Ana Marques Pereira, licenciada em medicina é, há muito, uma apaixonada pela história da alimentação e pelos objetos que lhe estão associados. Em "Mesa Real - Dinastia de Bragança", título que assina, temos o fausto e a pompa à mesa de D. João IV, a moda do chá vespertino introduzida na Grã-Bretanha por Catarina de Bragança, a preciosidade dos objetos à mesa com D. João V e a exuberância nos banquetes reais com D. Maria I, por contraste sóbria na personalidade. Uma obra que abre em Vila Viçosa, no Palácio da Casa de Bragança, num Portugal ainda sob domínio filipino, e que fecha em 1910, com a instauração da República.
Antes de esmiuçarmos este "Mesa Real. Dinastia de Bragança", gostaria de perceber como é que uma licenciada em medicina se torna, cumulativamente, uma estudiosa do fenómeno gastronómico?
É uma evolução natural. Tenho, desde há muito, o interesse pela culinária, sistematizado através da leitura dos clássicos nesta área. Um interesse que evoluiu para a vertente investigação sobre os alimentos, as histórias que decorrem dos objetos do quotidiano ligados ao fenómeno alimentar.
Entretanto, dei mais um passo para a história da gastronomia, um campo vasto. Em 2000, após um repto para sistematizar numa obra, em coautoria, algum deste conhecimento, acabei por concretizá-la sozinha.
O livro "Mesa Real - Dinastia de Bragança", acabaria por ser publicado em 2000 (Edições Inapa). Mais tarde, em 2008, lancei o blogue Garfadas Online, onde escrevo a propósito dos muitos objetos que venho colecionando ao longo destes anos.
Fiz, ainda, um estudo sobre as cozinhas, do qual só está publicada uma parte, as cozinhas senhoriais - "Cozinhas Espaço e Arquitetura" (Edições Inapa). Ainda neste âmbito também pesquisei sobre as cozinhas conventuais e regionais. Esta última, uma abordagem que gostaria de ver publicada no futuro. Isto até porque muitas pessoas vão desaparecendo e seria interessante manter viva a memória sobre estas cozinhas locais.
Da leitura do seu livro retemos a grande multiplicidade de fontes a que recorreu, incluindo a pintura, azulejaria, ementas régias. Traçam-nos um retrato preciso do fenómeno alimentar?
Pessoalmente, procuro as coisas mais insignificantes. A partir de qualquer objeto podemos remontar à sua história. Aliás faço isso mesmo no meu blogue. A partir do artefacto podemos chegar à história da fábrica onde foi produzido, quem o fez, a própria estética da época. Ou seja, há aqui uma visão ampla das fontes. O livro reflete esta minha pesquisa pois surge ilustrado com reproduções de pintura, gravuras, azulejos, ementas régias, imagens de grandes baixelas, pequenos objetos em vidro, outros em porcelana.
No que respeita à expressão artística como fonte, temos, em Portugal, muito poucas manifestações nesta área. Realço a obra da pintora Josefa de Óbidos e do seu pai, o também pintor Baltazar Gomes Figueira. Através das suas obras reportam um grande número de produtos alimentares e doçaria. De qualquer forma, a pintura com alimentos é muito escassa. Dai, temos de recorrer muitas vezes à pintura internacional. Repare, aqui ao lado, em Espanha, há uma grande profusão de bodegones [naturezas mortas], representando alimentos. Velasquez (1599-1660) é disto um bom exemplo.
Catarina de Bragança, embora não tenha introduzido o produto na Grã-Bretanha, como é comum dizer-se, terá inaugurado a moda de o beber por volta das 16h00 [e não o “chá das cinco” como comumente é afirmado].
Como explica este quadro de escassez que acaba de descrever?
Digamos que houve sempre uma certa modéstia da corte em deixar-se retratar no que respeita à relação com os alimentos. Em contraponto, nos Países Baixos, muito puritanos, os monarcas deixavam-se retratar na função alimentar.
E nas fontes escritas. Há obras de referência…
Nas fontes escritas, não podemos esquecer, ainda no século XVII, a "Arte de Cozinha", de Domingos Rodrigues. No século XIX aparece uma quantidade enorme de escritores, a cozinha muda. Repare, durante muito tempo a transmissão da cozinha fazia-se numa hierarquia muito fechada, entre cozinheiros.
A sua obra retrata um período longo de tempo, 270 anos. Muita coisa mudou na sociedade portuguesa. Presumimos que neste quadro também a alimentação terá sofrido fortes alterações. Como foi sistematizar toda esta informação?
Por uma questão de ordem prática estruturei o livro por reinados e, assim apresentei as informações recolhidas para um determinado reinado. Por exemplo, se num determinado período temos a entrada de um alimento ou de uma baixela, ou mesmo alterações no que respeita à alimentação, isso é destacado.
Nos séculos XVII e XVIII não temos acesso a ementas, os conhecimentos, como já referi, estavam nos cozinheiros e os livros não eram divulgados. De qualquer forma, por extrapolação, presumimos que a alimentação na corte portuguesa não diferia muito das restantes cortes europeias. Em suma, procurei neste livro descrever a chegada dos alimentos, aprofundar as modas, orientações sociais e religiosas associadas ao estar e servir a mesa.
Refere a Europa. Como é que o “Velho Continente” nos influenciava, nomeadamente no que respeita a modas alimentares?
Neste aspeto os diplomatas tiveram grande influência. Os reis pediam aos diplomatas no estrangeiro para estes se informarem, por exemplo, sobre as modas em França. Um dos embaixadores da Suécia, colocado em Paris, escreveu minuciosamente sobre as modas, não só o vestuário, mas também a questão alimentar. De tal ordem que nos deixou um registo preciosíssimo.
Pelo contrário: que papel teve Portugal nas cozinhas europeias?
Na época era de bom-tom usar pratos de outras cortes. Internacionalmente encontramos vários pratos “à portuguesa”. Era comum considerar que quando um prato era “à portuguesa”, este incorporava tomate. Em meu entender nem sempre era assim. Mesmo em livros internacionais há esta referência do “à portuguesa”.
Por outro lado, Portugal teve a sua influência na introdução de certos alimentos além-fronteiras. Por exemplo, a laranja doce em Inglaterra. Chega mesmo a haver, em Portugal, legislação para que não saiam laranjeiras do nosso país. Em relação ao chá, Catarina de Bragança, embora não tenha introduzido o produto na Grã-Bretanha, como é comum dizer-se, terá inaugurado a moda de o beber por volta das 16h00 [e não o “chá das cinco” como comumente é afirmado].
Neste, como noutros âmbitos, é mais fácil analisar os séculos mais próximos, pois dispomos de mais informação. Há, por exemplo, muitas fontes relativa a D. João VI no Brasil. Foram introduzidas receitas que sofreram adaptações do outro lado do Atlântico, inclusivamente doçaria com ovos.
Pode, sucintamente, descrever-nos uma refeição real do dia-a-dia?
Na época as refeições acompanhavam o ritmo do Sol. O dia começava com uma refeição cedo, então designada almoço (o nosso pequeno-almoço). Seguia-se, mais tarde, o jantar (o nosso almoço) e, finalmente, a ceia (jantar). A última refeição, por regra, fazia-se por volta das 18h00. Isto, claro, dependia da estação do ano e do número de horas de Sol. Havia, ainda, as merendas, a meio da tarde. Fica-nos a sensação de que os nossos antepassados estavam muito tempo sem comer. Não havia nem a abundância que hoje temos nem a facilidade na conservação, preparação dos alimentos.
Na corte havia duas cozinhas. A do Rei e a da Rainha. Há, aqui, uma separação. A Rainha come sozinha, na câmara, quanto muito na companhia de algumas damas mais próximas.
Isso faz-nos pensar em todo o trabalho de bastidores, nomeadamente na cozinha…
Na corte havia duas cozinhas. A do Rei e a da Rainha. Há, aqui, uma separação. A Rainha come sozinha, na câmara, quanto muito na companhia de algumas damas mais próximas.
Por sua vez, no século XVII, com as refeições públicas, as refeições do Rei eram uma atividade de representação com presença da corte e sacralização da pessoa do monarca. Nos bastidores, onde as refeições eram preparadas, havia toda uma hierarquia, com os cozinheiros e ajudantes de cozinha. Há documentos que nos permitem acompanhar a ascensão de algumas figuras, até chefe de cozinha. Um último degrau na hierarquia que só acontecia quando o cozinheiro chefe morria ou passava, por exemplo, para um navio. Havia, ainda, cozinheiros em carácter extraordinário, requisitados quando havia banquetes.
As refeições quotidianas e os banquetes eram momentos revestidos de um rigoroso protocolo. Aliás, em torno do monarca orbitavam inúmeras figuras, o provador, o copeiro.
Todas as ações na corte eram ritualizadas. E, repare, todos os cargos eram hereditários. Entravam numa determinada família e assim passavam de pais para filhos. Isto, pese embora as designações sofrerem alterações consoante a época. Havia toda uma especialização. Por exemplo, a aquisição dos alimentos envolvia diferentes pessoas. Uma delas registava as compras. Estas, por seu turno, eram previamente discutidas com os cozinheiros. Por sua vez as contas eram aprovadas pelo vedor.
Existia já na altura uma preocupação direta, ou mesmo estudos, entre aquilo que se comia e a repercussão na saúde? Recordo, por exemplo, um título do século XVIII, «A Arte de Conservar a Saúde dos Príncipes e das Pessoas de Primeira Qualidade» (Luís Paulino da Silva).
Essa preocupação vem desde o grego Hipócrates (século V a.C.) tido como o pai da medicina ocidental e da dietética. Este homem vai fundamentar a sua medicina na teoria dos quatro humores corporais. Estes, consoante as suas quantidades relativas presentes no corpo, levariam a estados de equilíbrio ou de doença e dor. Neste contexto havia a influência dos alimentos, favorecendo equilíbrios e desequilíbrios na nossa saúde.
São conhecimentos que vão até ao século XVII. Contudo ainda no início do século XX encontramos registos que vão beber aos princípios de Hipócrates.
Repare, os próprios árabes, no século XIII, valorizavam a importância da alimentação. As culturas orientais revelavam as mesmas preocupações.
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