Não há quem não conheça a história da borboleta que bate as asas num jardim em Nova Iorque e provoca um tufão no oceano Índico. Chama-se precisamente Efeito Borboleta, verteu da física para inúmeras áreas das ciências e com aplicações várias.
Podemos, então, ver este efeito na história que começa há umas quantas décadas num lar de Monte Real (Leiria), quando uma jovem Luísa Fernandes, assistia a um filme protagonizado pela atriz Liza Minnelli tendo como cenário Nova Iorque. “Era ali mesmo que eu queria estar”, pensou a jovem que havia, mais tarde, de se formar enfermeira ao arrepio da vontade dos seus pais.
Já mulher feita, Luísa deixa aos 49 anos a enfermagem, onde exerceu 30 anos; encerra um restaurante (a outra grande paixão) que, entretanto, abrira em Lisboa e parte à conquista da “Grande Maçã”. Luísa não falava na época uma palavra de inglês. Nem podia adivinhar que, volvidos poucos anos, discursaria como ilustre representante da comunidade portuguesa nas Nações Unidas, receberia no seu estabelecimento de restauração chefes de estado e estrelas de Hollywood. De Minnelli ao restaurante que Luísa Fernandes acaba de abrir em Lisboa vão muitos passos, ou melhor, algumas batidas das asas da borboleta.
É no Peixe na Avenida, na Rua Conceição da Glória, paredes meias com a Avenida da Liberdade, que nos sentamos com a “Chef Luisinha”, como carinhosamente é conhecida a nossa interlocutora entre os que se deixaram conquistar por esta mulher de 64 anos, afável, cuidada nos gestos, atenta e boa conversadora.
A casa aberta no último trimestre de 2017 é a mais recente expressão criativa de uma guerreira, de olhos postos no mundo e que transpõe para este seu novo espaço uma cozinha assente, precisamente, nas viagens. No caso vertente as jornadas dos Descobrimentos e o rasto de cozinhas que Portugal permutou mundo fora, na Ásia, na América Latina, em África, na Índia e também na velhinha Europa. Uma carta que se faz a vários tempos e sempre de olhos postos no mar, embora com um traço da assinatura da cozinha de Luísa Fernandes, a permuta com os sabores da terra.
Tinha eu uns seis ou sete anos e muita curiosidade por tudo aquilo que se prendia com a cozinha. Queria saber tudo: como se fazia um enchido, como se cortava a carne, como se fazia a sopa de cachola, porque se demolhava feijão.
Na próxima hora a “Chef Luisinha” há de apresentar-nos um elenco de pratos que são essência da sua cozinha. Uma sopa rica do mar, numa reminiscência da passagem dos portugueses pela Tailândia e onde não faltam uns bons pedaços de garoupa, o leite de coco, o óleo de palma, gengibre, erva-príncipe e coentros (8,00 euros). Um prato leve, aromático e onde, no final, é grande a tentação para arrebatar com um naco de pão a mescla caldosa de sabores. Ao céviche de Atum Rabilho dos Açores (13,00 euros) não se pode pedir mais. Cítrico quanto baste, com cebola, lima, mistura de sete pimentas e sésamo.
No prato de resistência, um Robalo do mar com favas bebé e chouriço alentejano (13,00 euros), uma combinação improvável, dirão alguns, os que ainda não experimentaram quão elevado pode ser um bom peixe, bem tratado na grelha e harmonizado com o legume e enchido.
Cozinha que é síntese de mão sabedora, de brio e de muito trabalho. Uma labuta que Luísa começou cedo na sua vida. Desde logo na afirmação perante a autoridade paterna de prosseguir academicamente uma das suas duas paixões, “ou enfermagem, ou cozinha. Os meus pais não queriam que eu fosse nem uma coisa, nem outra. Na enfermagem ia ver homens nus”, sublinha a chefe com palavras carregadas de boa disposição.
Nesta história de aspirações tem lugar importante uma avó. “Tive duas avós com educações diferentes. A materna, que vivia no campo, lidava com os animais e cultivava. Tinha a minha avó paterna, a da cidade. A do lado da minha mãe parecia professora, íamos para o campo e descrevia-me tudo o que se relacionava com as lides agrícolas. Tinha eu uns seis ou sete anos e muita curiosidade por tudo aquilo que se prendia com a cozinha. Queria saber tudo: como se fazia um enchido, como se cortava a carne, como se fazia a sopa de cachola, porque se demolhava feijão”.
Luísa acaba por seguir enfermagem onde exerceu três décadas. Isto, sem contudo, abandonar a sua outra paixão. A cozinha viera para ficar e ditaria o futuro da mulher que se senta à nossa frente neste Peixe na Avenida. Antes de avançarmos com a história, um pouco do ambiente deste novo espaço.
Contamos perto de 50 lugares, numa casa que recebeu o projeto de transformação de Teresa Leónidas. A decoradora aproveitou a estrutura já existente para introduzir elementos que nos remetem para o mar. Vinis dourados numa alusão aos areais e paredes com apontamentos ondulados que nos remetem visualmente para o mar.
Retomemos o fio à narrativa, pegando nas palavras da “Chef Luisinha”. “Depois de 30 anos tive coragem de deixar a carreira de enfermagem e começar a sério na cozinha”. A empreendedora Luísa abrira entretanto um restaurante, o Tachos de São Bento, perto da Assembleia da República. Casa pequena mas convidativa pela cozinha e pelo ambiente de tertúlia. “As pessoas ficavam na conversa até às duas, três da manhã”.
“Fechei o restaurante no auge do sucesso e fui para Nova Iorque. Todos diziam que eu era `maluca`. Entretanto, a minha filha deu-me as moradas de três restaurantes portugueses em Newark
Luísa levava uma vida dura. “Saía às 16h00 do bloco operatório, fazia as compras e ia para o restaurante que abria às 19h30”. Aos 49 anos, a enfermeira entrava em pré-reforma. Estava aberta a porta para a Luísa cozinheira singrar. Isto “numa época em que em Portugal tínhamos os chefes Silva e o Michelle com alguma notoriedade. O Tachos de São Bento havia de manter portas abertas mais dois anos. “
Fui casada durante 13 anos mas o meu marido não gostava de viajar e os meus filhos, ligados ao desporto de alta competição, não se podiam ausentar”, reporta Luísa.
Em 2002 a responsável pelo Peixe na Avenida toma uma das grandes decisões da sua vida. “Fechei o restaurante no auge do sucesso e fui para Nova Iorque. Todos diziam que eu era `maluca`. Entretanto, a minha filha deu-me as moradas de três restaurantes portugueses em Newark, onde há uma forte comunidade lusa. Chegada lá, todos já haviam encerrado”.
Desta época Luísa Fernandes recorda uma história, a do dia em que se sentou num hospital em Newark, crendo que ouviria falar a língua de Camões. “Acabei por me ir embora. Percebi que algumas das pessoas eram portuguesas, mas todos falavam o inglês”.
A empreendedora acaba por trabalhar na cozinha do restaurante Alfama. E assim “começa o sonho português na América”, diz-nos. Um sonho com alguns senãos.“Fazia pastéis de nata, carne de porco à alentejana e não era isso que eu queria. Na época aprendi inglês sozinha, escrevia e comecei a falar inglês. Após seis meses despedi-me e trabalhei em três restaurantes americanos. Acabei por trabalhar, por indicação do chefe George Mendes, num dos bares mais conhecidos de Nova Iorque, onde cresci profissionalmente, aprendi a apresentar bem um prato”.
É a grande oportunidade de Luísa Fernandes, também para mostrar o seu esmero e criatividade à mesa. Isto numa casa onde se sentavam chefes conceituados. “Cheguei a ter três chefes a comer na cozinha. É claro que o patrão não gostava”, conta-nos a nossa interlocutora entre risos.
Na casa dos 50 anos, Luísa fica conhecida em Nova Iorque, fez capa de revista de distribuição nacional com o seu Pão de Abóbora
De permeio Luísa arranjou tempo para tirar um curso de técnicas de alta cozinha, no Cordon Bleu, em Boston. Aí acabou por dar aulas três vezes por semana, “o que mudou a minha carreira dadas as pessoas que conheci”. A chefe ganhou um concurso de cozinha, o “Chopped” no canal Food Network, com um robalo com batata-doce. Na casa dos 50 anos, Luísa fica conhecida em Nova Iorque, fez capa de revista de distribuição nacional com o seu Pão de Abóbora e contou com destaque a propósito do seu peixe grelhado. “Em Nova Iorque eu era a embaixadora da comida portuguesa”. Luísa trabalhava no restaurante Robert, em plena Manhatan, no topo do edifício do Centro de Arte Moderna.
Uma cozinha que caiu bem numa terra onde, como salienta Luísa, “não há verdadeiramente cultura culinária americana. Têm churrascos, com molho com paprika, melaço, a fumada líquida (smoked liquid) para dar a sensação de comida fumada. É uma cozinha pesada, com feijões que levam mais açúcar que um doce de ovos (baked beans). Aos bifes, matam-nos com molhos. No Maine têm excelente amêijoa, peixe, vieiras, camarão, lagosta, mas carregam-nos com molhos”.
O clique para voltar a Portugal dá-se no dia em surge a necessidade de fazer uma intervenção cirúrgica. “Nos Estados Unidos os seguros de saúde são caros e a cobertura é mínima. Paguei tudo e tive coragem de me vir embora, gosto de entrar por uma porta pequena, construir e sair por uma grande porta. Foi o que fiz. Discursei três vezes nas Nações Unidas e recebi um galardão por ser emigrante. No restaurante recebi o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, o cantor Michael Bublé, a Alicia Keys, Robert Redford, Kofi Anan, Bill Clinton e os nossos ex-presidentes da República Jorge Sampaio e Cavaco Silva”.
Uma porta que Luísa Fernandes quer bem larga neste seu Peixe na Avenida. Ambição não falta. A cozinha tem uma linha condutora, uma história com um “Início de Viagem”, onde cabe um Atum braseado dos mares dos Açores (11,00 euros) ou uma Papaia e camarão (9,00 euros).
E porque de América e Oriente também fala este restaurante, a carta é generosa em Céviches e Sahimi e Sushi. Doze propostas que incluem peixes como o atum, sardinha, salmão, robalo e cavala (com preços entre os 5,00 e os 13,00 euros).
Nos principais, a não perder o Robalo do mar com favas, água de tomate aromatizada com chouriço alentejano e espuma de limão (19,50 euros); o Polvo assado com vinho tinto Quinta da Pacheca (17,00 euros); o Bacalhau asiático (19,00 euros) e a Moqueca Baiana (17,00 euros).
Para a chefe Luísa Fernandes o Peixe na Avenida não é uma meta, é mais uma etapa. “De dez em dez anos geralmente mudo de vida, quem sabe no futuro…”. Remata a mulher que correu a maratona de Nova Iorque em perto de seis horas e acabou por receber no seu restaurante, na Big Apple, a estrela que a empurrou para o outro lado do Atlântico, Liza Minnelli.
Rua Conceição da Glória nº 2 a 6 (junto à Avenida da Liberdade) - Lisboa
Contactos: Tel.: 309 765 939; Email: peixenaavenida@gmail.com
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