Os protestos que se alastraram este fim de semana por várias cidades chinesas foram suscitados por um incêndio mortal, num prédio na cidade de Urumqi, no noroeste da China. Imagens difundidas nas redes sociais mostram que o camião dos bombeiros não conseguiu entrar inicialmente no bairro, já que o portão de acesso estava trancado, e que os moradores também não conseguiram escapar do prédio, cuja porta estava bloqueada, em resultado das medidas de prevenção epidémica.
"Não é tanto pelos bloqueios em si", disse à agência Lusa a funcionária de uma empresa estatal chinesa que começou recentemente à procura de formas de emigrar. "É mais pela forma como o governo atua", apontou.
Numa manifestação ocorrida no domingo, em Pequim, as palavras de ordem foram sobretudo dirigidas às restritivas medidas de prevenção epidémica vigentes no país. No entanto, a agência Lusa testemunhou também críticas diretas ao Partido Comunista Chinês, partido único do poder na China, desde a fundação da República Popular, em 1949.
"A China é um país e não um partido", lançou uma manifestante. "A China pertence ao seu povo, e não a eles", atirou outro, erguido em cima de um muro, com o punho no ar, arrancando aplausos dos manifestantes.
Ao abrigo da política de 'zero casos', a China impõe o bloqueio de bairros ou cidades inteiras, a realização constante de testes em massa e o isolamento de todos os casos positivos e respetivos contactos diretos em instalações designadas, muitas vezes em condições degradantes, alertando muitos chineses para os perigos inerentes a um Estado com capacidade para abolir subitamente liberdades ou direitos individuais, sem limites ou mecanismos institucionais de responsabilização.
Quando um caso positivo é detetado num bairro ou edifício, os portões e portas de acesso são trancados, incluindo saídas de emergência. Frequentemente, os elevadores são também desativados e chapas de alumínio são colocadas em torno do prédio ou bairro, que passa a estar sob a vigilância de seguranças privados 24 horas por dia.
Funcionários de saúde e agentes de segurança, vestidos com fatos de proteção química e com a cara coberta por máscaras respiratórias, transportam os residentes que testaram positivo, incluindo assintomáticos, para centros de quarentena: instalações improvisadas, com as camas distribuídas num espaço comum, sem chuveiros, e com uma casa de banho para centenas ou até milhares de pessoas. Os contactos diretos são isolados em espaços individuais: hotéis ou contentores, muitas vezes a dezenas de quilómetros do seu local de residência.
A polícia arromba a porta de residentes que se recusam a ser levados, retirando-os à força dos seus apartamentos.
Os estrangeiros radicados no país asiático, comentam frequentemente que é difícil explicar a quem está de fora o que é um confinamento na China, numa referência à discrepância em relação às medidas de prevenção adoptadas no resto do mundo, em 2020 e 2021.
O Partido Comunista Chinês emitiu, este mês, directrizes que visam tornar a estratégia mais "direcionada" e "cientifica". No entanto, uma cultura de medo instalada na burocracia chinesa, que pode ser punida quando um surto ocorre na sua jurisdição, mas não por excesso de zelo, dificulta a suavização das medidas.
"As autoridades locais têm apenas uma métrica agora: 'zero covid'", resumiu o presidente da Câmara de Comércio da União Europeia na China, Joerg Wuttke, que vive no país há 40 anos. "Um funcionário do governo não perde o emprego se a economia na sua cidade afundar, mas sim se ocorrer um surto do coronavírus", descreveu à Lusa.
A mobilização dos Comités de Bairro como "guardiões das comunidades", no combate da China contra a covid-19, expandiu também os poderes no nível mais baixo da burocracia chinesa, resultando muitas vezes em abusos de autoridade e medidas arbitrárias e até contraditórias, face às diretrizes emitidas pelas autoridades de saúde.
Temendo o surgir de casos nas suas áreas, assim que é detetado um surto na cidade, estes comités colocam bairros sob bloqueio, mesmo sem ordem do Centro de Controlo de Doenças, a autoridade máxima responsável pela implementação de medidas. Estes mesmos comités prolongam também, por vezes, os bloqueios, para além daquilo que é o período previsto pelas diretrizes do Governo central.
"Senti-me sem esperanças", contou à Lusa uma residente de Xangai, que recusou ser identificada, no final de um bloqueio de dois meses na maior e mais cosmopolita cidade da China. "Um grupo de pessoas que nem sequer têm educação ou qualquer preparação subitamente passou a ter o poder de decidir sobre a minha liberdade", acrescentou.
A aplicação implacável de medidas resulta, por vezes, na escassez de alimentos e outros bens de primeira necessidade, e produz episódios trágicos.
Nos últimos meses, pelo menos duas crianças morreram, enquanto cumpriam quarentena, depois de lhes ter sido negado tratamento médico em tempo útil. Uma das crianças, um menino de três anos, morreu por envenenamento causado por uma fuga de monóxido de carbono em casa, na cidade de Lanzhou. O seu bairro estava sob bloqueio. O pai culpou os profissionais de saúde, que, segundo ele, impediram-no inicialmente de levar o filho para o hospital. Em setembro passado, um acidente de autocarro que levava 47 pessoas para cumprirem quarentena, no sudoeste da China, resultou na morte de 27 passageiros.
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