A rebentação das ondas do mar deixa adivinhar a força das marés, ao amanhecer. Francisco Cruz admira a espuma do oceano do cimo da falésia escarpada, enquanto veste o fato de mergulho para desafiar mais uma maré na busca do verdadeiro fruto do mar – os percebes. Como mariscador profissional, Chico, como é conhecido, arrisca todos os dias a vida para conseguir o seu sustento, na Costa Vicentina.
A arrelhada e a saca são as únicas companheiras de trabalho nestas águas revoltas e batidas do Oceano Atlântico. A sua coragem é do tamanho do mundo e apenas comparável à sua ligação com o mar: “no corpo tenho água salgada ao invés de sangue”, afirma. Este mariscador representa todos os destemidos que enfrentam as fúrias dos mares da nossa costa.
Com 48 anos, Chico já há mais de 30 que faz vida no mar: “comecei porque gosto do mar! Já fazia caça submarina e sempre estive ligado à pesca. A apanha de percebes veio por acréscimo, é mais rentável, por isso, passou a ser uma prioridade.”
Miúdo audaz e com gosto pelo mar, começou a ir à maré sem saber nadar para apanhar polvos e navalheiras, com os amigos: “cheguei a apanhar polvos sem lhes tocar com a mão, porque me fazia impressão.”
Pode ter começado no molhe da Meia Praia com os amigos da mesma idade, mas a sua paixão pelo mar fê-lo aperfeiçoar-se no mergulho. Rapidamente começou a ter convites de pessoas mais velhas que lhe ensinaram a respeitar o mar: “o Armandinho, o Bataglia e o Kita ensinaram-me bastante,” confidencia.
“Fui dos primeiros a ir à capitania para tirar a licença de mariscador profissional [há cerca de 20 anos]. Hoje em dia, apesar de ser de Lagos, posso apanhar marisco no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Hoje é necessário ir à Direção Geral das Pescas para pedir também autorização para fazer venda nas lotas e fora delas.”
Apenas duas coisas diferem das gerações de mariscadores anteriores: estar mais protegido do frio, com o fato de mergulho; e a informação instantânea que a internet fornece sobre as marés. Francisco fala que antigamente só ia à maré na altura das luas: “nas marés mortas ninguém ia, a não ser que vivessem mesmo perto do mar (na carrapateira ou na arrifana) para espreitar se dava para apanhar marisco. (…) Hoje em dia, de uma semana para a outra sei se o mar vai ser manso (…) Sempre que o mar é bom, quer seja maré ou não seja, é o meu trabalho por isso vou a todas".
Os perigos e o esforço, esses persistem a cada ida ao mar, tal como a adrenalina em cronometrar o recuo e avanço das ondas: “Já levei muita porrada do mar e já salvei muitos".
Francisco Cruz é um dos 80 mariscadores profissionais a trabalhar entre Sines e Sagres, maioritariamente na apanha de percebes, mas também de ouriços, mexilhões, santolas e navalheiras: “trabalho com aquilo que o mar tem”.
Este mariscador funde-se sozinho na neblina criada pela rebentação à procura de uma recompensa de sabor sem igual. É um dos “guerreiros do mar” que sabe qual é a sua paixão e vive-a todos os dias: “posso ver-me a deixar de fazer muitas outras coisas, mas deixar de ir ao mar é que não”.
O Mar d’Estórias reconhece o privilégio em termos na nossa costa este tesouro delicioso que seria inalcançável se não fosse pelos corajosos mariscadores, que arriscam a vida diariamente pelo mais puro sabor do mar.
Artigo da autoria de Filipa Glória
Texto produzido pelo projeto Mar D´Estórias, um espaço de valorização de tudo o que é Português, com especial ênfase para o Algarve.
Comentários