É lugar-comum não esquecer o item amor no rol de ingredientes da cozinha produzida com alma. Também lhe podemos chamar afeto, dedicação e, mesmo, alargando o conceito, apego à memória. Tudo isto, Graça Pacheco Jorge, macaense de nascimento, autora do livro “A Cozinha de Macau de Casa de Meu Avô”, transporta para a sua cozinha. Chamemos-lhe, então, cozinha de e com memória.

No caso em apreço, memória pela sua família, desde o século XVII vivendo no território que é Macau. E, em particular, guardiã e divulgadora da memória de José Vicente Jorge, juiz, sinólogo, homem da cultura, gastrónomo e avô da mulher que agora se senta à minha frente no Restaurante Bistrô & Tapas, do Hotel Tryp Lisboa Oriente.

Graça Pacheco Jorge, Confreira de Mérito da Confraria da Gastronomia Macaense, acaba de sair da cozinha da unidade de restauração onde, pelo segundo ano consecutivo, junta o seu saber culinário de afetos ao profissionalismo (e também apego) do chefe residente Paulo Anastácio.

Graça participa numa iniciativa que ao longo do ano traz até Lisboa, em períodos de dez dias, pratos de cozinhas de outras geografias, mais ou menos próximas. Algo que já havíamos documentado aqui, no decurso da semana gastronómica da Índia, mais propriamente do estado de Gujarate, com a presença de outra empreendedora, a médica Suryakala Chhaganlal.

Agora, esta é uma conversa sobre o risco de ver desaparecer um dos traços identitário de Macau, a sua cozinha sincrética, influenciada por tantas latitudes quantas as da Diáspora portuguesa. É também uma conversa em torno do esforço de décadas desta mulher, nascida em 1942, que deixou a sua Macau aos 20 anos, de fundar fora de Macau o reconhecimento sobre uma cozinha de séculos, singular e com um carácter distinto da culinária chinesa.

Macau e a cozinha de afetos e memórias de uma sua guardiã, Graça Pacheco Jorge
Macau e a cozinha de afetos e memórias de uma sua guardiã, Graça Pacheco Jorge Graça Pacheco Jorge no decurso da iniciativa que decorreu no Hotel Tryp Lisboa Oriente em torno da cozinha de Macau.

Uma troca de palavras calma como a nossa interlocutora. O que não invalida o entusiasmo na sua voz e a natural emoção de quem em conversa reaviva o palacete dos antepassados entretanto desaparecido, a coleção de mais de 10 mil peças de seu avô e o bulício que num outro tempo, numa outra Macau, insuflou de vida a cozinha familiar.

Graça Pacheco Jorge que cozinha é esta que continua a ser uma ilustre desconhecida para os portugueses?

Já a viver em Portugal, nos anos de 1960, percebi, para grande tristeza minha, que a cozinha de Macau não era conhecida. Falava das minhas tradições macaenses, o que incluía a gastronomia, e as pessoas perguntavam-se se era cozinha chinesa. Claro que não, embora tenha influências, naturalmente. O território era conhecido, mas não a sua comida. Em Macau, os macaenses em suas casas cozinhavam mas não divulgavam essa cozinha fora de portas. É uma mesa de família, apetitosa, requintada e diversa nos ingredientes.

Todas as famílias têm os seus segredos e, mesmo dentro da minha família, o meu tio-avô, do lado do meu avô, tinha uma cozinha um pouco diferente. Por exemplo, a Cecília Jorge [autora do livro À Mesa da Diáspora”- 2004], minha prima, também edita livros sobre a cozinha macaense da Diáspora e as receitas que apresenta são ligeiramente diferentes das minhas.

Dou-lhe outro exemplo, há cem maneiras de confecionar o Minchi, carne de porco e de vaca picadas, com molho de soja, um pouco como o bacalhau [risos]. Na minha casa fazia-se só com batata frita ou com orelha-de-rato [um fungo que é desidratado]. Há macaenses que a servem com ovo estrelado. Nós não fazíamos, é algo mais recente.

Mas faltam os divulgadores. A Graça é a única exceção?

A Confraria Gastronómica Macaense também divulga a cozinha. Há muitos macaenses que na Diáspora foram para os Estados Unidos, Canadá e Austrália. As casas das comunidades fazem essa comida, mas julgo que não há restaurantes a divulgá-la junto do público em geral.

Em Macau também há espaços que apresentam a cozinha portuguesa e a macaense. Contudo, quando as apresentam não é feita a distinção. Quem vai comer não sabe o que lhe é levado à mesa.

Foram também publicados livros de cozinha que incluíam receitas de Macau, mas tão deturpadas. Não podia ser assim.

A partir de 2004 comecei a ir ao Porto participar em workshops sobre a cozinha de Macau numa procura de a divulgar. Também ministrei formações na Casa de Macau, em Lisboa.

Nas escolas de hotelaria esta cozinha é ensinada, mas depois, cá fora, os executantes dispersam-se. Deixo uma ideia: gostaria que estes jovens fizessem um restaurante de cozinha macaense, não há nenhum em Portugal.

Entretanto, em novembro de 2017, Macau ganhou o título de “Cidade Criativa” atribuído pela UNESCO para a área da gastronomia. Julgo que com ele já se está a fazer mais para divulgar a nossa cozinha.

Não posso também deixar de elogiar o Hotel Tryp Lisboa Oriente, que organiza pelo segundo ano estas jornadas da cozinha macaense. Deveríamos ter ações como esta, aqui no Hotel, replicadas em outros espaços. É muito importante mostrar, dar a provar a genuína cozinha de Macau. O público gosta e volta.

Macau e a cozinha de afetos e memórias de uma sua guardiã, Graça Pacheco Jorge
Macau e a cozinha de afetos e memórias de uma sua guardiã, Graça Pacheco Jorge Galinha com Pepino. créditos: Graça Pacheco Jorge.

Antes de nos ocuparmos do seu livro “A Cozinha de Macau de Casa de Meu Avô”, gostaria de perceber como enriqueceu a História esta mesa macaense?

O primeiro português a chegar à China, em 1513, foi Jorge Álvares que era um capitão a mando do Governador de Malaca, Jorge de Albuquerque. Álvares casou-se com uma chinesa e por lá ficou, naquele território. Diz-se que a partir deste tronco ter-se-á ramificado a família Jorge, que ficou em Macau, e a família Álvares em Hong Kong.

Nesta história há um facto importante, os portugueses não levavam de Portugal as suas mulheres. As que estavam com os primeiros habitantes mercadores de Macau eram mulheres de Malaca, da Índia, de Timor e até do Japão. Isto porque os portugueses depois de instalados na China foram até ao Japão, até que este país se fechou. Os missionários foram expulsos e rumaram a Macau. Essas mulheres começaram a fazer os seus pratos, trocavam impressões entre si. Faziam os seus petiscos em ambiente de tertúlia culinária. Partindo daqui podemos perceber toda a troca que se gerou. Para mim será a primeira cozinha de mistura do Mundo.

Chegam, entretanto à mesa uns bolinhos de farinha, açúcar e ovos, cobertos com sementes de sésamo, denominadas em Macau Gergelim. Simultaneamente, é-nos apresentado um Arroz Xau Xau, que junta as tirinhas de carne de porco, os  camarões, o chouriço chinês adocicado. Um arroz frio onde não falta o ovo mexido esfarrapado.

Falemos de livros, nomeadamente o seu “A Cozinha de Macau de Casa de Meu Avô”.

Sim, o meu primeiro livro foi publicado em Macau em 1992 pelo Instituto Cultural de Macau. Era importante trazer à luz esta obra, pois corremos o risco de perder esta cozinha com a próxima geração. Mais tarde fiz uma segunda edição já em Portugal com a chancela da Editorial Presença. Em 2014 saiu nova versão, desta vez bilingue e uma outra, publicada em chinês. Curiosamente este, para o leitor chinês, esgotou a primeira edição e já vai na segunda. Os chineses visitam Macau porque é um sítio diferente, com uma arquitetura diferente.

Este seu livro é mais do que um reabilitar de memórias gastronómicas familiares, é também uma homenagem. Quer explicar-nos?

Sim, este meu livro é sobre a minha família, antiga em Macau, com origens no século XVII, pelo lado materno. Os primeiros membros da minha família que vieram para o reino estudar foi já na geração da minha mãe, nos anos 30 do século XX. Nos anos de 1920 quando começou a Diáspora é que estes macaenses começaram a sair do território, para estudar fora.

Por outro lado, o livro é uma homenagem, como o título indica, ao meu avô. José Vicente Jorge. Uma figura extraordinária, um diplomata, juiz, advogado, era sinólogo, falava mandarim. Um homem que esteve em Pequim onde lhe nasceram dois filhos. No fim da Monarquia, início da República, no início do século XX, foi o meu avô que ficou a tratar da Legação.

O meu avô tinha uma enorme coleção de arte chinesa, com 10 mil peças. Um acervo que levou 50 anos a construir.

Durante a Guerra [a Segunda Guerra Mundial] não houve grandes problemas. É claro que havia falta de comida, Macau estava lotado com refugiados. Foi já no fim do conflito, em 1944/1945, que os problemas se agudizaram. Os filhos convenceram o meu avô a deixar Macau. O meu avô chega então a Portugal. Nessa altura teve de se desfazer da sua casa, da coleção a que tinha tanto amor.

Viveu em Portugal durante dois anos com grande desgosto. Vi-o já aqui; passei umas férias com ele. Já em Macau, soube que havia morrido. A coleção dispersou-se e pouco ou nada sobrou. Tenho algumas coisas em casa que tenciono oferecer a Macau para um museu. É um sonho que acalento.

Macau e a cozinha de afetos e memórias de uma sua guardiã, Graça Pacheco Jorge
Macau e a cozinha de afetos e memórias de uma sua guardiã, Graça Pacheco Jorge Empada de Peixe. créditos: Graça Pacheco Jorge.

Uma casa que, entretanto, já não existe. Somente nas suas memórias…

Nos anos 60, quando se deu a Revolução Cultural na China, umas freiras que lá ficaram, deixaram a casa. Mais tarde, na mesma década, ocorreu um incêndio na casa e esta sucumbiu.

Compreendo o desgosto do meu avô, pois só vim para Portugal com 20 anos e senti-me desenraizada. Quando sai de Macau tive um bloqueio e não me consigo lembrar de episódios.

A conversa é por momentos interrompida. Sobre a mesa descansam agora as tacinhas com a Sopa de ovo com lagu. Este é aquilo a que em Portugal chamamos Tapioca e que, aqui, traz consistência à sopa. Uma sopa onde vamos encontrar a carne de galinha desfiada, os espinafres, os cogumelos chineses e o caldo de galinha.

Como nasce o gosto do seu avô pela cozinha?

A minha avó era de uma família indiana. Nasceu já em Macau e aí ficou onde foi educada. A mãe do meu avô era de Xangai, na China. A avó trouxe receitas da família dela da Índia e a bisavó tinha as suas receitas de Xangai. O meu avô era um verdadeiro gourmet, inventava receitas. No meu livro há muitas receitas com o seu nome, por exemplo o Pato à José Vicente Jorge.

Esta é uma cozinha de convívio, certo?

Sim. A casa dos meus avôs era muito visitada. O poeta Camilo Pessanha que trabalhou em conjunto com o meu avô, ia muitas vezes à casa da minha família. Pessanha gostava muito de alguns pratos.

Como chegam as receitas até ao seu livro?

A minha avó, que morreu cedo, ia apontando todas as receitas. Felizmente as minhas tias guardaram as receitas. Insisti muito e lá consegui que me passassem esses escritos, embora a minha tia mais velha tivesse receitas que não me ensinava. Eu lá andava atrás dela. Batia à porta da cozinha. Acabou por mas dar. Um tesouro que publico neste livro.

Como disse anteriormente, esta obra honra essa memória e é dedicado ao meu avô. Morreu muito cedo para mim, tinha quatro anos. Sou a neta que preserva a gastronomia de sua casa. Mas também para que Macau mantenha a sua identidade.

Graça, há uma refeição em Macau, o Chá Gordo que ilustra bem esta comensalidade da cozinha macaense. Quer explicar-nos?

O Chá Gordo é uma refeição que se assemelha ao português `lanche ajantarado`. Começamos a comer à tarde uns petiscos, depois chegam uns pratos quentes e tudo se faz em convívio e partilha.

Nova etapa nesta mesa macaense. Graça Pacheco Jorge apresenta-nos o Chutney de bacalhau, com açafrão das Índias, gengibre e coco. Junta-se-lhe o Caril à maneira de Macau que, para além das várias especiarias que foram uma das principais motivações das viagens dos navegadores até ao Oriente, leva também o Açafrão das Índias e o nabo. Este não dispensa presença no caril de peixe. Sendo um caril de carne, teríamos a batata. Um trio de degustação que se completa com o camarão panado. O polme é produzido com pão ralado em mistura com gengibre ralado.

Sendo uma cozinha tão rica, com tantas influências é fácil de preparar?

Sim, o acesso aos ingredientes é agora fácil. Quando cheguei a Portugal não havia o arroz agulha, só carolino. Sentia muito a falta de legumes. Em Macau tínhamos muitos legumes provenientes da China. Historicamente, Macau teve hortas, mas com o crescimento urbano desapareceram. Os legumes são tenros e pequenos. Em Portugal, quando cheguei, assustei-me com o tamanho das couves [risos].

Macau e a cozinha de afetos e memórias de uma sua guardiã, Graça Pacheco Jorge
Macau e a cozinha de afetos e memórias de uma sua guardiã, Graça Pacheco Jorge Bolo Mínimo. créditos: Graça Pacheco Jorge

Presumo que cozinhe com frequência…

Sim, mas só produzo cozinha de Macau, também cozinha goesa. A cozinha portuguesa não me sai bem. Os meus filhos também cozinham pratos macaenses. Os meus netos que nunca estiveram em Macau também se afeiçoaram a esta cozinha. Particularmente um, com 21 anos. Por exemplo, as ameixas secas e salgadas, adoram. Temos um hábito em torno do pó de ameixa seca, vertendo-o sobre a melancia. Os meus netos não comem melancia sem pôr esse pó. Mesmo que a melancia não seja muito doce, com aquele pó fica mais agradável. O meu filho mais velho até usa com outras frutas.

No périplo pelos pratos de resistência, aportamos agora no Minchi. Sempre presentes na mesa macaense, este prato mistura carne de porco e vaca picadas. Chegam-nos acompanhadas de arroz branco Basmati, cozido sem sal. Há uma razão para a ausência do tempero: este não se deve sobrepor ao sabor dos pratos que vai acompanhar. O Minchi tradicional é coberto com batatinhas fritas em cubos pequenos. Há macaenses que não regateiam o ovo estrelado a cobrir o preparo, ou mesmo aletria chinesa que é feita com fécula de ervilha ou mesmo Orelhas de Rato, um fungo.

Para além da cozinha do dia-a-dia, também vamos encontrar uma cozinha festiva. Quer salientar-nos alguns pratos?

Sim, há pratos servidos em períodos festivos, no Carnaval, Natal, aniversários. Há um doce que se chama Lagu que se faz no Carnaval, coberto com farinha de feijão de soja, porque no Carnaval as máscaras adornam os rostos e este doce é como se fosse uma cara pintada de branco.

Os macaenses são maioritariamente católicos pelo que mantêm uma certa abstinência às carnes antes do Natal e ingerem peixe. Temos, aqui, a empada de peixe, com Açafrão das Índias, amêndoa ralada e decorado com azeitonas pretas. A massa é adocicada. Nesta mistura distingue-se bem o Oriente e o Ocidente.

Nas carnes, vamos encontrar não o peru, mas o Cabrito Assado ou o pato assado. Nos doces, o Bolo do Natal, onde percebemos a antiga influência dos ingleses a partir de Hong Kong com o seu Christmas Cake. O bolo é feito em outubro com frutos secos para ser consumido em dezembro. Temos na família uma receita própria do avô, inspirado no Christmas Cake inglês.

No Ano Novo temos os Formigos, doce do Norte de Portugal, mas que em Macau é feito apenas com açúcar, ovos, pão desfiado e corintos, não leva nem vinho nem manteiga.

Chegados ao item gulodices, vulgo sobremesas, detemo-nos sobre um duo de propostas. ´Todos os nossos doces têm pouco açúcar para se sentir o sabor da fruta´, conta-nos Graça Pacheco Jorge, apontando para a tacinha com Creme de manga. Dentro, para além da polpa de manga, prevalecente, um pouco de iogurte e natas. Rente à taça, uns bolinhos de boa consistência, os Beijinhos de coco, ralado, açúcar, ovos e vai ao forno para ficar um pouco tostado.