HealthNews (HN) – Desde 2001, a GOLD publica anualmente um documento que recomenda a melhor forma de prevenir, diagnosticar e tratar a DPOC, a terceira principal causa de morte em Portugal. De que doença estamos a falar?

Elsa Fragoso (EF) – A doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC) caracteriza-se por um conjunto variável de sintomas que passam geralmente por tosse com expetoração, que é em regra mucosa, pouco abundante, associada a cansaço fácil e dispneia de esforço, portanto, falta de ar associada ao esforço físico. É uma doença com fatores de risco identificáveis. O principal fator de risco, amplamente reconhecido, é o tabaco, sendo certo que, sobretudo nos últimos anos, tem procurado alertar-se a comunidade médica para as outras causas de doença pulmonar obstrutiva crónica. Essa tentativa ficou plasmada na atualização de 2023 das guidelines da DPOC, que destacam as outras etiologias, nomeadamente a exposição a outras partículas ou gases nocivos, a existência de infeções na infância, doenças que comprometem o desenvolvimento pulmonar, a tuberculose, cujas sequelas se complicam frequentemente com o aparecimento da DPOC, alterações genéticas, sendo estes os principais fatores predisponentes para a DPOC. Como terceiro aspeto da definição desta doença temos a demonstração de uma alteração ventilatória obstrutiva brônquica, portanto, obstrução das vias aéreas documentada num exame funcional respiratório muito simples de executar que é a espirometria. Resumindo, é uma doença em que à partida teremos um fator de risco associado a uma clínica compatível e à documentação de obstrução das vias aéreas na espirometria.

HN – Uma novidade no documento GOLD é a recomendação da vacinação contra o vírus sincicial respiratório. Qual a relação entre este vírus, que muitos associam à infância, e a DPOC?

EF – Em relação à ideia comum de que o vírus sincicial respiratório é um vírus quase exclusivo da idade pediátrica: não é. O vírus sincicial respiratório circula muito entre as crianças, mas também no adulto e no idoso tem um impacto importante, sobretudo se o indivíduo adulto tiver doenças crónicas do foro cardiovascular ou respiratório. O CDC estima que o vírus sincicial respiratório seja responsável por qualquer coisa como 60 mil a 160 mil internamentos em adultos de idade mais avançada, com 6000 a 10 mil mortes por ano associadas a esta infeção. A prevalência é elevada não só na criança, mas também no adulto.

A DPOC é uma doença crónica e que cursa com uma limitação persistente em termos de sintomas, de qualidade de vida e da tal obstrução das vias aéreas, mas a sua evolução é pontuada por episódios que nós designamos exacerbações. Portanto, as exacerbações da doença pulmonar obstrutiva crónica são eventos no decurso da doença que estão associados a um impacto muito grande em termos de aumento da mortalidade, deterioração da qualidade de vida e da qualidade da saúde associada à DPOC e a outras doenças crónicas coexistentes. Estima-se que as infeções virais sejam responsáveis por 1/3 a 2/3 das exacerbações da DPOC, e entre as infeções virais está precisamente o vírus sincicial respiratório.

Em relação às infeções virais como causa de exacerbação da DPOC, muito tem sido feito em termos de prevenção, nomeadamente na inclusão da vacinação contra a gripe, que tem uma indicação transversal nos adultos com mais de 65 anos. Estamos a falar de prevenção de infeções virais: vacinação contra a gripe, portanto, contra o vírus influenza, e depois temos a vacinação contra o vírus sincicial respiratório, que já percebemos que é comum no adulto, que tem impacto em termos de hospitalização e de mortalidade, e em particular na DPOC tem impacto porque é um dos fatores promotores de exacerbações. Como tal, é muito custo-efetiva qualquer estratégia que passe pela prevenção desta infeção, nomeadamente na DPOC. Daí a sua indicação e a inclusão na última edição das normas atuais, com nível de evidência A (o mais elevado).

HN- Que outras novidades lhe parecem pertinentes? O que é que destacaria no novo documento?

EF – As outras novidades do documento GOLD prendem-se, essencialmente, com a avaliação da função respiratória, o subdiagnóstico da DPOC e, no campo da terapêutica, o destaque claríssimo para a secção dedicada aos dispositivos inalatórios, que está mais detalhada, procurando aqui realçar a importância que tem a seleção adequada do inalador.

Alterações major ao documento não houve. Houve alterações major em 2023. O diagnóstico continua a ser estabelecido com os mesmos critérios. Em 2023 foram ajustados os critérios de classificação e estadiamento da doença no momento do diagnóstico, utilizando a ferramenta ABE para classificar a doença, do ponto de vista de estratificação do risco futuro de mortalidade e de complicações e com o objetivo de definir um tratamento médico inicial. Também em 2023 tinha havido uma alteração major que se prendeu com a necessidade de chamar a atenção de que o tabagismo não é o único fator de risco – apesar de já estar escrito há muitos anos no documento GOLD, o comité executivo achou, e bem, que essa mensagem devia ser tornada mais clara. Essa mensagem mantém-se em 2024 – é a classificação taxonómica da DPOC, conforme as suas causas e fatores de risco envolvidos, a que aludi anteriormente.

Se tivesse de começar pela questão da função respiratória, diria que é importante salientar que, apesar de não ter havido alterações à forma como se faz o diagnóstico, a verdade é que são tecidas várias considerações sobre os doentes que estão ainda numa categoria diagnóstica limítrofe: doentes que têm sintomas respiratórios, têm fatores de risco, juraríamos que têm DPOC, no entanto não cumprem o critério espirométrico de obstrução das vias aéreas, que é mandatório para o diagnóstico. Esses doentes enquadram-se em dois tipos: ou têm uma espirometria completamente normal, e o documento GOLD atribui-lhes a designação de pré-DPOC, ou então têm uma espirometria que tem alterações compatíveis com obstrução das vias aéreas mas não cumpre o critério de diagnóstico específico da DPOC, portanto, não têm uma relação FEV1/FVC após a broncodilatação inferior a 70%, e o documento GOLD diz que são doentes que têm uma alteração que se chama PRISm (preserved ratio impaired spirometry). Isto é importante porque cerca de 20 a 30% destes indivíduos evoluem para DPOC. É importante, se queremos fazer o diagnóstico precoce, estarmos alerta e continuar a acompanhar estes doentes porque eles podem mais tarde vir a ter o diagnóstico; por outro lado, porque estes indivíduos que têm função respiratória alterada mas que não cumpre o critério diagnóstico de DPOC têm sintomas e têm um fator de risco claramente identificável, têm um aumento da mortalidade por todas as causas, aumento da mortalidade cardiovascular e têm aumento do risco de internamento. Portanto, não são pessoas que tenham uma trajetória comparável à da população geral. São indivíduos que têm de ser mantidos debaixo de vigilância apertada.

Por outro lado, no tema do subdiagnóstico, diria que é preciso melhorar a nossa intervenção pois esta patologia continua a ser largamente subdiagnosticada. O documento GOLD, na sua última atualização, fala na necessidade de implementar rastreios ativos. Não é um rastreio populacional geral, é um rastreio de populações selecionadas, populações de alto risco para a doença: o indivíduo fumador é o que tem o fator de risco clássico para a DPOC, mas também aqueles indivíduos que são expostos a poeiras e gases tóxicos no local de trabalho, por exemplo os mecânicos, os profissionais da construção civil, indivíduos que trabalham nas pedreiras, indivíduos que trabalham na indústria mineira, pessoas de meios rurais que estão expostas à combustão de biomassa, que acendem as lareiras em casa. Portanto, exposições a partículas, poeiras ou gases nocivos ao aparelho respiratório são fatores de risco para DPOC. O documento GOLD fala muito, também, na criação de sinergias para conseguir melhorar o diagnóstico. No fundo é pegar, por exemplo, em indivíduos fumadores que estão incluídos num programa de rastreio do cancro do pulmão e, no momento em que fazem a TAC torácica de baixa dose anual, fazerem também a espirometria, porque há ali um fator de risco comum, que é o tabaco. Este é o exemplo clássico da criação de uma sinergia para melhorar o subdiagnóstico.

Em termos de abordagem terapêutica não houve alterações major. Continuamos a ter como espinha dorsal do tratamento a dupla broncodilatação por via inalada, com a associação de um β2-agonista de longa ação a um anticolinérgico de longa ação. Talvez haja uma nuance da edição de 2023 para a de 2024 naquilo que respeita à terapêutica tripla, ou seja, o tratamento com os dois broncodilatadores aos quais se associa um corticosteróide inalado, para o doente que tem exacerbações da doença, salientando-se que, quando há indicação para a transição para terapêutica tripla, essa transição deve ser o mais precoce possível porque isso tem um impacto futuro no risco de exacerbações e no tempo até à primeira exacerbação. De facto, quando o doente tem indicação para a terapêutica tripla, não se deve perder tempo.

Termino dizendo que é muito importante salientar o alargamento da secção dedicada aos dispositivos inalatórios, porque as doenças respiratórias têm esta especificidade que as outras patologias não têm: estas doenças tratam-se com inaladores, não com comprimidos, e é fundamental escolher o inalador mais adequado a cada doente. Em pneumologia, nós podemos ter princípios ativos que sejam extraordinariamente eficazes, mas eles são administrados num dispositivo inalatório, ou seja, a terapêutica é dada por inalação, e se o doente não for capaz de fazer aquele inalador corretamente, então ele não conseguirá fazer o tratamento de forma adequada. É fundamental que os médicos que acompanham estes doentes e que prescrevem os medicamentos inalados ao doente com DPOC tenham a noção de que é fundamental perceber qual é o inalador ideal para aquele doente, de forma que a terapêutica seja efetiva. Esta preocupação vem expressa de forma muito evidente na última atualização do documento GOLD, com um capítulo expandido no que respeita à escolha do dispositivo inalatório.

HN – Por último, focando somente em Portugal, enquanto pneumologista, quais diria que são os principais desafios de momento?

EF – Um dos grandes desafios em Portugal é continuarmos a percorrer o caminho que já temos vindo a percorrer nos últimos anos, que é o de melhorar o subdiagnóstico. O subdiagnóstico é uma realidade comum a outros países. E como é que nós podemos intervir para diagnosticar mais precocemente? Temos, por um lado, que trabalhar do lado dos cuidados de saúde primários, da prestação de cuidados de saúde de qualidade à população e do próprio acesso aos cuidados de saúde. Mas também temos de melhorar a literacia da população portuguesa em relação às doenças respiratórias, nomeadamente em relação à DPOC. As pessoas sabem o que é a asma, o que é um enfarte, o que é a insuficiência cardíaca, sabem o que é hipertensão arterial e o AVC. Mas em relação à DPOC as pessoas não estão tão informadas. Não sabem quais são os sintomas, não sabem quando é que devem procurar um médico. Durante muitos anos, houve um enfoque claríssimo na área cardiovascular, e a doença respiratória crónica, em particular a DPOC, foi um parente pobre. Hoje em dia ainda estamos a lidar com essa desinformação da população geral. Melhorar a educação da população em relação à DPOC é fundamental para que as pessoas procurem os cuidados de saúde primários, questionem o seu médico de família em relação à DPOC, estejam alerta para os sintomas, e não esteja só do lado do médico este processo. É evidente que o médico tem um papel crucial, mas o doente também tem de estar informado.

Em relação ao Serviço Nacional de Saúde, o acesso facilitado aos cuidados de saúde primários é muito importante – mas isso é um desafio para toda a gestão da medicina e não propriamente da DPOC. É essencial que as pessoas tenham acesso ao seu médico de família, a consultas regulares e atempadas, porque só assim se consegue fazer o diagnóstico das patologias. A DPOC implica a realização de uma espirometria, portanto é fundamental melhorar o acesso à espirometria. Se nos grandes centros urbanos temos acesso facilitado à espirometria por parte dos cuidados de saúde primários, nos meios mais pequenos pode não ser tão fácil, e tradicionalmente é mais difícil no Alentejo e no Algarve. Isso tem estado a ser melhorado graças ao Programa Nacional para as Doenças Respiratórias, mas continuamos a ter trabalho pela frente para melhorar o acesso à espirometria.

É preciso que nos cuidados de saúde primários haja também reforço da formação em terapêutica das doenças respiratórias crónicas, nomeadamente formação em dispositivos inalatórios, porque o médico de família é um gestor das doenças crónicas todas e, portanto, é absolutamente natural que não tenha a proficiência na inaloterapia que tem um pneumologista. Só que a DPOC, pela força da sua prevalência, é uma doença dos cuidados de saúde primários. A porta de entrada no Serviço Nacional de Saúde para o doente com DPOC tem de ser o centro de saúde; a linha da frente da DPOC, do diagnóstico, do tratamento, pelo menos numa fase inicial, pertence ao médico de família. Portanto, nós temos de insistir na formação dos médicos de família.

Outro desafio é garantir uma boa articulação entre os cuidados de saúde primários e os cuidados hospitalares. O doente que não está controlado, cuja evolução não é linear com a terapêutica preconizada, o doente mais grave, o doente exacerbador tem de ser referenciado aos cuidados de saúde hospitalares. Neste momento, a referenciação está muito mais facilitada do que há 10 anos, mas ainda pode ser melhorada. Por outro lado, às vezes há doentes que, não necessitando de ser referenciados à consulta hospitalar de pneumologia, oferecem algumas dúvidas ao médico de família, e seria muito interessante haver a possibilidade de estabelecer um canal de comunicação entre o centro de saúde e o hospital, por exemplo com um ou dois pneumologistas no hospital de referência daquele centro de saúde, para que o médico de família pudesse discutir alguma dúvida pontual que tivesse em relação a um doente.

Penso que esses seriam os principais desafios: melhorar a educação da população para esta doença e garantir sempre um acesso facilitado dos doentes aos cuidados de saúde primários; garantir o acesso transversal à espirometria, sem assimetrias regionais; contribuir para reforçar a formação dos médicos de família, sobretudo em dispositivos inalatórios/técnica inalatória, porque em relação à DPOC eles também têm feito o seu caminho e têm neste momento uma boa formação; e, por último, melhorar a articulação dos cuidados de saúde primários com os cuidados hospitalares.

Entrevista de Rita Antunes

Aceda a mais conteúdos da nossa revista aqui.