Em 2022, nasceram na Maternidade do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca 2.680 bebés. Mais de 10% destes recém-nascidos nasceram prematuros – 272 nasceram com idade gestacional inferior a 37 semanas. Destes, 90 foram “grandes prematuros”, com idade gestacional inferior a 32 semanas.
O nascimento de um bebé prematuro está documentado pela ciência como sendo um acontecimento gerador de stress e crise para a família. A perceção de perda e luto, pela antecipada e abrupta interrupção da gravidez; sentimentos de culpa relacionados com a incapacidade de “levar” a termo a gravidez; incerteza, no que concerne ao futuro desenvolvimento saudável do bebé e a imediata separação, por um longo período, do bebé e da família; são alguns dos fatores que estão na origem deste problema.
Os desafios muitas vezes são ainda maiores e há diversas questões que devem ser tidas em consideração antes e depois do regresso a casa.
Foi neste contexto que falámos com a médica Rosalina Barroso, diretora do Serviço de Neonatologia do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca (HFF).
Há fatores de risco ou ambientais que expliquem o nascimento prematuro?
A maior parte dos nascimentos prematuros são de causa desconhecida e espontânea, ou podem dever-se a infeções e complicações da gravidez, que culminam no nascimento do bebé antes das 37 semanas de idade gestacional – os nove meses de gravidez.
No entanto, são vários os fatores de risco associados à prematuridade, entre os quais se encontram as idades maternas muito jovem (inferior a 18 anos) ou avançada (superior a 40 anos), a obesidade, a hipertensão na gravidez, a gravidez gemelar, a procriação medicamente assistida, o trabalho materno que exija grandes esforços físicos, hábitos tabágicos, ou de outras substâncias tóxicas.
É extremamente importante o conhecimento destes fatores de risco que, em alguns dos casos, podem ser prevenidos, diminuindo, assim, o número de partos prematuros.
Há mais nascimentos prematuros atualmente?
Apesar da diminuição da natalidade, a taxa de prematuridade mantém-se mais ou menos constante, sendo a prematuridade considerada um grave problema de saúde pública. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2020 nasceram antes das 37 semanas de idade gestacional 13,4 milhões de recém-nascidos. A OMS chama à prematuridade “a emergência silenciosa”, tendo divulgado este ano um relatório, em parceria com a Unicef, em que afirma que a prematuridade se tornou a principal causa de mortalidade infantil.
A taxa de prematuridade varia entre os 4 e os 16% a nível mundial. Em Portugal, um em cada oito recém-nascidos nasce prematuro. Estamos a meio da “tabela” da prematuridade.
Já falámos sobre alguns dos fatores de risco associados, mas quais são os principais "embates" da parentalidade prematura?
Quando nasce um bebé prematuro, nascem também uma mãe e um pai prematuramente.
Não encontro melhor expressão do que aquela que um dia ouvi a uns pais no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, na Amadora, sobre a sua experiência pessoal de pais de um prematuro: ter um bebé prematuro é como sair da carruagem de um comboio em andamento.
É um processo muito doloroso e violento. Durante a gravidez, existe uma idealização dos pais em torno do bebé e da mãe sobre o parto. Mas nada corre como previsto e o bebé nasce prematuro e muitas vezes sem um aviso. Vive-se necessariamente um luto pela “perda” do “bebé sonhado”, com sentimentos de tristeza e culpabilização associados.
Assistimos a isto repetidamente, tal como à impotência no cuidado daquele bebé muito frágil, ligado a máquinas, sondas, e com um aspeto muito diferente do recém-nascido das revistas. Dependendo da idade gestacional com que estes bebés nascem, podem caber na palma de uma mão, ter um peso inferior a um quilo. Para nós, profissionais é o nosso dia-a-dia. Para os pais, é um choque com aquela que será a sua realidade durante os próximos longos meses.
Neste primeiro embate, o papel dos neonatologistas e dos enfermeiros deve ser facilitadora, trazendo os pais para a equipa de cuidados: a comunicação deve ser clara e esclarecedora, o apoio psicológico e espiritual tem de ser facultado, os grupos de pais devem trocar experiências, a família e os amigos têm todos um papel preponderante na resolução das incertezas sentidas pelos pais de bebés prematuros. Todos juntos enfrentamos estes primeiros dias de prematuridade porque é uma batalha longa.
E quando estamos a falar de “grandes prematuros”, quais são os principais desafios?
A prematuridade define-se genericamente como o nascimento antes das 37 semanas de idade gestacional. Mas existem depois subcategorias de prematuridade baseadas na idade gestacional, que nos apresentam os maiores desafios, como é o caso da “prematuridade extrema”, a dos bebés que nascem abaixo das 28 semanas de idade gestacional. Estes são bebés que necessitam de cuidados altamente diferenciados. Quanto menor a idade gestacional e peso, maior será o risco de mortalidade e morbilidade destes bebés. As primeiras horas e dias da vida do “grande prematuro” são particularmente importantes no que diz respeito à sua estabilidade cardíaca, respiratória, no equilíbrio entre a nutrição e os líquidos. São horas determinantes e em que a resposta do bebé pode condicionar todo o futuro.
Um bebé prematuro um dia pode estar a desenvolver-se bem, e outro dia a lutar pela vida. O dia a dia da Unidade de Cuidados Intensivos também se faz disso. Os principais riscos a que estamos vigilantes num “grande prematuro” são a hemorragia cerebral, a doença pulmonar crónica, retinopatia da prematuridade e as infeções. Numa fase posterior, estamos vigilantes a possíveis alterações do desenvolvimento psicomotor.
Como se alimenta um bebé prematuro?
Um recém-nascido prematuro com idade gestacional inferior a 32 semanas, não apresenta autonomia alimentar – pois não tem os reflexos de sucção e deglutição desenvolvidos para capacitar a amamentação, devido à sua imaturidade.
A opção recai, então, nos primeiros dias de vida pela nutrição parentérica – através de um cateter colocado num vaso sanguíneo- em que os nutrientes são fornecidos por via endovenosa. A nutrição parentérica deve ser considerada uma ponte até que se estabeleça a nutrição entérica total (via oral). A nutrição entérica é inicialmente administrada através de uma sonda e, em pequenas quantidades, vigiando-se a tolerância alimentar. A nutrição na prematuridade é considerada uma emergência nutricional pelos desafios e dificuldades em estabelecer um crescimento e desenvolvimento adequados (semelhante ao que deveria ocorrer in utero). No bebé prematuro é de extrema importância que se ofereça sempre leite materno, que terá de ser extraído escrupulosamente de forma mecânica pela mãe (extração com bomba), para se manter a sua produção até ao momento em que o bebé pode finalmente sair da incubadora, retirar a sonda, e mamar diretamente na mama.
O nosso objetivo é que os bebés sejam alimentados exclusivamente com leite materno, porque é a opção que minimiza riscos e complicações, como as infeções. Este é um esforço que os profissionais pedem às mães, porque traz inegáveis benefícios para a saúde do recém-nascido, no presente e no futuro, e também porque na componente de humanização apoia a mãe a aproximar-se da idealização da maternidade “sonhada”.
Já percebemos que a neonatologia evoluiu muito. Os grandes prematuros têm hoje muito mais possibilidade de serem bem-sucedidos do que há alguns anos atrás?
Sim, sem dúvida, os avanços são extraordinários sobretudo se tivermos em conta que a neonatologia é uma especialidade com cerca de meio século de existência. A taxa de sobrevivência de um bebé de um quilo no século XXI é de 95%, enquanto há 40 anos atrás, a proporção era a inversa – o risco de mortalidade era de 95%.
Foi devido ao avanço da tecnologia, à regionalização dos cuidados obstétricos e neonatais, às transferências in utero no pré-parto, de modo que os grandes prematuros nasçam em Unidades diferenciadas, preparadas com as técnicas mais avançadas de intensivismo neonatal, que se conseguiram ganhos significativos em saúde nomeadamente na mortalidade materna e neonatal, sendo Portugal um exemplo citado a nível mundial.
O intensivismo em Neonatologia contribuiu para este pequeno "milagre". Que avanços destaca dos últimos anos?
A neonatologia é uma especialidade altamente tecnológica, cada vez menos invasiva e cada vez mais humanizada.
Existem dois marcos que revolucionaram a história da neonatologia: a administração de corticoides pré-natais à mãe, para a maturação do feto e dos seus pulmões, e a administração de surfactante exógeno ao recém-nascido prematuro, que veio oferecer uma melhoria da dificuldade respiratória no período neonatal imediato.
A tecnologia em cuidados intensivos neonatais é de extrema importância e, atualmente a monitorização contínua, cada vez menos invasiva, permite prever e antecipar algumas sequelas: os ventiladores (invasivos e não invasivos) dispõem de maior monitorização e registo de parâmetros; a oximetria de pulso e oximetria regional cerebral; ecografia cerebral, cardíaca e pulmonar; a hipotermia terapêutica e aparelhos de fototerapia de alta intensidade, são dispositivos altamente diferenciados que algumas Unidades de Cuidados Intensivos Neonatais podem disponibilizar em prol da saúde dos recém-nascidos.
Algo que não devemos esquecer, apesar de parecer óbvio, é a importância do leite materno na saúde de qualquer bebé e, com especial relevância, quando se trata de um bebé prematuro.
Qual o limite de prematuridade mínimo na história da Neonatologia? E no caso do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, na Amadora?
O limite de prematuridade mínimo, atualmente, são as 22 semanas de idade gestacional, havendo alguns casos descritos a nível mundial. Trata-se de uma idade gestacional de um recém-nascido que há poucos anos seria considerado inviável. No HFF, o limite mínimo de viabilidade são as 23 semanas e 450 gr de peso de nascimento.
E a humanização dos cuidados médicos: qual é o papel dos pais nos cuidados dos prematuros?
Os cuidados prestados em Neonatologia devem ser sempre centrados na família. Os pais têm de fazer parte integrante da equipa multidisciplinar – essa é a cultura de cuidados integrados da Neonatologia. Não pode ser de outra forma. Enquanto profissionais de saúde, a agirmos num dos momentos mais delicados da vida de uma família, sabemos que fazemos parte desta história e temos de a capacitar a partir do primeiro momento, com as ferramentas necessárias.
Os pais vão sempre querer o melhor para os filhos – e, por isso, são os nossos melhores “parceiros”. A nível de boas práticas de humanização, no HFF promovemos o contacto pele a pele, a nutrição precoce realizada com leite materno, e a preocupação da não separação do recém-nascido com a complexidade e ambiguidade de sentimentos que a prematuridade traz a uma família.
Como se capacitam os pais para cuidar do prematuro?
A permanência dos pais e a participação nos cuidados na Unidade é extremamente benéfica para a criança e para a família e é por isso sempre incentivada. Os cuidados são centrados na família, pelo que todas as explicações e informações fornecidas pela equipa clínica sobre o estado do recém-nascido, ou sobre os tratamentos ou cuidados a realizar, são muito claras e concisas.
Adotamos o “método canguru”, que consiste no contacto precoce, pele a pele, prolongado e o mais contínuo possível, entre a mãe, o pai e o recém-nascido, permitindo, um maior envolvimento no seu cuidado. Diariamente, na Unidade de Cuidados Intensivos do HFF, os pais podem participar diretamente nos cuidados prestados ao seu bebé - na higiene do bebé, na sua alimentação, ou mudança de fraldas.
A participação nestas atividades, já é uma espécie de treino de desenvolvimento de competências, que contribuirá para o sucesso do processo de preparação para a alta e regresso a casa.
Para além destas ações diárias, que por vezes se repetem durante semanas, ou até meses que dura a hospitalização do recém-nascido, são ainda prestadas pela equipa sessões de preparação para a alta, com esclarecimentos mais detalhados sobre o bebé em casa com a família.
Na nossa Unidade, o apoio e capacitação parental persiste após a alta médica, sob a forma de visitas domiciliárias, efetuadas pela equipa de enfermagem e equipa médica, uma mais-valia de acompanhamento de proximidade para quem nasce prematuro no HFF, evitando que o bebé, que é mais frágil, se exponha aos riscos de uma ida ao hospital, para ser avaliado.
E no momento da alta, um prematuro deixa de o ser quando?
Um bebé prematuro deixa de ser considerado como tal aos dois anos de “idade corrigida”, ou seja, a idade que deveria ter se tivesse nascido às 40 semanas de gestação. Considera-se que nesta idade o desenvolvimento psico-motor será semelhante ao de uma criança que nasceu de termo.
De que forma é que o projeto “Chicco Dá Vida” contribui para a qualidade de vida dos recém-nascidos que se encontram atualmente na UCI do Hospital?
Os aparelhos doados pelo projeto “Chicco Dá Vida” vão contribuir grandemente para aumentar a diferenciação dos cuidados de qualidade que são prestados na Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais do HFF.
Com o equipamento de hipotermia, que o HFF não possuía, vamos poder abordar bebés com complicações tão graves como a asfixia perinatal, para os quais existe evidência científica da utilização desta terapêutica na minimização de sequelas por esta patologia.
A doação vai permitir-nos intervir na “janela terapêutica”, sem necessidade de transferência dos recém-nascidos para outras instituições da Grande Lisboa, como até agora acontecia. Graças ao apoio da Chicco também poderemos receber bebés de outros hospitais com esta patologia.
Já com o aparelho de fototerapia intensiva, em que vamos fazer abordagem à icterícia neonatal, aumentamos grandemente a eficiência e rapidez do tratamento minimizando desde logo o tempo de separação entre os pais e o bebé.
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