HealthNews (HN) – É nutricionista há mais de duas décadas e fez carreira na área da Nutrição Clínica, no Hospital Pedro Hispano (ULS de Matosinhos). Já são muitos anos, muitas experiências. Olhando para trás, quais diria que foram os principais ensinamentos e de que forma influenciam a sua ação enquanto bastonária?
Liliana Sousa (LS) – As mais de duas décadas de experiência, no meu caso percorrendo um caminho numa área mais específica, ensinaram a abrangência da profissão, que vai muito além da ligação direta e exclusiva à nutrição. Atrevi-me algumas vezes a dizer que, na área da saúde, talvez sejamos dos profissionais mais completos: o nutricionista tem lugar desde a gravidez ao nascimento e até à última etapa da vida, acompanhando os diferentes estádios da saúde e da doença. A nossa atividade impacta diretamente na promoção da saúde, contribuindo para a longevidade e para a qualidade de vida com saúde, mas também no sentido da prevenção da doença. A alimentação tem um papel fundamental na prevenção de doenças não transmissíveis, incapacitantes e que geram mortes precoces e evitáveis, bem como no que se refere à doença aguda, de que a covid foi um exemplo maior. A nutrição tem um papel no tratamento, na reabilitação e, portanto, tanto mais sucesso teremos na recuperação de um doente agudo, quanto mais bem conseguida for a estratégia nutricional que o acompanhe durante esse percurso.
Quando me questiona relativamente àquilo que essa bagagem possa ter trazido como capacitação para o cargo que neste momento estou a exercer, considero que, fundamentalmente e sem falsa modéstia, conhecer bem a profissão permite ter o conhecimento concreto e a experiência relativamente àquilo que são as reais necessidades da população. Seja numa vertente ou noutra, a verdade é que, quando se tem experiência prática, de terreno, mais facilmente se consegue identificar potenciais perigos e encontrar facilitadores e potenciadores no que diz respeito às oportunidades que a própria profissão nos oferece. É essa a minha expectativa, é esse contributo que posso trazer à profissão, no cargo que exerço, neste momento.
HN – O que é que a levou a candidatar-se a bastonária da Ordem dos Nutricionistas?
LS – Foi um processo, não foi uma escolha feita de um dia para o outro. Foi sentir, e isto é público, um afastamento da direção da Ordem dos Nutricionistas face às necessidades sentidas no terreno e na ação dos profissionais, principalmente nos últimos dois anos. Não posso dizer que era um objetivo para mim, mas a dada altura percebi que tinha também esta obrigação formal, não só de manifestar o meu descontentamento, mas de poder participar ativamente, de fazer parte de uma potencial solução. Em eleições anteriores já estive envolvida numa das candidaturas e reconheço que, neste último mandato, tive a convicção de que o caminho que estava a ser seguido não correspondia às necessidades da população, no que se refere aos cuidados que se esperavam por parte dos nutricionistas. Se assim era, e tendo sentido o apoio por parte dos colegas que se identificavam também com esta linha de pensamento, entendi que era o momento de avançar. E com a mesma coragem com que sempre manifestei a minha opinião, assumi este desafio.
HN – Enquanto bastonária, quais são as suas prioridades e o que é que já foi possível concretizar, desde que tomou posse, em novembro de 2023?
LS – As minhas prioridades tiveram que se ajustar às prioridades exigidas à ON. Vinte dias depois de assumir o mandato, deparei-me com um Governo demissionário e, um mês depois da minha tomada de posse, foi promulgado o novo estatuto da Ordem dos Nutricionistas por parte do senhor Presidente da República. Estas são apenas duas das (novas) premissas sobre as quais tivemos de trabalhar. Terminámos há relativamente pouco tempo a revisão de todos os regulamentos da Ordem dos Nutricionistas, que se encontram neste momento em consulta pública, mas temos ainda um caminho pela frente que vai passar pela eleição do novo órgão previsto em estatuto – o Conselho de Supervisão – e a aprovação destes mesmos regulamentos para que o novo estatuto entre finalmente em vigor. Ao mesmo tempo, começar a concretizar o nosso plano de atividades. Ou seja, pôr em prática o compromisso que assumimos com os nossos colegas para este mandato. Tivemos condicionantes associadas à transição do executivo, nomeadamente algumas potenciais tomadas de decisão que ficaram pendentes com a demissão do anterior Governo.
Apesar das circunstâncias, e de aparentemente poder parecer que são poucas as decisões e os resultados, de uma forma geral, avançamos com o nosso plano de ação, e iniciámos um processo de aproximação aos estabelecimentos de ensino superior, um dos compromissos por nós assumido durante a candidatura que acabou por ser facilitado por esta revisão estatutária.
Gostaria de partilhar que algumas das medidas que constam do novo estatuto nos trouxeram dissabores. Uma delas foi a obrigatoriedade do estágio profissional como critério de acesso à profissão, que pelo novo estatuto passa obrigatoriamente a ter que ser remunerado num valor fixado por lei, situação que origina um sério obstáculo na possibilidade de acesso à profissão por parte dos recém-licenciados e que classifico como prioritária porque, no fundo, a ON está, neste momento, a ser o principal obstáculo de acesso à profissão aos jovens profissionais. Isto quase que parece um contrassenso porque deveríamos ser nós a criar condições para um acesso digno, e estamos neste momento reféns de um estatuto que, ao obrigar a uma remuneração mínima, tem vindo a ser o motor de muitas portas fechadas por parte das entidades recetoras de estágio. Neste contexto, tivemos que nos aproximar rapidamente das faculdades e, a esse propósito, vamos dar hoje início a uma série de sessões de esclarecimento sobre esta questão, porque queremos mostrar aos colegas não só que a Ordem está solidária com aquele que é um problema por nós reconhecido, antes de tudo, mas também queremos mostrar aquilo que já fizemos e o que pretendemos fazer.
No primeiro momento em que identificámos este problema, fizemos chegar à senhora ministra da Saúde um ofício pedindo uma revisão imediata e excecional do estatuto no que se refere a este ponto do estágio, pedindo que, perante todos os estes constrangimentos, o estágio possa deixar de ser um critério obrigatório de acesso à profissão, pese embora neste momento tenhamos de o cumprir. O regulamento de estágios foi revisto, está em consulta pública e a nossa perspetiva é, se a curto prazo não conseguirmos que ele deixe de ser obrigatório, já para o primeiro semestre de 2025, ter condições para iniciar a alternativa que o estatuto nos dá, que é a realização de um período formativo de seis meses como forma de acesso à profissão. Portanto, acho que posso afirmar que estamos a fazer tudo o que nos é possível para conseguirmos ultrapassar esta “barreira”.
Por outro lado, a carreira, um problema com muitos anos na nossa profissão. O Serviço Nacional de Saúde é o único setor da Administração Pública no qual os nutricionistas têm carreira. Portanto, os outros estão ainda mais pobres, seja nos municípios, seja no Ministério da Educação, onde não existe uma carreira específica para os nutricionistas.
Ainda assim, no SNS deparamo-nos com um grave problema de distribuição dos nutricionistas em três carreiras diferentes, com diferentes remunerações e diferentes direitos para mesmos deveres e funções. Nesse sentido, também já iniciámos ativamente esse processo, solicitando à senhora ministra da Saúde a abertura de um procedimento especial de equiparação à especialidade de técnico superior de saúde, de forma que todos os nutricionistas que trabalham no Serviço Nacional de Saúde possam, ao final de quase dez anos, ver esta situação resolvida e, assim, serem todos colocados na mesma carreira profissional. Aguardamos neste momento a resposta e a recetividade a este nosso pedido.
Depois, temos o grave problema associado a uma larga fatia da população que permanece carente de cuidados nutricionais, por falta de recursos disponíveis. Nós temos uma base de trabalho que demonstra as graves consequências desta carência. Por exemplo, o último estudo divulgado pela DGS do Global Burden Disease, que nos mostra que os hábitos alimentares inadequados já superam o tabaco como fator de mortalidade da nossa população, e estes dados reportam a 2021. Além disso, sabemos que quase 70% da nossa população apresenta excesso de peso e obesidade, sendo que a obesidade infantil, depois dos anos de pandemia, voltou a inverter a curva que vinha a descer. Neste momento, verificamos que mais de 30% das nossas crianças sofrem de excesso de peso e obesidade. São exemplos muito evidentes que demonstram as consequências da carência que a nossa população ainda enfrenta, no que se refere à disponibilidade de nutricionistas para o tratamento da doença, para a educação alimentar e para a promoção de hábitos alimentares saudáveis, entre outras funções.
E quando falamos em carência, temos que falar de uma forma transversal à população e àquilo que são os serviços públicos que a comunidade tem disponíveis. Portanto, não estamos apenas a falar de cuidados de saúde, apesar de termos uma carência de nutricionistas identificada em todos os níveis de cuidados de saúde. Estamos a falar das autarquias, e aqui considero importante destacar, para além da carência, uma disparidade muito grande no que se refere aos diferentes municípios do país. Temos câmaras municipais que não têm um único nutricionista a trabalhar nos seus quadros e, depois, temos outras que acabam já por conseguir resultados e evidências daquilo que é o trabalho do nutricionista de uma autarquia, através da constituição de equipas de trabalho.
Estamos também a falar do sistema escolar, e o problema das escolas públicas já é falado há muitos anos. Neste momento, as Direções Regionais de Educação começam a ter nutricionistas, temos colegas colocados muito recentemente, mas, mais uma vez, verificamos que, se nada for feito, a curto prazo, a verdade é que vamos continuar a ter uma carência dos pivôs no terreno, que ainda não existem, de forma presencial, alocados aos diferentes estabelecimentos de ensino. Aquilo que sentimos é fruto desta necessidade de aposta em profissionais no terreno para que os nutricionistas possam estar próximos não só dos alunos, mas também das famílias e dos próprios professores.
Falamos também no setor social, e este que é um problema devidamente identificado no nosso país. Sabemos que a população está cada vez mais envelhecida, sabemos que a nossa capacidade de resposta, mesmo no que diz respeito a infraestruturas para idosos, não tem acompanhado este processo em termos de necessidades. Mais uma vez, aquilo que verificamos é que a alocação de nutricionistas disponíveis para tratar necessidades específicas deste tipo de população não tem vindo a ser atendida de forma proporcional àquilo que são as reais e atuais necessidades.
Portanto, tudo isto gera um círculo vicioso que culmina, naturalmente, numa incapacidade global de conseguirmos ter uma população mais bem nutrida, mais informada também, quer no que diz respeito à prevenção, quer ao tratamento, e acabamos por ter uma série de fases deste processo em que não temos os profissionais nos locais certos, o que acaba por gerar um ciclo de doença difícil de quebrar.
HN – Na primeira edição da revista da Ordem, em abril, num artigo que assina em conjunto com a vogal da direção Diana Teixeira, surge uma crítica à alteração do Estatuto da ON que me parece interessante abordar: “Desta Lei n.º 78/2023, consta já o ato do nutricionista, numa redação que nos continua a parecer pouco ambiciosa face ao valor real da nossa profissão, uma espécie de paradoxo, pois dele constam atos efetivos dos nutricionistas, no entanto nenhum deles ficou definido como ato próprio, incutindo ao ato da profissão uma fragilidade e suscetibilidade importantes, principalmente quando associado à elevada escassez de nutricionistas no terreno, abrindo oportunidades à prática destes atos por outros, desde que legalmente habilitados”.
LS – A verdade é que é a primeira vez que no estatuto da Ordem dos Nutricionistas surge o ato que define as competências e os atos destes profissionais. No entanto, o Estatuto refere também que, apesar de estarem contemplados como atos do nutricionista, não exclui que outros profissionais, legalmente habilitados, não possam também vir a exercer o mesmo tipo de ato ou competência. E é precisamente aqui que identificamos a maior fragilidade, precisamente pelo facto de sermos ainda poucos no terreno. Se em determinadas profissões uma redação deste género pode não ser assim tão fraturante, porque existem profissionais disponíveis num número confortável para não existir uma ameaça sobre a profissão, a verdade é que, no que diz respeito aos nutricionistas, não somos ainda suficientemente fortes no terreno e do ponto de vista de distribuição para podermos assumir que estas alíneas não possam representar algum tipo de risco ou ameaça, no que se refere à atribuição de funções a outros profissionais que não nutricionistas do ponto de vista de enquadramento legal.
Bastaria que um ou dois atos pudessem ser atos próprios e exclusivos do nutricionista, e eu posso dar como exemplo dois ou três. A evidência científica define que, em determinadas fases da identificação de risco nutricional de um indivíduo, essa deva ser feita por um profissional nutricionista, com qualificações do ponto de vista técnico que o preparam especificamente para esse efeito. E, de facto, este ato não dita, por exemplo, que fases mais complexas, mais avançadas da identificação do risco nutricional de um indivíduo, devam ser feitas exclusivamente pelo nutricionista. Temos também, por exemplo, a questão da elaboração de planos alimentares especializados. Nós partilhamos com outras profissões a possibilidade de elaboração de planos alimentares, nomeadamente com a medicina, mas a verdade é que ao nutricionista muitas vezes é dada a responsabilidade de elaboração de planos alimentares especializados que mais nenhum profissional tem capacidade, do ponto de vista técnico, para o fazer, e também aqui o ato não nos protegeu. Outro exemplo, a questão da prescrição de nutrição entérica e parentérica é partilhada com outros profissionais, nomeadamente com os médicos, mas a verdade é que há determinados casos em que o nutricionista terá uma preparação, inclusive do ponto de vista de determinação de necessidades nutricionais individualizadas, que poderia ter protegido mais a nossa profissão.
Estamos a fazer a nossa parte e a mostrarmos à tutela a necessidade que a população ainda tem, a grande carência que a população ainda apresenta no que se refere aos recursos humanos, aos profissionais nutricionistas disponíveis. E naturalmente que à medida que formos crescendo em número no terreno, mais vamos conseguindo que esta ameaça do ato vá perdendo força e que, a dada altura, já não façam diferença essas alíneas, porque já somos suficientes para não termos este perigo a condicionar o nosso futuro e a nossa atuação.
HN – Formamos quantos nutricionistas por ano? E existem dados sobre a distribuição geográfica e setorial desses profissionais?
LS – Falando em números aproximados, julgo que, por ano, temos cerca de 400 licenciados a sair das várias faculdades. Relativamente à distribuição dos nutricionistas no território nacional, temos uma informação mais afinada no que se refere à alocação na Administração Pública. O último levantamento realizado terá sido em 2022 e exclusivo do Serviço Nacional de Saúde e, portanto, é mais ou menos com estes dados que eu lhe posso dar alguma informação. Nos cuidados de saúde primários, temos à volta de 150 nutricionistas espalhados pelo país. Eu gostava de reforçar que este número é baixo e continuamos a ter uma disparidade muito grande entre litoral e interior. Posso também afirmar que continuamos a ter, infelizmente, vários centros de saúde sem nenhum nutricionista afeto; portanto, se não há capacidade de resposta para aquela comunidade, são colegas de outros locais que vão dar apoio, quando possível, a essas zonas do país. Nos hospitais do SNS trabalham sensivelmente 250 nutricionistas, também aqui com diferenças importantes relativamente a algumas realidades.
Depois, no Ministério da Educação (e eu vou afirmar um valor aproximado porque houve recentemente algumas alterações), temos 11-12 nutricionistas, mas, como já referi, nenhum a trabalhar numa escola no terreno, portanto, estão todos sediados ou nas direções centrais ou nas direções regionais de educação. Nos municípios, até há bem pouco tempo o rácio era de um nutricionista por cada três câmaras municipais, aproximadamente, valor demasiado baixo, com tanto trabalho para fazer. A verdade é que os municípios têm cada vez mais um foco no fomento da saúde da população e na promoção de hábitos de vida saudável, e os nutricionistas têm aqui um grande potencial de ação.
Também no Ministério da Justiça temos uma carência importantíssima de nutricionistas. É um tema que, infelizmente, ainda vem muito pouco a debate. Na minha candidatura, fiz questão de fazer uma visita a um estabelecimento prisional para tentar alertar para esta situação dramática e, já depois de eleita, tive uma primeira reunião no estabelecimento prisional de Custóias, precisamente porque há muito trabalho a fazer. A verdade é que nós temos apenas duas nutricionistas no quadro do sistema prisional português e, depois, temos nutricionistas contratados em regime de prestação de serviços, com apenas algumas horas adstritas a esta população. É uma situação dramática, pois trata-se de uma população com risco importante em termos de saúde, com risco nutricional associado, para além de muitos padecerem de doenças crónicas importantes.
No setor social, não temos números atualizados, portanto é também um trabalho que queremos fazer a curto prazo. Sabemos que, à semelhança de outras realidades, há ainda uma carência muito importante no que se refere aos lares de idosos e às unidades de cuidados continuados, muitas delas da própria Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados. A própria lei deveria ser revista. Esta é também uma questão que nós tencionamos trabalhar com o novo Governo, porque a lei está desatualizada relativamente àquelas que são as necessidades identificadas no que se refere à dotação de horário de nutricionistas para estes estabelecimentos. Aliás, para lares não existe sequer, do ponto de vista legal, um número mínimo fixado de horas de trabalho para os nutricionistas. E, portanto, este é um trabalho de terreno que nós queremos também fazer a curto prazo.
Depois, temos muitos colegas que trabalham no setor privado. É um levantamento que tencionamos também fazer. Aliás, já iniciámos esse trabalho, na sequência de uma solicitação que nos foi feita pela ADSE, outra questão pendente, que estamos agora a começar a tratar.
Temos ainda muitos colegas a trabalhar na área da alimentação coletiva e restauração. Esta é uma área essencialmente privada, apesar de haver algumas empresas com um regime semiprivado. Temos vários colegas que trabalham não só na área da gestão propriamente dita, mas também na operacionalização, fazendo de uma forma mais direta a supervisão da alimentação. E temos colegas que trabalham noutras áreas, mas também estas ainda não identificadas por nós em termos de número e de alocação: no desporto, no setor da indústria alimentar, na área da segurança e da qualidade alimentar, na área da investigação em ligação com às universidades e centros de ciência. É uma necessidade, conhecermos os nossos profissionais, sabermos onde estão, sabermos, até, quais são as potencialidades que nos podem trazer de crescimento da profissão.
HN – Como referiu, em Portugal, o excesso de peso e a obesidade ultrapassam o tabaco como fator de risco de morte e de perda de anos de vida saudável, de acordo com o relatório da Direção Geral da Saúde (DGS) que tem por base o Global Burden of Disease, um estudo internacional que analisa dados de 204 países. O excesso de peso e os hábitos alimentares inadequados são dois dos principais determinantes da perda de anos de vida saudável dos portugueses. No nosso país, seguimos uma dieta recomendada pelos especialistas: a mediterrânica. O que é que está a falhar na alimentação dos portugueses e porquê?
LS – Está a falhar uma estratégia, fundamentalmente. Uma estratégia política, uma estratégia que inclua todos os fatores que estão na base destes resultados e que inclua todos aqueles que podem ter um papel na sua resolução. Eu gostava de reforçar um resultado que ali está e que talvez ainda não tenha havido tempo para processar de forma adequada, que tem a ver com o facto de já não ser só a obesidade que mata e que faz perder anos de vida saudável. Já não é só o excesso de peso a condicionar o resultado de hábitos alimentares inadequados. Já são os hábitos alimentares dos portugueses a condicionar esta morbilidade e mortalidade tão importantes. E, portanto, já não basta dizer que o IMC traz doença; é a alimentação propriamente dita a responsável, ocupando o terceiro lugar como fator de risco, o que é muitíssimo relevante. Isto para além do facto de outros fatores associados à mortalidade terem de uma forma muito direta uma relação com a alimentação. Sabemos também que a hipertensão arterial continua a vencer nesta lista, e a hipertensão arterial tem uma associação direta, não exclusiva, com hábitos alimentares, nomeadamente a ingestão de produtos salgados; e temos também a associação ao açúcar no sangue e, portanto, à glicemia elevada, uma primeira condicionante de desenvolvimento de diabetes. Ou seja, os hábitos alimentares correspondem a bem mais do que os 8% citados neste estudo no que se refere à responsabilidade sobre a mortalidade.
Este é o resultado que temos, este é o panorama que encontramos. Temos de refletir sobre aquilo que está feito. Na verdade, temos assistido a alguns esforços por parte da tutela, por parte, também, de algumas entidades responsáveis pela educação para a saúde, através de campanhas de sensibilização ou mesmo portarias, enquadramentos legais que visam a taxação de bebidas açucaradas ou através da condicionante da publicidade à alimentação menos saudável. No entanto, estas medidas parecem não ser suficientes para conduzir a população à procura de mais saúde através de uma modificação de hábitos alimentares.
A questão da dieta mediterrânica, apontou muito bem esse exemplo porque, de facto, nós temos a felicidade de termos uma costa que nos permite o acesso a pescado fresco, um alimento que corresponde a este padrão alimentar saudável; temos terra que nos dá também muitos dos produtos contemplados na dieta mediterrânica, como o azeite, hortícolas e fruta. E, na verdade, nós verificamos que apenas 25% da nossa população cumpre esta dieta. Temos, necessariamente, de refletir sobre o que está a falhar. Para além da questão da informação à população, existe também um problema de disponibilidade financeira para cumprir com este tipo de dieta ou alguns dos princípios desta dieta. Posso dizer-lhe que muitos dos nossos doentes no hospital nos dizem que fazer uma sopa fica muito caro, que não podem comer as 2-3 peças de fruta que nós recomendamos porque a fruta está muito cara. E é verdade que um pacote de bolachas fica muito mais barato do que um quilo de bananas e, portanto, é importante sensibilizar para a questão da taxação destes alimentos. Eu tenho vindo a falar sobre isso: se é importante taxar mais o que é mau, é também importante taxar menos aquilo que é bom. É verdade que a taxação dos alimentos, não direi mais saudáveis, mas aqueles que são identificados como podendo ser mais equilibrados, já vai seguindo uma linha de atribuição de uma taxa mais baixa de IVA. Mas falta pedagogia. À semelhança do que fazem outros países, poderíamos retirar na totalidade o IVA destes alimentos e sinalizá-los no comércio como sendo alimentos sem IVA, procurando, no fundo, identificar a sua qualidade nutricional com esta ausência de taxação, não só na perspetiva, naturalmente, de os tornar mais acessíveis do ponto de vista económico, mas também de educar a população. Tudo isto se faz com profissionais no terreno também, mas temos, neste momento, uma grande fatia da nossa população sem acesso a um nutricionista.
Nós temos uma noção muito real de que muitas pessoas querem aprender, muitas pessoas querem saber mais, muitas pessoas querem comer melhor e dar uma alimentação mais saudável aos seus filhos, mas não têm um recurso disponível.
HN – Depois de uma reunião em abril, a Ordem disse que a ministra da Saúde está disponível para colaborar com os nutricionistas. O que é que foi discutido nessa reunião e o que espera do atual Governo?
LS – Eu tive apenas uma reunião. Aliás, penso que todas as ordens estão mais ou menos no mesmo patamar. Reunião esta para a qual fomos convocados, portanto, não foi uma reunião a nosso pedido, foi de facto uma iniciativa por parte da senhora ministra. Aquilo que nós transmitimos à senhora ministra foram as necessidades identificadas pela Ordem no que se refere aos cuidados à população e a carência de profissionais no Serviço Nacional de Saúde. Lembrámos também alguns documentos que estavam pendentes do anterior executivo e reforçámos a necessidade de resolução de algumas situações que estavam já a ser estudadas pelo anterior Ministério. A questão do estatuto foi também abordada, bem como a prescrição de nutrição entérica e parentérica, que é um problema que eu herdei neste mandato, portanto ainda não está resolvido, e que tem a ver com a desigualdade entre os profissionais que trabalham nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde. Para além disso, e este tema foi também discutido muito recentemente mediante várias propostas que foram apresentadas para discussão na Assembleia da República, no que se refere à comparticipação destes produtos para utilização em ambulatório, visando um outro problema da nossa população que é a desnutrição. Desnutrição esta que, por vezes, é apenas identificada nos hospitais em situações agudas de doença. Neste momento, temos um despacho que recomenda que a identificação do risco nutricional seja feita em todos os níveis de cuidados e, portanto, também em ambulatório e no setor social, e que não está a ser operacionalizado por falta de recursos. Mais uma vez, a questão da falta de nutricionistas limita a operacionalização dos despachos e as recomendações previstas. A questão da obesidade também esteve em cima da mesa, sendo este um problema identificado e que foi alvo de preocupação por parte do anterior executivo, tendo também existido um despacho que visa uma recomendação em termos de tratamento multidisciplinar e, até mesmo no que diz respeito à prevenção da obesidade, também ele neste momento ainda não operacionalizado pela falta de meios, pela falta de capacidade em termos de gestão de recursos.
Resumindo, aquilo que fizemos chegar à senhora ministra foi uma série de propostas da nossa parte, tendo-nos sido pedido 60 dias para que o Ministério pudesse organizar todas as propostas que recebeu. Depois disso, tive já oportunidade de falar informalmente com a senhora ministra da Saúde, que me garantiu que a nutrição estava, de facto, nas prioridades do Ministério a curto prazo. Naturalmente que existirá sempre uma metodologia de organização e de gestão do trabalho a fazer e que devemos respeitar, não nos distanciando daquilo que são as necessidades identificadas e daquilo que são as nossas propostas, mas mostrando, naturalmente, a nossa disponibilidade para, em conjunto, encontrar as melhores soluções.
A minha expetativa relativamente a este novo executivo é a que me cabe enquanto bastonária. Espero estabilidade, espero capacidade e oportunidade por parte do novo Governo para que as melhorias necessárias possam ser implementadas. Até este momento, vejo aspetos positivos em termos de atuação. Foi demonstrada abertura para ouvir as várias partes interessadas. Sinto também que existe preocupação em auscultar o terreno, em entender o terreno, em perceber quais as margens possíveis para poder iniciar ou continuar algum trabalho já feito. A minha expetativa, acima de tudo, é que este Governo tenha a estabilidade necessária, um planeamento que vise respostas rápidas e eficazes à população e que tenha a possibilidade de conseguir concretizar medidas.
A pandemia veio abalar de uma forma muito importante o Serviço Nacional de Saúde, que já estava com fragilidades importantes. Eu, que vivi essa fase na primeira pessoa, sinto que não conseguimos ainda recuperar desse período, apesar de termos sido heroicos, apesar de termos conseguido dar a volta à situação da melhor forma. Mas a verdade é que o Serviço Nacional de Saúde precisa de ajuda neste momento, precisa de capacidade de gestão, de organização e de decisão, porque nem sempre é fácil, também, ter a coragem de decidir. Neste momento são essas as nossas expetativas e, naturalmente, estamos disponíveis para colaborar.
Posso avançar que o Ministério da Juventude e Modernização já conseguiu fazer connosco um trabalho efetivo e com resultados práticos conseguidos em muito pouco tempo. Pela primeira vez, conseguimos, em conjunto com este Ministério, chegar aos mais jovens através da criação do cheque-nutricionista, algo que nunca tinha sido implementado no nosso país e que visa um apoio aos estudantes universitários, disponibilizando consultas de nutrição, através de um modelo aproximado ao do cheque-dentista.
Para além disso, o programa Cuida-te+, um programa de apoio a adolescentes e jovens que já está no terreno há algum tempo, continuava a ter uma carência muito grande de alocação de nutricionistas, e a aposta por parte deste Ministério veio também no sentido de dar resposta, perspetivando aqui a aposta na prevenção da doença e na promoção da saúde, havendo a intenção de reforçar as equipas de nutricionistas no terreno associadas a este programa. E, portanto, isto já são frutos da ação deste novo executivo com a nossa colaboração.
Só temos que acreditar que é possível fazer mais e melhor, mantendo a nossa expectativa de ir somando pequenas vitórias que, no seu conjunto, constituam uma grande vitória para a saúde dos portugueses.
Entrevista de Rita Antunes
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