, emagrecer, calorias, engordar (a vida Dela à mesa divide-se entre esta contradição).

O que vos irrita, realmente, no serviço/comida de um restaurante?

Nós somos dificilmente irritáveis. Mas a falta de educação de um empregado é difícil de aceitar. Felizmente, são cada vez mais raros casos desses.

Volvidas centenas de críticas a restaurantes ainda conseguem manter o anonimato? Não se depararam com nenhuma situação mais constrangedora?

Sempre que visitamos espaços, usamos nomes falsos que variam entre Vladimir Putin e D. Duarte de Bragança. Muitas pessoas que nos conhecem tentam adivinhar se as vozes que ouvem todas as sextas-feiras, na rubrica semanal que temos na Rádio Comercial, são as nossas. Mas eles não conhecem os mistérios da manipulação da voz na rádio...

Uma vez íamos sendo apanhados com um nome falso num restaurante. A receber-nos estava uma pessoa que, por acaso, conhecíamos. Quando nos perguntou se tínhamos marcação, fomos obrigados a disfarçar para ele não perceber que quem estava ali à sua frente não era o Odorico Paraguaçú.

Na próxima página saiba como se entende o Casal Mistério quando não partilha a mesma opinião.

Ao assumirem este papel anónimo estão, perdoem-nos a redundância, a criticar os críticos?

Não se trata de criticar ou de julgar quem faz crítica gastronómica, mas é inegável que, ao visitar um restaurante de forma descoberta, um crítico gastronómico será tratado de forma diferente daquela que é tratado um cliente normal: haverá seguramente uma preocupação para não o deixar tanto tempo à espera, para caprichar no prato que lhe é servido, para lhe dar um tratamento especial. E isso vai influenciar a crítica que é feita.

Pelo contrário, nós queremos relatar uma experiência igual à que tem um cliente anónimo e não o prato caprichado que é servido ao crítico gastronómico.

Já vos aconteceu terem uma opinião contrária em relação a um restaurante, um prato, etc. Que critério prevalece nessas alturas?

Já. E, nesse caso, relatamos a opinião dos dois. Não há nada como fazer as críticas com total transparência e honestidade.

Esta pergunta é para Ela: Ele é um bom cozinheiro? Se sim, quais as especialidades.

Para mim, é o Paul Bocuse da Madragoa. Apesar de ser um bocadinho mais novo que o Paul Bocuse e ligeiramente menos talentoso – ah, e apesar de não viver na Madragoa. No entanto, faz um húmus de beterraba divinal. E umas fabulosas receitas com queijo derretido. E uma estrondosa tarte de Nutella com base de bolacha Oreo.

Esta pergunta é para Ele: Ela é gulosa? Qual a sobremesa que a tira do sério.

Gulosos eram os glutões do detergente Presto. Ela morre só de cheirar um bolo de chocolate a 15 km de distância.

Há um “Casal Mistério” na blogosfera. Nós tentámos desvendar o enigma e…
Há um “Casal Mistério” na blogosfera. Nós tentámos desvendar o enigma e… "Ela" é gulosa, aliás, é muito mais do que gulosa. Esta é uma das suas tentações, um soufflé sugerido pelo blogue Chef Steps.

Mantêm uma boa relação com blogueres de outros países? Isto porque recorrem a muitas fontes internacionais.

Felizmente, temos encontrado ótimas pessoas na blogosfera e recebemos vários contactos de blogueres internacionais a agradecerem a partilha de receitas deles no Casal Mistério.

Esta é a pergunta óbvia de todas as pessoas que têm um blogue. É possível viver apenas do que se escreve na blogosfera?

Nós acreditamos que o futuro dos media e da comunicação passa muito também por projetos independentes como o Casal Mistério. Além de serem mais livres e genuínos do que uma grande publicação da imprensa tradicional, têm um público cada vez maior e uma capacidade gigante de fazer produtos flexíveis e originais.

Não se trata de viver apenas do que se escreve, mas de tornar os blogues projetos sérios e multidisciplinares de comunicação, com conteúdos que vão do texto ao vídeo, passando por outros formatos. Nesse sentido, um blogue pode gerar receitas suficientes para se financiar.