Portugal apresenta a taxa de prevalência de doença renal crónica (DRC) mais elevada da Europa, e é também o país europeu com a maior taxa de doentes renais crónicos a fazer hemodiálise.

A DRC consiste na perda progressiva da função renal causada por problemas nos rins, resultantes de patologias como hipertensão, diabetes ou condições inflamatórias reguladas imunologicamente. Caracteriza-se por 5 estádios, sendo o mais grave o estádio 5, em que o doente tem apenas 10 a 15% da função renal e pode precisar de fazer diálise ou um transplante renal.

Quando associada à anemia, a DRC torna-se ainda mais preocupante e com fortes implicações na qualidade de vida dos doentes. A anemia é uma complicação frequente da doença e ocorre quando existe deficiência de células vermelhas do sangue, acelerando a progressão da DRC e aumentando o risco de morte.

Calcula-se que uma em cada cinco pessoas com DRC desenvolve esta condição, que se pode manifestar de diversas formas, nomeadamente aparência pálida, fadiga, apetite reduzido, dificuldade em dormir e raciocinar com clareza, tonturas, dores e cabeça, falta de ar, depressão ou melancolia. Tratam-se de sinais pouco específicos e que podem passar despercebidos, ou mesmo ser ignorados, por poderem ter outras causas possíveis.

Globalmente, prevê-se que a DRC se torne na quinta causa mais comum de morte prematura até 2040, o que realça a necessidade de, por um lado, aumentar o conhecimento da população sobre a doença, para a qual existem hoje mais tratamentos, e por outro, sensibilizar para a importância de um diagnóstico precoce e tratamento adequado, devendo o doente procurar ajuda junto de um especialista.

Falámos com o médico nefrologista Edgar Almeida, Presidente da Sociedade Portuguesa de Nefrologia, sobre esta doença.

Em que consiste a doença renal crónica?

A doença renal crónica é uma fase comum a muitas doenças dos rins em que a lesão é irreversível. Uma pequena percentagem de pessoas que atingem esta fase da doença acaba por evoluir, com agravamento progressivo da perda das funções dos rins que, a determinando momento, se torna incompatível com a vida. Nessa altura são consideradas as várias opções de tratamento substitutivo renal (hemodiálise, diálise peritoneal ou transplantação renal) ou, quando não estão reunidas condições ou opção do doente, um tratamento conservador/paliativo.

Qual a prevalência e incidência desta doença em Portugal?

A prevalência da DRC na população em geral é elevada – o estudo PREVADIAB (publicado em 2011) mostrou que a prevalência da doença, nas suas fases mais avançadas (estádio 3, 4 e 5), é de 6,1%. Mais recentemente, foi publicado um estudo sobre a população que frequenta os Centros de Saúde em Portugal, em que se constatou que a prevalência nesta população é de 20,8% e que nas pessoas mais idosas (>80 anos) pode atingir 74%. É claro que este último estudo (Estudo RENA) tem um viés de referência (reconhecido pelos seus autores), mas não deixa de ser preocupante o que pode significar – existe um risco muito elevado de progressão para uma fase terminal da doença.  O que sabemos é que Portugal tem uma das taxas de incidência de doença renal terminal (número de novos casos por ano de pessoas que iniciam hemodiálise, diálise peritoneal ou transplantação renal) mais elevadas da Europa – em 2020 foram 2316 pessoas ou seja 229 casos por milhão de habitantes, apenas ultrapassada pela Grécia e pelo Chipre. Por outro lado, a taxa de prevalência de pessoas em tratamento substitutivo renal (número de casos em tratamento no dia 31 de dezembro de 2020) foi de 2011 por milhão de habitantes, a mais elevada da Europa (e uma das mais elevadas do mundo).

Qual o impacto da DRC na qualidade de vida dos doentes e dos seus cuidadores?

Um dos grandes problemas da DRC é que é uma doença que pode ser assintomática nas fases iniciais que, em teoria, seria mais propensa à intervenção médica com vista ao retardamento da evolução. As principais manifestações, nas fases iniciais, estão relacionadas com as comorbilidades (diabetes, hipertensão arterial, insuficiência cardíaca) que, nas fases mais avançadas, se juntam às manifestações decorrentes da anemia, da retenção de líquidos (edema), acidose metabólica, doença mineral óssea, neuropatia, etc.

Quais as principais causas da DRC?

As causas mais importantes de doença renal crónica são a Diabetes, a Hipertensão Arterial associada a doença aterosclerótica renal – chamada de nefrosclerose –, as glomerulonefrites e doenças hereditárias dos rins, como é o caso da poliquistose renal (doença poliquística renal autossómica dominante), mas a lista de situações é enorme e varia com a idade.

Quais as consequências desta patologia?

As principais consequências da DRC estão associadas à elevada probabilidade de evolução para uma fase em que o tratamento substitutivo renal é necessário. Necessariamente, o início de tratamento substitutivo renal está associado a profundas alterações da qualidade de vida que deverão ser acomodadas pelas pessoas. Na hemodiálise, sendo um tratamento intermitente, a pessoa fica obrigada a estar ‘ligada’ a uma máquina de acordo com um programa prescrito pelo médico – o mais comum é o programa de quatro horas, três vezes por semana.

Existem sinais específicos que mereçam atenção da população?

A doença renal é, habitualmente, pouco sintomática. No entanto, se surgir edema dos membros inferiores (“pés ou tornozelos inchados”), edema palpebral matinal, urina espumosa, hipertensão de difícil controlo, urina com sangue, deve procurar o seu médico para saber se estes sinais/sintomas são atribuíveis a doenças dos rins.

A doença tem cura?

A doença renal crónica não tem cura, por definição. No entanto, usando medidas de proteção da função renal podemos atrasar a evolução para fases mais complicadas da doença em que os tratamentos interferem significativamente com a qualidade de vida das pessoas. Esta é a principal vantagem da identificação precoce da DRC.

Qual a relação entre a DRC e a anemia? De que forma anemia pode agravar a doença e aumentar risco de morte?

Os rins são os órgãos onde se produz uma hormona decisiva na produção dos glóbulos vermelhos – a eritropoietina (EPO). Por esse motivo, à medida que a doença avança, a capacidade de produção de EPO diminui e pode aparecer anemia. Todavia, a anemia nas pessoas com doença renal é uma situação complexa e multifatorial. Com frequência, coexiste carência de ferro, que é um elemento fundamental para a produção dos glóbulos vermelhos, mas podem existir outras carências vitamínicas (como é o caso do ácido fólico e da vitamina B12) ou outras situações que impedem a medula óssea de produzir.

Quais as pessoas mais vulneráveis ao aparecimento de anemia na DRC? E como se trata a anemia na DRC?

Como disse, o mecanismo da anemia na DRC é complexo. No entanto, sabemos que os idosos acumulam vários mecanismos que facilitam o aparecimento da anemia. Também as mulheres, na fase reprodutiva da vida, têm um risco maior de terem carência de ferro, bem como as pessoas que fazem dietas restritivas que não acompanham com suplementação adequada. O tratamento passa pela correção das deficiências e, numa fase posterior, pela utilização de eritropoietina recombinante humana ou de novos fármacos que interferem noutros mecanismos.

De que forma a DRC é um problema de saúde pública em Portugal?

O grande problema em Portugal, e no mundo, é o relativo desconhecimento desta situação pela população mas, ainda mais preocupante, pelos médicos não nefrologistas. A tendência habitual é desvalorizar os sinais incipientes que surgem nas análises, por exemplo, a desvalorização da proteinúria na urina tipo II ou de pequenas elevações da creatininémia ou até das situações de lesão renal aguda em que se constata que a creatinina sérica voltou ao normal. Sabemos hoje, que a lesão renal aguda predispõe para a DRC a longo prazo o que, no mundo atual, em que a esperança de vida média aumentou, significa que estas pessoas estão expostas a uma situação limitativa na fase mais avançada da sua vida.

Considera que os portugueses estão sensibilizados para a DRC?

Ainda não. Esta é a missão dos nefrologistas e, em particular, da Sociedade Portuguesa de Nefrologia – promover o conhecimento dos sinais precoces de doença renal, da estratégia de prevenção da doença e de evitar a progressão e dos critérios de referenciação para uma Consulta de Nefrologia. O tratamento das pessoas com DRC terminal tem um custo pessoal, social e económico muito elevado.

Que conselhos deixa à população em geral no sentido de prevenirem ou conseguirem um diagnóstico precoce?

O primeiro conselho é o da promoção de comportamentos protetores da saúde global e renal: uma dieta equilibrada e saudável, evitando excessos, nomeadamente do sal, da gordura e dos hidratos de carbono de absorção rápida, e introduzindo uma maior proporção de vegetais e legumes. As pessoas devem habituar-se a beber água, devem fazer exercício físico e não fumar. Devem controlar o peso com regularidade e fazer uma autoavaliação sobre o que está a motivar o aumento do peso, de forma honesta, sem desculpas não fundamentadas. Finalmente, devem visitar regularmente o seu médico, que poderá ajudar no cumprimento desta estratégia de proteção cardiovascular e renal. O seu médico saberá pedir os exames necessários para avaliar o envolvimento renal assintomático.