É tido como um segundo cérebro do nosso organismo. O intestino tem um sistema nervoso próprio, capaz de reagir às nossas alterações emocionais e comportamentais. Conhece-nos. Uma reação por vezes violenta, outra silenciosa, o que não a torna menos perigosa. A nutricionista Mafalda Rodrigues de Almeida, partindo da sua história pessoal relacionada com uma patologia gastrointestinal, olha para este nosso órgão com a atenção que ele merece.

Mafalda traduz no seu mais recente livro, “Equilíbrio” (edição Chá das Cinco), alguns dos princípios que cuidam bem do nosso intestino em particular e da nossa saúde em geral. Não se trata apenas de nos alimentarmos em equilíbrio. Trata-se, também, de cuidamos a componente física e emocional. Esta é uma conversa com a responsável do site Loveat.pt onde se fala de comida, sazonal, variada, com poucos açúcares ou gorduras animais.

Contudo, não é uma conversa extremista. Mafalda não nos traz uma fórmula infalível de vida. Aconselha-nos a conhecermo-nos, a apostar na prevenção e, assim, a evitar os danos. Com Mafalda conhecemos bactérias “boas” e, também, as más da fita. O que são probióticos, do que falamos quando nos referimos ao microbioma, um órgão menos conhecido do nosso corpo, como se identifica um individuo Yang ou Yin.

A Mafalda já antes publicou em torno dos superalimentos. Este livro é uma consequência natural dos anteriores?

Não é propriamente uma sequência, mas considero que o posso enquadrar na mesma temática de abordagem. O livro “Superalimentos” analisa uma alimentação funcional para sabermos como tirar partido dos alimentos em questões de saúde. Neste meu último livro tento ir à raiz dos problemas, atuando prevenindo.

Mafalda de Almeida, a nutricionista que está a desmistificar os superalimentos
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A Mafalda foca isso no início da obra, abrindo este seu livro com a sua história pessoal. Quer partilhá-la connosco resumidamente?

Sim, este livro decorre na sequência de um problema de saúde, um transtorno do foro gastrointestinal. Na obra desenvolvo o caminho e trabalho que empreendi no sentido de minorar o mal-estar causado pelo distúrbio. Ou seja, na falta de uma resposta positiva por parte da medicina convencional, descobri que tinha de associar a medicina tradicional com a medicina chinesa e outras terapias mais alternativas. Temos o triângulo do bem-estar, procurando equilibrar a alimentação, o exercício físico e o descanso. Ora, antes de empreender a mudança, o meu descanso estava muito afetado e transtornava-me tudo o resto, incluindo a minha energia e a parte alimentar. Neste livro, o leitor vai encontrar restrições no que respeita ao leite e seus derivados, ao glúten e aos açúcares refinados. No meu caso percebi que deveria procurar evitá-los.

Intestino: O nosso segundo cérebro gosta de ser mimado e bem alimentado
Intestino: O nosso segundo cérebro gosta de ser mimado e bem alimentado Mafalda Almeida, licenciada em Ciências da Nutrição pelo Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz e mestre em Políticas Alimentares pela City University of London.

Ou seja, a Mafalda partindo da sua história de vida convida o leitor a encontrar as suas respostas, perceber o porquê dos desequilíbrios?

Cada pessoa é de facto um caso. Quando refiro, por exemplo, transtornos no intestino, possivelmente existem alguns alimentos que serão bons no seu caso, mas que me prejudicam. As pessoas têm de ir percebendo quais são os alimentos que lhes são mais benéficos.

Neste meu livro não falo propriamente da exclusão da alimentação deste ou daquele alimento. Por exemplo, se deixarmos de ingerir alimentos com glúten, um dia, quando os ingerirmos, o corpo ressentir-se-á. Falo, sim, de o reduzirmos ao máximo.

Temos de fazer uma alimentação que minimize a necessidade de dieta e associar a forma como comemos à prática do desporto e ao descanso

Este interesse pelo bem-estar intestinal é crescente na nossa sociedade?

Sim, noto que as pessoas se começaram a interessar pelo tema. De há dois anos a esta parte começaram a ser publicados muitos livros neste âmbito, sobretudo escritos por médicos. A lacuna está em que despertam o nosso interesse, mas não nos dizem como, na prática, temos de manter a saúde do nosso intestino. Este livro surge do facto de eu ter este problema muito perto, mas também de querer revelar aos leitores que ter um intestino saudável não é “um bicho-de-sete-cabeças”. Se nos sentimos mal ou ficamos com a barriga inchada quando ingerimos certos alimentos, significa que algo está mal no nosso organismo. Somos o que comemos, não há forma de contornar isso.

Ao lermos a introdução a este seu “Equilíbrio” sentimos um certo peso de consciência. Deixa-nos um alerta. Vivemos intoxicados. Gostaria que comentasse.

Sim, as pessoas têm ideia do detox como algo associado às dietas, e ligam o termo desintoxicar a sumos ou sopas. O que tento explicar é que temos de fazer uma alimentação que minimize a necessidade de dieta e associar a forma como comemos à prática do desporto e ao descanso. Caso contrário, as toxinas vão-se acumulando e ao longo dos anos terão um efeito nocivo.

Certo, não estamos perante um livro de dietas, antes sobre uma mudança de vida?

É sobre uma mudança do paradigma alimentar, tento mostrar às pessoas que não temos de estar sempre a fazer dieta; mas uma alimentação como a que preconizo no meu livro, sendo fácil introduzir algumas receitas mais saudáveis, evitando certas práticas. Isto sem sermos extremistas. Provavelmente, se eu alterar certos hábitos, não preciso de fazer dietas nem vou provocar oscilações de peso. Consigo ficar mais estável, ter mais energia e sentir-me melhor.

Fala-nos no microbioma. Um órgão em si extremamente importante na matéria que a ocupa o seu livro “Equilíbrio”. Porquê?

Costumo dizer que o microbioma é uma família que vive dentro de nós, são várias espécies de organismos vivos que nos habitam e funcionam como um órgão, pois sem eles não conseguiríamos subsistir, da mesma maneira que a pele é um órgão por si só. As bactérias, fungos, vírus que vivem dentro de nós têm um efeito protetor e ajudam-nos a digerir e a metabolizar.

O microbioma é uma família que vive dentro de nós, são várias espécies de organismos vivos que nos habitam e funcionam como um órgão, pois sem eles não conseguiríamos subsistir, da mesma maneira que a pele é um órgão por si só

De certa forma nós alimentamos esse microbioma. E pelos vistos temos de o tratar bem. Certo?

Se lhe dermos maus alimentos não vão estar saudáveis e não conseguem proteger-nos nem dar-nos os nutrientes que precisamos. Se os alimentarmos bem, vão estar fortes e seguras e a desempenhar o seu papel. Temos que pensar também que 70% do nosso sistema imunitário está concentrado no intestino, e que é através da alimentação que nos chegam muitas bactérias prejudiciais. Se o microbioma estiver saudável, essas bactérias são logo aniquiladas, se não estiver saudável poderá ocorrer o despoletar de uma série de infeções que se originam no intestino e podem levar a inflamações, como a otite ou as artroses, noutras partes do organismo.

Atribui particular importância às bactérias probióticas. São as nossas melhores amigas? Porquê?

Temos de pensar que, se temos uma `família` a viver dentro de nós, temos de lhe proporcionar uma casa confortável. Os probióticos podem ser atacados de vários modos. Comemos várias vezes ao dia e com os alimentos podemos ingerir muitas bactérias inimigas destas outras, probióticas.

Temos biliões de bactérias a viver no nosso intestino que têm de ser regeneradas. Carecemos de fibras [prebióticos] para aumentar essa família e permitir que subsista e podemos consumir alimentos fermentados de origem láctea ou de origem vegetal como o tofu e o seitan. Quem não come lácteos, pode produzir os vegetais fermentados a partir de água e sal e conseguir uma nova colónia probiótica. É fácil. Os portugueses comem poucos alimentos fermentados, à exceção dos pickles e dos iogurtes. O sabor ácido é típico destes alimentos e devemos procurar incluí-lo na nossa alimentação.

O açúcar é um mau alimento, as bactérias boas do instinto preferem hidratos de carbono e fibras mais complexos, como os que existem nos legumes, fruta, leguminosas e sementes

Voltando um pouco atrás, determinadas patologias estão longe do intestino, mas na realidade decorrem de problemas funcionais deste?

Sim, imaginemos que temos sinusite crónica, se tivermos uma alimentação equilibrada que nos permite ter uma flora bacteriana intestinal equilibrada, essa sinusite vai estar prevenida, pois diminuímos ao máximo a probabilidade de inflamação. Pode não parecer estar ligada, mas é o que acontece também com a celulite e com qualquer tipo de inflamação. As inflamações originam-se no ponto de entrada dos agentes inflamatórios, o nosso intestino, o tubo digestivo.

Neste âmbito o que é considerado então um mau alimento?

O açúcar é um mau alimento, as bactérias boas do instinto preferem hidratos de carbono e fibras mais complexos, como os que existem nos legumes, fruta, leguminosas e sementes. No caso do açúcar, como é rapidamente absorvido é o que as bactérias invasoras preferem, ou seja, é um mau alimento porque permite o desenvolvimento da flora invasora.

Intestino: O nosso segundo cérebro gosta de ser mimado e bem alimentado
Intestino: O nosso segundo cérebro gosta de ser mimado e bem alimentado

Depois também as proteínas do leite e do glúten são inflamatórias, podem não ser más per si, mas atacar a nossa flora bacteriana intestinal e originar uma inflamação. Naturalmente, há pessoas mais e menos tolerantes. Pode ser um caso não detetado na componente sanguínea, mas uma sensibilidade a nível intestinal que a pessoa nota logo. Por exemplo, o individuo bebe um copo de leite e fica com o ventre muito distendido, ou consume massa e fica com esses sintomas ou com problemas na pele.

Certo, mas também estamos aqui perante a possibilidade de patologias mais gravosas.

Sim, 90% do cancro do cólon deve-se à alimentação, associada ao défice de bactérias. Muitas vezes é um cancro silencioso porque as pessoas se habituaram a ter a barriga inchada e alguma ligeira dor que não ligam muito. Subestimamos o mal-estar do intestino e não de outras partes do corpo.

A Mafalda associa todas estas questões da mudança de hábitos a outros aspetos, nomeadamente a sazonalidade dos alimentos, o sabermos planear as compras, etc. Pode explicar-nos?

Sim, é muito importante saber escolher, se tivermos em casa os ingredientes que nos fazem bem, à partida a nossa alimentação será melhor, mas com o dia-a-dia as pessoas desorganizam-se ou tendem a comprar sempre as mesmas coisas; os mesmos iogurtes, a mesma fruta, a mesma carne, devemos variar e, pelo menos nos frescos, a sazonalidade obriga-nos a variar e a trazer para o nosso organismo alguns nutrientes que possam estar em falta. Devemos fazer uma alimentação rica em fibras, mas não excessiva, pois tal pode levar a um excesso de trabalho microbiota e o ventre fica distendido e dá sensação de mal-estar.

Há muito que escutamos que o nosso intestino é como um segundo cérebro. Pela leitura do seu livro percebemos que é mesmo assim. Quer aprofundar?

Tem um sistema nervoso próprio, tudo o que esteja ligado a nível emocional, cerebral de comportamento, desencadeiam reações no intestino que podem ser silenciosas. Uma pessoa que tem medo da perda é uma pessoa com tendência para a  obstipação. Uma pessoa muito acelerada, preocupada e ansiosa tem problemas intestinais. Claro que a flora é influenciada por tudo, um bebé que nasce por cesariana tem menos camada protetora da mãe, um bebé que nasce de parto normal, já nasce com essa camada protetora da mãe, isso é influenciado desde o nascimento.

A Mafalda, como já vimos, faz uma forte ligação entre a sua prática e a medicina chinesa. Pelo que percebo, porque não se foca apenas na questão física, mas também moral, relacional. É importante quando tratamos estas patologias?

Vivemos numa geração muito sujeita a stress, este faz parte da vida. Quem não acusa o stress parece ser um deslocado da sociedade. Por vezes, temos pouco tempo para parar e pensar. Tendo em conta que o intestino sofre com prolemas emocionais o que, por seu turno, influencia todo o nosso corpo, podemos ter na origem do tratamento uma consulta de psicologia, ou de medicina alternativa. Ai, o bem-estar é tratado como um todo e não como uma parte.

Se a medicina convencional não me dá uma resposta sobre que doença tenho através de análise de sangue, então terei de perceber através de outras medicinas como alcançar o equilíbrio e minimizar sintomas. Foi assim que descobri que a medicina chinesa tem essa vertente. Nas primeiras sessões foram-me colocadas perguntas sobre as minhas relações familiares, com os amigos, o estilo de vida, preocupações diárias, se me preocupava com a reação dos outros, se gostavam ou não de mim.

Muitas pessoas quando pensam em restrições alimentares, julgam que já não podem comer mais nada, porque estão habituadas a comer sempre as mesmas coisas e não percebem as alternativas.

A Mafalda refere pessoas Yang e pessoas Yin, o que são?

A medicina chinesa divide tudo por energias. As pessoas Yang, como eu, são mais aceleradas e ativas, com tendência para `explodir`. Logo é preciso procurar alimentos mais calmos, menos estimulantes. Por exemplo, tive que eliminar praticamente a ingestão de gengibre e canela, porque são estimulantes. Uma pessoa que seja mais Yin, precisa de alimentos que estimulem o metabolismo, como o gengibre e a canela. Temos que tentar perceber que tipo de pessoa somos e quais os alimentos que nos permitem encarar melhor o dia e gerir o nosso stress.

No que respeita a receitas, ao folhearmos o seu livro, encontramos muita variedade, diversidade e inclusivamente doces. A Mafalda consegue variar muito…

Muitas pessoas quando pensam em restrições alimentares, julgam que já não podem comer mais nada, porque estão habituadas a comer sempre as mesmas coisas e não percebem as alternativas. Quando entendem que existe um outro mundo na alimentação, abrem horizontes e pensam nunca comprei isto na vida, mas se calhar vou começar a adquirir. E procuram, não só outros alimentos, como outros sabores. Aí faz toda a diferença. Mudar hábitos não é fácil.

A Mafalda sente que tem sido promotora dessa mudança?

Sim, faço muito esse trabalho nas minhas consultas. Quando comecei a dizer às pessoas que a alimentação devia ser 80% vegetal, associavam logo ao vegetariano. Com o tempo perceberam que não é assim. Os outros 20% de alimentos de origem animal, a carne, peixe, ou ovos, têm de ser bem geridos. Isso permite-nos fazer duas alimentações por dia com alimentos de origem animal, mas depois o resto do dia devemos preferir o vegetal.

Noutros tempos, quando uma pessoa estava doente, estranhava quando se falava de alimentação. Hoje, quando tal acontece, por medo, as pessoas mudam o estilo de vida e nota-se esse impacto nos filhos, pais e avós.