Um recente acórdão do Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se sobre uma questão de grande relevância jurídico-fiscal, com efeitos na vida de milhares de portugueses: a manutenção de benefícios fiscais atribuídos com base em atestados de incapacidade permanente, perante reavaliação que resulta na redução do grau de incapacidade.
Estão atualmente pendentes nos tribunais várias impugnações com origem na mesma factualidade: um contribuinte que beneficiava de deduções em sede de IRS, fundadas num grau de incapacidade igual ou superior a 60%, comprovado por atestado médico multiusos. Após reavaliação, foi-lhe atribuída uma incapacidade inferior, levando a Administração Tributária (AT) a desconsiderar os benefícios anteriormente reconhecidos.
O ponto de fricção reside na interpretação do artigo 4.º, n.os 7 a 9, do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23/10, conjugado com a da norma interpretativa do artigo 4.º-A , permite manter o grau de incapacidade anterior quando esteja em causa perda de direitos e benefícios já reconhecidos.
Com a publicação daquele acórdão, sedimenta-se o entendimento de que, em reavaliações de incapacidade, deve prevalecer a avaliação mais favorável ao contribuinte, desde que não haja alteração significativa do estado de saúde. Não se trata de um novo direito, mas da continuidade de uma situação previamente reconhecida, com todos os efeitos legais que daí decorrem.
É expectável que um contribuinte em recuperação de uma patologia incapacitante continue a ter despesas acrescidas e dificuldades de reintegração laboral. A propagação dos efeitos da incapacidade justifica o princípio da avaliação mais favorável.
A interpretação da AT — excessivamente literal e descontextualizada — contraria os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da justiça tributária. A revogação automática de benefícios fiscais ignora a ratio legis e a função social dos incentivos fiscais a pessoas com deficiência.
Não estão em causa privilégios indevidos, mas benefícios legítimos atribuídos a cidadãos cuja condição de saúde, ainda que revista, não sofreu melhoria real. A posição da AT, além de contrariar a jurisprudência agora consolidada, compromete a equidade fiscal.
A insistência da AT numa leitura formalista, em desconexão com a jurisprudência consolidada e com o espírito da lei, traduz uma visão fiscalizadora que ignora a justiça material. Quando o Estado, pela sua máquina fiscal, se volta contra os mais frágeis, não distorce apenas o direito, trai a sua missão.
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