A recente demissão do CEO do Serviço Nacional de Saúde (SNS) expôs as debilidades de um modelo de gestão importado, implementado sem a necessária adaptação às especificidades do sistema de saúde português. Inspirada no exemplo britânico, a figura de CEO nunca conseguiu afirmar-se no contexto nacional, contribuindo antes para agravar a desarticulação de um sistema já sobrecarregado e carente de liderança eficaz. Este episódio deveria motivar uma reflexão profunda sobre a estrutura e a governação do SNS.

No Reino Unido, o modelo de CEO insere-se numa estrutura descentralizada, apoiada por forte autonomia local e mecanismos de integração funcional. Apesar de enfrentar desafios como listas de espera e dificuldades na retenção de profissionais, o sistema britânico mantém-se entre os melhores do mundo graças à sua base organizativa robusta. Em contraste, a tentativa de replicar esta abordagem em Portugal ignorou diferenças cruciais: o caráter historicamente centralizado do SNS, a ausência de uma tradição de autonomia regional e as particularidades culturais e administrativas do país. Este desfasamento transformou a figura de CEO num elemento desajustado, incapaz de promover mudanças significativas num sistema burocrático e pouco coordenado.

A introdução do cargo de CEO veio, paradoxalmente, eliminar o nível regional de coordenação, anteriormente fundamental para a articulação de políticas e a gestão de recursos. Sem este elo, o sistema passou a operar com redundâncias e conflitos de competências entre o Ministério da Saúde, as administrações . As Unidades Locais de Saúde (ULS) representam uma mais-valia inegável, promovendo a gestão integrada e a proximidade nos cuidados. No entanto, a ausência de uma regulamentação clara para os cuidados de saúde primários gerou modelos organizativos heterogéneos, dificultando a monitorização de resultados e comprometendo a equidade na prestação de cuidados.

Historicamente, o SNS beneficiou de lideranças médicas e de enfermagem eleitas pelos seus pares, uma prática que fomentava proximidade, confiança e representatividade. Esses líderes, legitimados pelas equipas, tinham conhecimento aprofundado das necessidades locais, conseguindo equilibrar as prioridades regionais com os objetivos nacionais. O abandono deste modelo em favor de lideranças centralizadas e muitas vezes externas afastou os decisores do terreno, contribuindo para uma maior desconexão entre as estratégias de gestão e as realidades operacionais. Retomar o modelo de eleição interna seria um passo decisivo para restaurar a confiança e reforçar a coesão organizativa do SNS.

A extinção dos Agrupamentos de Centros de Saúde (ACES) e das Administrações Regionais de Saúde (ARS) agravou ainda mais a situação, deixando um vazio regulamentar que fragilizou a coordenação e o planeamento estratégico. Como já referido, a falta de regulamentação clara para as Unidades Locais de Saúde (ULS) tem comprometido a uniformidade nos processos e a comparabilidade de resultados. É essencial que sejam publicadas normas que definam as competências e o funcionamento das ULS, assegurando a equidade, a sustentabilidade e a eficácia do sistema.

A demissão do CEO não deve ser encarada apenas como um sinal de fracasso, mas como uma oportunidade para reavaliar e reformular a gestão do SNS. Importar modelos sem ajustá-los ao contexto nacional não é a solução. Liderança não se constrói a partir de títulos, mas de legitimidade, proximidade e visão estratégica. Sem estas bases, gerir torna-se um exercício estéril, incapaz de enfrentar os desafios estruturais de um sistema tão vital quanto o SNS.

Como disse Fernando Pessoa, “Navegar é preciso; viver não é preciso.” Para o SNS, liderar e planear são essenciais. O futuro do sistema de saúde português depende de lideranças que inspirem confiança, alinhem estratégias e assegurem que o SNS permanece funcional, resiliente e focado em servir a população. Mais do que uma mudança de nome ou cargo, o SNS precisa de uma transformação estrutural que devolva eficácia e coesão a um sistema vital para o país.

De acordo com o relatório de 2023 da Organização Mundial da Saúde, o SNS português está entre os 15 melhores sistemas de saúde do mundo, destacando-se pelo acesso universal e eficiência. Este reconhecimento prova que um sistema público bem liderado e estruturado supera desafios e promove a equidade. A privatização, pelo contrário, agrava desigualdades e custos, como mostram exemplos internacionais. Portugal deve reforçar o SNS como um modelo de excelência, garantindo saúde de qualidade para todos.