A cortina fecha-se. A ovação ecoa durante dias naquela cabeça, que está tudo menos vazia, para se fazer ressoar assim. Despe-se a roupa, mas a personagem não sai com ela. Fica um pouco de Tchekhov ou de Beckett, que teimam em não sair e moldam o actor que lhes entregou boa parte da vida. Um dia, o corpo cansa-se e as ovações ficam com o ranger das tábuas dos palcos mais importantes do país. As mãos, que deram vida a tanta gente, servem agora para contar o número de visitas por entre aquela porta imóvel. Entre lares e a solidão de casa, o desamparo é denominador comum.
Aprender a lidar com o abandono e com o esquecimento, contrasta com quem já teve de aprender a lidar com a fama. Chega a ser irónico que a arte, a única coisa que nos torna imortais, não nos permita primeiramente viver. A certa altura sobrevive-se, longe dos holofotes que os identificavam, quando agora já nem sabem quem são.
A morte, o esquecimento, o abandono e o envelhecimento voltam a ser capa de jornal. A grande merda é que os actores morrem. Não só na peça, de forma encenada ou com a hipótese de o final ser revisto. Morrem, ponto. Às vezes esta é a única salvação para quem se sente traído por um país que (talvez um dia!) já quis saber de si. O problema é que, muitas vezes, deixamos morrer-lhes a dignidade primeiro, sem lhe fazermos o luto. Há uma parte da vida em que vivem sem a mesma dignidade que também não tiveram na morte. Essa é apenas uma transição, pior é quando a vivenciam. Experienciar passar pela morte no perfeito gozo das capacidades vitais, é o princípio do fim.
A ingratidão é ignorarmos que os corpos que encarnaram Shakespeare ou Tolstoy são os mesmos que padecem de doenças neuromusculares ou declínios cognitivos. O problema não deveria existir quando a memória atraiçoa o actor, mas sim quando atraiçoa o público, o mesmo que alimentou o artista. Não devíamos abandoná-lo e vê-lo morrer, ao longe, em praça pública. Devíamos acreditar que não morre. É artista e fomos educados a pensar que são perpetuados no tempo, porque a memória deveria ser sempre nossa fiel companheira. Os artistas reportam-nos ao imaginário onde a ausência física não é, sequer, questão. E quando o é, rescreve-se o final, porque a personagem principal não pode morrer no fim.
É urgente salvarmo-nos e protegermo-nos do esquecimento. Porque nascer e morrer, são dois lados da mesma viagem.
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