Licenciou-se em Biologia, fez mestrado na área da Imunologia e doutoramento em Parasitologia molecular pela Universidade College de Londres em 1998. É diretora executiva do Instituto de Medicina Molecular (iMM) desde 2014 e líder da Unidade de Malária desde 2005, ano em que foi ordenada Comendadora da Ordem do Infante D. Henrique. Em 2013, foi distinguida com o Prémio Pessoa. No ano de 2017 recebe o Prémio Pfizer pelo seu trabalho na área da malária e um ano depois o Prémio Sanofi-Pasteur. Esta quinta-feira foi galardoada com mais uma distinção: o Prémio Carreira D. Antónia Adelaide Ferreira.
Trato-a por comendadora, cientista, professora ou investigadora?
Pode ser por Maria.
Não lhe faltam distinções.
Todos os prémios são óptimos. Ficamos super motivados, mas é óbvio que não trabalhamos para os prémios. São, no fundo, um reconhecimento da sociedade e da comunidade científica e não são só para mim. São também para as minhas equipas.
O que significa para si ser distinguida com o Prémio Carreira D. Antónia Adelaide Ferreira?
É uma enorme honra receber este prémio que é também especial pelo facto de representar a imagem da D. Antónia Adelaide Ferreira - uma mulher extraordinária, inovadora e fazedora. O facto de ser um prémio de consagração quase que deixa um "amargo-de-boca" porque acho que ainda tenho muito caminho para percorrer, mas recebo-o muito orgulhosamente em nome de todos os membros que passaram pela minha equipa ao longo dos últimos quase 20 anos.
O mote do iMM é “Procuramos Perguntas”. Já encontrou a resposta para aquilo que procura?
Vou encontrando respostas, mas a cada resposta que encontro, deparo-me com novas perguntas. Os cientistas vão encontrando respostas pelo caminho, muitas vezes revolucionárias. É esse prazer da descoberta que nos suscita novas perguntas.
Que respostas lhe deram esse prazer da descoberta?
Várias. A primeira que mais me orgulho surgiu quando vivi em Nova Iorque. Descobri que quando o parasita da malária era depositado no ser humano atravessava várias células até chegar ao fígado. Já no fígado fazia o mesmo até se fixar numa dessas células. Isso estava à frente dos olhos de toda a gente e nunca ninguém tinha reportado, sendo que aquele era um mecanismo essencial para que o parasita se multiplicasse. Para mim foi um ponto alto e nunca mais me esqueço da felicidade dessa descoberta. Já em 2017, mostrámos que o parasita da malária tem antenas para detetar o estado nutricional do hospedeiro e torna-se mais ou menos virulento dependendo disso. Portanto, se tivermos muitas calorias disponíveis o parasita replica-se muito mais. Como descobrimos qual é a antena, podemos enganar o parasita, fazê-lo pensar que está sempre numa zona de baixas calorias, e com isso replicar-se menos. Mas as descobertas que mais gosto são aquelas que ainda não foram publicadas.
É preciso ter sorte para se chegar a descobertas revolucionárias?
Não acredito na sorte. Por vezes dizem-me que eu estive no momento certo na altura certa. No entanto, eu acredito mais em sermos treinados para ver as oportunidades que nos surgem. A maior parte das vezes nós podemos ter estado no momento na altura certa, só que não reparámos e aquela oportunidade passou-nos ao lado. É preciso aprender a fazer as escolhas certas, mas é claro que me sinto agradecida por tudo o que a vida me tem proporcionado.
A sorte dá muito trabalho.
Exatamente. Quantos momentos perfeitos temos e não os percebemos? E nunca os vamos perceber, porque como não tiveram consequências e por isso não falamos deles. É por isso que eu defendo a educação. É o treino que nos faz estar atentos para perceber esses momentos. Portanto, eu não acredito na sorte, mas sim no trabalho que nos faz aproveitar os momentos que passam à nossa frente.
A malária é uma doença com muitos mistérios?
Sim. Ainda precisamos de saber muitas coisas. Uma das grandes prioridades é desenvolver uma vacina eficiente. Se tivermos uma vacina, iremos conseguir controlar esta doença infecciosa a longo prazo. Tem de ser uma vacina que faça algo melhor do que a natureza, porque o ser humano nunca fica completamente imune ao parasita da malária depois de ter sido infetado por ele.
Nós vamos sempre descobrir tudo porque o conhecimento é cumulativo e o ser humano tem essa capacidade para ir descobrindo sempre mais
Será possível ter uma vacina eficaz nos próximos anos?
A curto-prazo não é possível, mas a longo prazo sim.
Em 10 anos?
Daqui a mais do que 10 anos. Para a ciência e para o ser humano nada é impossível. Nós vamos sempre descobrir tudo porque o conhecimento é cumulativo e o ser humano tem essa capacidade para ir descobrindo sempre mais.
Percebo que a vacina seja uma prioridade mundial. Mas enquanto cientista, o que é que a intriga mais na malária?
A pergunta que tenho sempre comigo e que persigo há muitos anos – às tantas é ela que me persegue a mim - é porque é que o parasita da malária vai para o fígado e lá dá origem a 30 mil parasitas. É incrível a todos os níveis que um único parasita numa única célula se reproduza a esse nível. Acho que neste momento sabemos parcialmente porquê, mas ainda não o conseguimos explicar na totalidade.
Como é que se gere a frustração quando outra pessoa descobre algo que estamos a investigar?
É duro. É muito duro, mas faz parte da vida. É normal que eu tenha uma pergunta e que várias pessoas no mundo tenham a mesma questão. Até é desejável que assim seja, porque é sinal que é uma pergunta importante. Eu pessoalmente como cientista, se souber que alguém está a fazer exatamente a mesma coisa que eu, a não ser que eu esteja muito adiantada, deixo de fazer isso e até lhes telefono a perguntar se há interesse numa possível colaboração. A verdade é que há tantas perguntas que eu não tenho esse prazer na competição.
O mundo não é só COVID-19. Já se nota um acelerar do número de mortes na malária no mundo e estamos a pôr em risco muito trabalho feito
Quando é que se começou a interessar pela malária?
Já foi tarde. Achava que queria ser cientista, mas não sabia o que isso era. Estudei Biologia e depois tive a oportunidade fantástica de fazer um mestrado coordenado pela professora Maria de Sousa, que faleceu este ano. Numa semana dedicada a parasitas, quando vi uma fotografia de um outro parasita – o Leishmania que causa Leishmaniose - a crescer e a viver numa célula do sistema imune percebi que era isso que queria estudar: como é que duas células decidem viver juntas o resto da vida.
Uma alta responsável da Aliança de Líderes Africanos Contra a Malária disse na semana passada que a pandemia é uma "ameaça real" na luta contra o paludismo, estimando que a pandemia duplique as mortes por esta doença. A COVID-19 está a afetar o tratamento e prevenção de outras doenças?
Não tenho a menor dúvida disso. O mundo não é só COVID-19. Já se nota um acelerar do número de mortes na malária no mundo e estamos a pôr em risco muito trabalho feito... A malária tem sido um sucesso enorme no século XXI. Nas últimas décadas, as campanhas de erradicação vieram diminuir o número de mortos para metade, quando em 2000 morria mais de um milhão de crianças por ano com malária. Nos últimos 20 anos salvámos milhões de vidas graças ao trabalho de uma rede de pessoas que desempenham um trabalho incansável. Estou a falar de médicos, investigadores, organizações não-governamentais e voluntários que agora foram absorvidos pela luta contra a COVID-19. É mais do que óbvio que vamos ter muitas consequências disso. A Organização Mundial de Saúde (OMS) também decidiu que este ano vai cancelar planos de vacinação e portanto isso vai ter também um impacto brutal no mundo inteiro no controlo de várias doenças.
Concorda com esse tipo de políticas de redirecionamento de fundos deixando outros programas de prevenção à mercê?
A resposta a esta pergunta pode ser extremamente controversa. (Pausa) Temos de ter a noção do impacto. Neste momento temos um “incêndio” enorme que se chama COVID-19 que tem de ser extinto, mas temos de ter a noção que, ao fazê-lo, deixamos de acudir a outros focos e isso terá um impacto na saúde humana e no planeta. Dou-lhe um exemplo: temos fogos florestais este ano na Amazónia com proporções superiores aos dos incêndios do ano passado e isso não fez manchete em lado nenhum. É preciso pensar muito bem nas reais consequências das nossas ações.
Normalmente uma vacina eficaz demora uma década para estar pronta... Qual é a probabilidade de se ter uma vacina eficaz e eficiente para a COVID-19 no final do ano?
A eficácia de algo depende do nosso esforço. Nunca tivemos uma dedicação tão grande para resolver um problema como agora. Estou convencida de que é muito possível ter uma ou mais vacinas com alguma eficácia contra o SARS-CoV-2.
Um estudo recente refere que a imunidade desenvolvida pelos indivíduos infetados cai 70% ao fim de três meses. Isso significa que a pessoa deixa de estar imune?
Pode não querer dizer isso. Todos estes estudos dizem-nos que os coronavírus criam alguma imunidade, mas ao fim de algum tempo esses anticorpos acabam por desaparecer. Se o vírus continuar a circular e as pessoas forem novamente infetadas, como têm alguma imunidade, a doença já não vai ser tão grave. Mas só o tempo explicará tudo isso. Até lá, temos de nos proteger. Até sabermos como é que essa imunidade funciona, temos de continuar a usar máscara, lavar as mãos e manter o distanciamento físico.
As pessoas gostavam que a ciência tivesse mais certezas e nos dissesse que teríamos uma vacina num determinado dia. Mas a ciência não vende banha da cobra. (...) Tem dúvidas e continua sempre a ter dúvidas, porque precisa delas para evoluir
Mas perder essa imunidade significa que será ainda mais difícil desenvolver uma vacina?
A vacina pode iniciar uma resposta imune que talvez o vírus não consiga. Eu não me preocuparia neste momento com isso, porque os cientistas têm essa questão em mente. A ciência sabe que a imunidade aos coronavírus tem tendência a ser de curta duração. Os cientistas estão a pensar em dar a volta a isso.
As polémicas científicas relacionadas com o uso de máscaras, a hidroxicloroquina e a estratégia de desconfinamento prejudicaram a imagem que se tem sobre ciência?
As pessoas gostavam que a ciência tivesse mais certezas e nos dissesse que teríamos uma vacina num determinado dia do mês tal. Mas a ciência não vende banha da cobra. A ciência sabe mais a cada dia que passa. Tem dúvidas e continua sempre a ter dúvidas, porque precisa delas para evoluir. A ciência tem já muitas respostas para a COVID-19. O que sabemos hoje é completamente diferente do que sabíamos há uns meses. A maneira como lidamos com as pessoas infetadas com o SARS-CoV-2 é hoje muito mais eficiente. Portanto, temos já muitas respostas, mas continuamos a ter perguntas. Mas ter perguntas não é um sinal de dúvida ou fraqueza, é um sinal de que queremos saber mais.
Acha que a COVID-19 tem sido uma oportunidade para aproximar a ciência da sociedade?
Eu espero que sim. Eu vejo dois tipos de pessoas. As que estão fascinadas com o exemplo da ciência portuguesa que colocou cientistas a fazer testes de diagnóstico como se estivéssemos numa unidade fabril com linhas de montagem.... Mas há muitas pessoas que acham que a ciência saiu a perder, porque criou dúvidas e angústias ou porque um cientista diz que é de uma maneira e outro diz que é de outra. Não gostava que se ficasse com essa imagem da ciência, mas quero que a sociedade tenha uma impressão realista, ou seja, nós não vendemos uma ilusão. As nossas dúvidas são as certezas de amanhã e hoje sabemos muito mais do que ontem.
Como é que vê o iMM daqui a 10 anos?
Adorava que o iMM, já sob outra direção que não a minha, tivesse mais cientistas brilhantes. Já temos muitos, mas queremos ter cada vez mais. Queria que o iMM fosse o local onde os cientistas queriam trabalhar, por ser o sítio que tem o ambiente apropriado para fazer as perguntas que ainda não tem resposta.
Consegue identificar algum marco alcançado pelo iMM que tenha sido crucial para colocar o instituto no patamar da investigação atual?
Com toda a franqueza, houve vários. Só durante a pandemia tivemos quatro publicações importantíssimas. Uma deles é de um grupo liderado pelo meu colega Miguel Prudêncio sobre um teste clínico de uma vacina para a malária que dá 95% de proteção. Foi capa do Science Translantion of Medicine. É algo com muito impacto. Um outro grupo esteve em colaboração com uma escola americana e publicou que o parasita da malária tem um relógio, ou seja, mede as horas e isso é super importante para o funcionamento dele... Portanto, há várias descobertas que têm colocado o iMM no mapa internacional.
Considero-me feminista e não consigo compreender como é que durante séculos se falou de mulheres como sendo uma minoria
Já lhe chamaram "ativista científica". Luta por muitas causas?
Não por muitas. Nós temos uma determinada energia e se começarmos a dividi-la por muitas coisas diferentes não fazemos nada bem. Eu tenho três causas maiores. Uma delas é o papel das mulheres na sociedade. Considero-me feminista e não consigo compreender como é que durante séculos se falou de mulheres como sendo uma minoria. As mulheres não são uma minoria, são 50% da população. A minha segunda causa é a educação. Acredito numa sociedade baseada no conhecimento. É extremamente claro que temos de dar as ferramentas certas às pessoas para encontrar aqueles momentos que vão fazer diferença no mundo. Todos podemos contribuir para um mundo melhor. Temos que dar educação a todos, porque nunca sabemos onde é que vão estar essas pessoas. A terceira causa tem a ver com o planeta. Sou bióloga e temos de encontrar soluções inteligentes. As alterações climáticas são o maior problema que temos no mundo atualmente. É uma questão de sobrevivência.
Por ser mulher, acha que dirige a instituição de maneira diferente?
Obviamente é uma liderança diferente. Lidero de forma diferente, porque sou mulher e porque sou outra pessoa. Sou a Maria Mota. Mas não interessa se o líder é um homem ou uma mulher. O que interessa é a diversidade e essa diversidade deve estar representada.
Pergunto isto porque o iMM tem na sua maioria líderes de grupo homens. Em 34 grupos de investigação, apenas 9 são liderados por mulheres.
Sim, dois terços são homens e se for ver a nossa população é muito mais feminina no iMM. Era desejável que fosse 50-50.
Não podemos ir de crise em crise, de nenúfar em nenúfar, a tentar não afundar. Temos de sonhar e criar uma ponte para o lugar onde queremos estar daqui a 20 anos
Sofre ou já sofreu entraves na ciência por ser mulher?
Não posso dizer que tenha sofrido entraves, mas trabalhei em Nova Iorque com uma pessoa que era bem mais velha. Era um cientista maravilhoso e tinha uma mulher também fantástica enquanto investigadora. Estou a falar de Victor Nussenzweig e de Ruth Sonntag Nussenzweig. O Victor disse-me uma vez: “Tu és uma cientista perfeita, o teu defeito é ser mulher”. E nós tínhamos uma ótima relação, mas ele disse-me isto. Obviamente é uma pessoa mais velha, tem agora mais de 90 anos... Mas o mundo ainda é assim. A Orquestra Metropolitana de Nova Iorque, no final dos anos 80, praticamente não tinha mulheres. Estavam preocupados com isso e resolveram fazer audições com a cortina fechada. Na primeira audição também só escolheram homens. Ficaram estupefactos, porque não era possível que os homens fossem melhores apenas por serem homens. De repente descobriram que subconscientemente estavam a selecionar as pessoas pelo som dos sapatos. Passaram então a fazer esse processo com os candidatos descalços... Quando o fizeram, escolheram tantos homens como mulheres.
Como vê o futuro da ciência em Portugal?
Vejo-o com muita preocupação. O impacto da COVID-19 vai ter um efeito enorme. Nós temos de pensar e planear onde queremos estar daqui a 20 anos. Não podemos ir de crise em crise, de nenúfar em nenúfar, a tentar não afundar. Temos de sonhar e criar uma ponte para o lugar onde queremos estar daqui a 20 anos. Temos de delinear uma estratégia. Caso contrário, não iremos sair da cepa torta. Às vezes, Portugal tem momentos altos em que parece que somos todos os melhores do mundo, mas não somos, porque na verdade nada mudou estruturalmente. Isto não nos pode deixar satisfeitos. Neste momento, a ciência em Portugal preocupa-me, porque vai haver menos financiamento e não se fazem omeletes sem ovos. Espero que os nossos governantes estejam à altura de desenhar estratégias para usar este pacote europeu que vai estar disponível para enfrentar a atual crise pandémica. Não vale a pena pensar que o vamos saber usar de forma 100% eficaz, porque a perfeição não existe. Mas tem de haver uma grande estratégia para conseguir usá-lo da melhor forma.
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