Para que nos serve um Serviço Nacional de Saúde? Grossman (1972) explicou que a saúde é simultaneamente um bem de consumo e de investimento. A criação do SNS firmou-se num princípio solidário: é melhor para todos que todos estejam melhor.

Desde 1971, com a formalização do SNS em 1979, os indicadores evidenciam o progresso: a mortalidade infantil caiu de 55,5 por 1000 nados-vivos (1970) para 2,8 (2022), enquanto a esperança de vida à nascença aumentou de 71,8 (1982) para 81,6 anos (2022). Estas conquistas resultaram de um sistema universal que estabeleceu o médico de família como gestor dos cuidados e os Centros de Saúde como referência comunitária, garantindo previsibilidade e confiança.

As reformas sucessivas (Centros de Saúde de “terceira geração” em 1999 e Unidades de Saúde Familiar em 2005) procuraram preservar a proximidade enquanto modernizavam o modelo. Contudo, a busca incessante por novos modelos organizacionais e a entrada de competidores privados no negócio da saúde negligenciou a mais-valia fundamental do SNS: a sua integridade orgânica e robustez de resposta descentralizada.

A criação das Unidades Locais de Saúde tentou recuperar esta natureza assistencial, esboçando um projeto de um SNS 2.0 adequado aos desafios emergentes, mas parece não ter sido capaz de travar a tendência para a “grande desintegração”. A realidade é que nenhum dos desafios emergentes que enfrentamos – o envelhecimento da população, o aumento dos custos com tecnologias de saúde, a intensificação dos fluxos migratórios, a utilização indevida dos serviços de urgência – recusa o SNS que Abril construiu como modelo-chave para a sua resolução. A Lei de Bases da Saúde de 2019 deixa claro, na base 19, que “o funcionamento do sistema de saúde não pode pôr em causa o papel central do SNS enquanto garante do cumprimento do direito à saúde”. Este reconhecimento legal sublinha a necessidade de preservar o núcleo funcional do sistema, mesmo quando se procuram soluções inovadoras.

Esta desintegração manifesta-se em múltiplos níveis interligados:

  1. Planeamento estratégico fragmentado: o Plano Nacional de Saúde está afastado das políticas concretas, enquanto o planeamento local foi substituído por abordagens meramente administrativas. Nas unidades hospitalares, e com honrosas exceções, os administradores criaram departamentos de planeamento mais focados na medição de processos do que na compreensão das necessidades populacionais.
  2. Paradoxo tecnológico: a incorporação acrítica de tecnologia coexiste com o abandono do planeamento estratégico. A multiplicidade de plataformas incompatíveis e a ausência de standards comuns criaram um ecossistema tecnológico incoerente que, em vez de integrar, fragmenta o sistema. A ascensão da inteligência artificial promete continuar a aprofundar este problema, com a aquisição de soluções digitais avulsas que podem comprometer a integridade funcional do sistema.
  3. Desvio da missão preventiva: as estruturas de saúde pública viram o seu papel reduzido maioritariamente a funções de autoridade e resposta a emergências, como evidenciado durante a pandemia de COVID-19, que expôs a dificuldade de articular respostas coerentes entre diferentes níveis.

Reverter esta desintegração exige recuperar a visão integrada original do SNS:

  1. Reforçar a governação estratégica, recuperando a capacidade de planeamento em saúde articulado aos níveis nacional, regional e local.
  2. Revitalizar os cuidados primários como espinha dorsal do sistema através de equipas multidisciplinares de proximidade.
  3. Integrar efetivamente os cuidados, transformando as ULS em instrumentos de continuidade assistencial centrada no utente.
  4. Refortalecer a saúde pública no planeamento, monitorização e avaliação das intervenções, colocando as equipas de saúde pública no centro do sistema de saúde.
  5. Digitalizar com propósito, implementando standards comuns e interoperabilidade efetiva.

Nas últimas décadas, concentrámo-nos mais em consumir saúde do que em potenciar uma população saudável. Um SNS reintegrado requer abandonar a lógica consumista dos cuidados em favor de uma perspetiva de investimento social na saúde como recurso coletivo gerador e multiplicador de bem-estar.