As Doenças Lisossomais de Sobrecarga (DLS) são um grupo de doenças hereditárias (genéticas), heterogéneas e raras. Em Portugal, a prevalência deste grupo de patologias em recém-nascidos é de 25 por cada 100.000.
Estas doenças são caracterizadas pela acumulação de substâncias não degradadas dentro dos nossos lisossomas devido à deficiência de uma enzima lisossomal. Deste mecanismo de doença comum, resulta um aumento de volume e número dos lisossomas, culminando na disfunção das células e consequentemente nas mais variadas manifestações clínicas.
Desde a identificação da primeira deficiência enzimática lisossomal, da Doença de Pompe, em 1963 por Henri-Gery Hers, mais de 60 outras doenças foram também descritas. Muito devido aos recentes avanços dos estudos de genética molecular, que tanto nos direcionaram para os produtos genéticos como para os próprios genes. Assim, os genes anómalos da maioria destas doenças genéticas foram isolados e caracterizados e as suas mutações específicas identificadas.
As DLS são habitualmente classificadas de acordo com a substância acumulada e encontram-se divididas por diferentes grupos. São exemplos destas doenças: a Doença de Fabry, a Doença de Pompe, a Doença de Gaucher, a Doença de Niemann-Pick, as Mucopolissacaridoses, a Deficiência de Lipase Ácida Lisossomal, entre outras.
As DLS podem virtualmente afetar todos os nossos órgãos e sistemas de forma progressiva, pela acumulação gradual destas substâncias não degradadas. A distribuição e a acumulação das diferentes substâncias determina que órgãos são afetados. A apresentação clínica é extremamente variável (de ligeira a muito grave), podendo ocorrer envolvimento de diversos órgãos, muitas vezes aumentados em tamanho (coração, fígado, baço…), alterações de estatura e da conformação facial, envolvimentos de pequenas e grandes articulações, sintomas neurológicos com alterações cognitivas (não raras vezes com atraso mental), alterações dos movimentos e da marcha, alterações da sensibilidade, entre tantos outros.
A gravidade da doença prende-se com a atividade da enzima em questão, sendo que abaixo de um certo nível existe acumulação de substâncias. De forma consistente, quanto menor a atividade, menor a idade de aparecimento e maior a gravidade da doença.
Habitualmente os doentes com DLS eram identificados quando apresentavam sinais ou sintomas específicos destas doenças ou em estudos de famílias sob aconselhamento genético, por casos já previamente diagnosticados. Atualmente, estudos genéticos (com identificação de mutações específicas), bem como testes enzimáticos (com determinação da atividade das enzimas)
realizados habitualmente em amostras de sangue, fornecem de forma direta informação prática que permite a deteção precoce e o estabelecimento do diagnóstico destas doenças. A utilização destes testes tem vindo a ser útil também no rastreio de recém-nascidos para múltiplas DLS, em vários países.
Até ao início dos anos 90 a abordagem terapêutica das DLS foi essencialmente sintomática, recorrendo-se em situações muito específicas ao transplante de medula/órgão.
O desenvolvimento e a autorização de utilização da terapêutica de substituição enzimática na Doença de Gaucher nos EUA, constituiu um marco fundamental na abordagem destas patologias. O ano de 1993 marca o início do tratamento da doença de Gaucher em Portugal.
Nas últimas três décadas verificou-se um progresso significativo no desenvolvimento de tratamentos modificadores do percurso destas doenças (uns já disponíveis e outros ainda em investigação), possibilitando o tratamento dos doentes com algumas destas patologias, nomeadamente: a Doença de Gaucher, a Doença de Fabry, a Doença de Pompe, as Mucopolissacaridoses tipo I, II, IVA e VI, a Deficiência de lipase ácida lisossomal e a Doença de Niemann Pick tipo C. No final do ano de 2018 encontravam-se em tratamento, em Portugal continental, 276 doentes com DLS.
Nenhum destes tratamentos é uma cura definitiva para qualquer uma das doenças referidas, no entanto, permitem melhor controlo dos sintomas e em alguns casos retardar a evolução das mesmas, com consequente repercussão positiva na qualidade de vida dos doentes.
Vários desafios permanecem ainda por ultrapassar. A terapia genética continua em estudo e poderá ser uma resposta, mas ainda não está disponível.
O reconhecimento dos sintomas de apresentação, um diagnóstico precoce e instituição de tratamento de forma atempada continuam a ser essenciais para travar a evolução destas doenças, modificando assim a história natural das mesmas.
Um artigo da médica Luísa Pereira, Internista e Paliativista do Hospital CUF Tejo e Coordenadora Adjunta do Núcleo de Estudos de Doenças Raras da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna.
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