Filipa, a sua mudança de vida é inspiradora. Gostaria de começar esta conversa por esse episódio. O da transição para um estilo de vida vegan. Quer explicar-nos?

Em 2013, assisti ao documentário “Earthlings”, um filme que é também um alerta sobre a exploração animal, o ambiente e a saúde. Foi o meu primeiro contacto com a alimentação e estilo de vida vegan. Trata-se de uma visão holística de um estilo de vida. Tinha, então, 25 anos e algo mexeu muito comigo. Por mais que tentasse, não conseguia continuar a comer tudo o que fosse animal. Pode parecer estranho, mas aconteceu de uma forma radical. Isto, numa época em que eu não tinha bases sólidas sobre alimentação e nutrição.

Foi um grande desafio, presumo?

Sim, porque comemos sem atribuirmos valor à componente nutricional das refeições. Na época fiz uma pesquisa muito grande sobre esta temática. O deixar a dieta com base em produtos de origem animal correu bem, de forma pacífica, e já não consigo ai voltar. Foi repentino mais correu bem. Passei a estudar e a ler livros sobre a alimentação vegetariana. No que respeita ao estilo de vida, houve também uma mudança, em termos dos produtos que consumia habitualmente, como os de limpeza da casa, cosmética, ingredientes. Muitos são testados em animais. Foi a descoberta de um outro mundo. Por exemplo, não fazia ideia que os mais utilizados pela indústria alimentar e cosmética para fazer iogurtes de morango e batom vermelho são produzidos a partir de um insecto, o carmin ou E120.

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Uma mudança tão repentina teve na origem um choque. A Filipa já referiu o documentário, mas qual foi o elemento em particular que a levou a deixar todo um estilo de vida anterior?

Houve uma alteração emocional. Senti que houve uma mudança no todo. Quando precisava de adquirir um produto, não ia imediatamente ao supermercado. Primeiro pensava se fazia mesmo sentido a aquisição e se o queria ter. Por isso decidi eliminar muitos produtos e alimentos. Não aconteceu tudo no mesmo dia, foi um processo que evoluiu. Não deitei fora os produtos que tinha em casa, simplesmente comecei a tornar-me mais consciente. As compras seguintes já não iam incidir sobre esses bens, mas sim sobre os que eu identificasse como certos e estivessem de acordo com a minha forma de estar.

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Sendo o nosso mercado ainda restrito no que respeita a estes produtos, foi fácil encontrar as alternativas?

Agora é mais fácil, pois já existem mais marcas a apostar neste tipo de produtos. No início foi complicado, passava horas no supermercado a analisar rótulos porque era tudo novidade. Aprendi muito.

E com o tempo foi readaptando e escolhendo em ligação ao que usava…

Exatamente, escolhi produtos que se adequavam ao meu estilo de vida e essa escolha foi uma evolução, fui conhecendo mais produtos e alargando.

O veganismo não inclui só a alimentação vegetariana, considera também a não exploração animal, alargada ao estilo de vida e alimentação.

Uma mudança que também levou a Filipa a estabelecer laços com novas pessoas?

Sim, conheci uma comunidade muito forte que adotou este estilo de vida [vegan] e as pessoas certas que me aconselharam e acompanharam na mudança. A partilha de experiências tem sempre muita importância na mudança e isso foi muito importante, se bem que online ainda não existia muitas abordagens sobre este tema, existiam algumas coisas. No dia a dia fui conhecendo pessoas com quem eu me identificava.

Há, também, que reter que a Filipa fez uma viragem de 180 graus na sua vida profissional. Pode explicar-nos?

Nessa altura já era formada em gestão e trabalhava em auditorias financeiras. Sabia que não era aquilo que pretendia. Esta mudança alimentar e de estilo de vida foi o empurrão para procurar o que queria. Sempre quis ter o meu negócio próprio. Foi tudo muito rápido, criei o blogue “A Cozinha Verde” e, na altura, o objetivo era partilhar a minha experiência de mudança. Rapidamente nasceu a ideia de um pequeno negócio. Na altura passou pela entrega de comida vegetariana porta a porta. Hoje já conto, também, com a organização de eventos.

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Correu bem?

Sim, claro que no início não ganhava o suficiente para suprir os custos que tinha, mas era uma aposta minha e pensei que se corresse mal voltava para outra coisa, como as auditorias. Despois, descobri o mundo dos workshops de cozinha, primeiro no Celeiro, durante um ano, em 2014. Descobri um novo prazer, ensinar e tentar inspirar as pessoas a fazerem pequenas alterações no dia adia. Enveredei pelo workshops e eventos. Neste momento esta atividade é exercida a tempo inteiro.

Há que saber distinguir vegans de vegetarianos. São abordagens alimentares diferentes?

O veganismo não inclui só a alimentação vegetariana, considera também a não exploração animal, alargada ao estilo de vida e alimentação. Geralmente as pessoas acham que os vegetarianos consomem ovos e leite. Isto porque depois existem subgrupos. Eu, como consumidora, opto por não adquirir alimentos ou ingredientes com origem animal. O veganismo é um dos caminhos para um mundo mais sustentável.

Vamos desfazer um mito, um vegan pode não ter um estilo de vida sustentável?

Há, quem seja vegan e não faça reciclagem. Pode também consumir junk food, como batatas fritas e refrigerantes. Na minha perspetiva deve estar tudo interligado, alimentação, respeito para com o meio.

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A Filipa teve a clareza de espírito para exercer a mudança. Mas vivemos num mundo onde o consumidor é muito manipulado, não concorda?

Sim, facilmente somos manipulados pelo marketing e pelos media e até pelos nossos amigos e comunidade mais próxima. Tem de haver uma forte motivação da nossa parte e não ter como dado adquirido tudo o que ouvimos. Nem todas as pessoas têm essa vontade e não querem pensar nisso, mas nos últimos anos, desde 2013, há uma mudança positiva por parte dos portugueses nessa informação.

vegan

Em termos físicos e psíquicos quais foram as grandes mudanças na Filipa desde 2013?

No que concerne à saúde, nunca tive nenhuma doença grave e como tal não posso afirmar mudança nesse sentido, mas notei muito bem-estar. Após as refeições deixei de sentir a sensação de enfartamento. Dado os vegetais terem maior quantidade de fibras, também notei melhoria a nível intestinal, relativamente à obstipação. Sinto muito mais energia e sinto-me mais hidratada. Costumava ter muitas constipações e agora estes episódios são menos regulares. O sistema imunológico está reforçado.

Presumo que pessoas cheguem aos seus workshops muitas com alguns mitos. Quais são os que desconstrói logo numa primeira abordagem?

Nos workshops de cozinham vegan para principiantes, 80 a 90% das pessoas que vão não são vegetarianas, querem mudar o estilo de vida, ou por questões de saúde seguir uma vertente mais equilibrada. A primeira questão que me colocam é como substituir a proteína; carne, peixe e ovos. Os participantes acham estranha a abordagem porque, por exemplo, sempre viram as leguminosas como acompanhamento. A proteína está presente nas leguminosas, nos cereais integrais, nas oleaginosas. Quando combinados fornecem-nos as proteínas completas.

As pessoas receiam ficar com défice proteico. Dificilmente isso acontecerá. Os problemas de saúde atuais estão associados ao excesso de consumo de proteína animal e não propriamente o contrário. Outra ideia é que para substituir a proteína animal existem poucos produtos, como o tofu e o seitan. Nestes workshops, nunca uso estes dois ingredientes como elemento principal de uma refeição, exatamente para desconstruir esta crença.

Outra questão que surge prende-se com a fonte de cálcio para substituir o leite. Neste âmbito, aconselho os vegetais verdes escuros e algumas sementes, muito ricas em cálcio. Outra vertente é a falsa questão carência de ferro. Dou o meu exemplo, só sou vegetariana há cinco anos, mas a alimentação que faço está a correr muito bem em termos de resultados, não tenho qualquer carência.

Como consumidora, opto por não adquirir alimentos ou ingredientes com origem animal. O veganismo é um dos caminhos para um mundo mais sustentável.

Quando fez a mudança como reagiram amigos e familiares?

A recção foi diversa. Os meus pais tiveram medo, porque para eles era uma alimentação desconhecida. Uma desconfiança só na fase inicial, pois perceberam que eu sabia o que estava a fazer e que tinha confiança na minha decisão. Na altura não se falava muito nesta temática e existiam dúvidas, mas esclareci-as. Com os amigos foi mais fácil, pois a geração mais nova está mais aberta.

Hoje, conheço muitas pessoas que não sendo vegetarianas, tentam incluir estas refeições mais vezes no seu plano alimentar. O primeiro impacto foi mesmo: “E agora o que vais comer? Vais comer mal e passar fome…”

Depois perceberam que não aconteceu, nunca apresentei sinais de que a alimentação não estava a ser feita de forma correta e deixou de existir motivo para desconfiar. Tenho um filho com pouco mais de um ano e na altura da gravidez tive algumas dúvidas, foi um pouco regressar ao início.

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Durante o período da gravidez a Filipa fez alterações na sua alimentação?

Não, fiz uma alimentação saudável, ou seja, mantive a alimentação que já tinha. A médica que me seguiu não tinha conhecimentos sobre a alimentação vegetariana, mas foi compreensiva e seguiu o princípio de que se as análises apresentavam valores normais, então não havia problema.

Como vai ser a alimentação do seu filho? Pondera introduzir proteína animal?

O meu filho tem quase dois anos e até hoje nunca consumiu nenhum alimento de origem animal. Tive o cuidado de procurar uma pediatra que tivesse conhecimento sobre esta alimentação, para eu própria me sentir mais confortável e segura com este acompanhamento, apesar de ter vários dados disponíveis, inclusivamente o manual elaborado pela Direção Geral da Saúde sobre alimentação estritamente vegetariana para crianças. O meu filho é saudável e forte, com um bom desenvolvimento.

Cada vez encontramos mais crianças neste regime alimentar. Mas muitos médicos insistem para que os pais introduzam proteína animal no plano alimentar das crianças. Os progenitores devem ter apoio para decidirem.

Algumas pessoas perguntam-me se não estou a impor o meu estilo de alimentação e de vida ao meu filho. Considero que todos nós fazemos o mesmo, passar tudo o que consideramos convictamente bom aos nossos filhos.

Filipa, recentemente lançou um livro, de nome homónimo ao do seu blogue “A Cozinha Verde”. Quer connosco partilhar essa experiência?

É uma nova fase, um projeto recente, mas tinha muita vontade de criar uma espécie de manual, com algumas receitas e componente teórica que fosse esclarecedor para quem quiser fazer esta mudança, mesmo que não seja tempo inteiro, incluindo estas refeições mais vezes na sua vida. Isto para que percebam o impacto que esta opção terá na sua saúde e no próprio planeta. Estou a gostar de na parte da divulgação estar a contactar com as pessoas, já o fazia nos workshops, mas acaba por ser uma fase nova que também me está a dar muito prazer.