HealthNews (HN) – Como avalia o impacto da procura não clínica de Ozempic e Mounjaro na disponibilidade para doentes com diabetes tipo 2?

Daniela Guelha (DG) – Em primeiro gostaria de clarificar um aspeto, em Portugal o Mounjaro (tirzepatida) está aprovado para o tratamento da diabetes tipo 2 e para controlo de peso em adultos com obesidade (IMC ≥30) ou com excesso de peso (IMC ≥27) que tenham doenças associadas à sobrecarga ponderal; encontra-se disponível nas farmácias portuguesas, mas não é comparticipado pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). A utilização não autorizada deste fármaco consiste na sua utilização para promover o emagrecimento em pessoas que não cumpram os critérios mencionados. Por seu lado, o Ozempic (semaglutido) está aprovado apenas para o tratamento da diabetes tipo 2. Sendo comparticipado pelo SNS. A utilização do Ozempic para emagrecimento em pessoas sem diabetes tipo 2 é considerada off-label. Respondendo então agora à pergunta, quando utilizamos estes fármacos sem indicação, especialmente para perda de peso em pessoas sem diabetes tipo 2, podemos condicionar um impacto significativo na sua disponibilidade para os doentes que realmente precisam deles para controlar a sua doença crónica. Este impacto traduz-se em escassez no mercado com roturas frequentes de stock enfrentando as pessoas com diabetes dificuldades na obtenção regular dos medicamentos; ou em atrasos na distribuição por parte dos fabricantes, que não estavam preparados para o aumento exponencial da procura. Por conseguinte esta situação pode repercutir-se clinicamente nas pessoas com diabetes tipo 2. Por outro lado, a maior procura pode ter feito com que os preços aumentassem, direta ou indiretamente, dificultando o acesso mesmo para quem tem receita adequada. E por fim pode condicionar, de certa forma, um espécio de conflito ético entre a sua utilização para fins de perda ponderal e a sua utilização para fins de controlo glicémico.

HN – Que medidas defende para evitar a automedicação e o acesso ilegal a estes medicamentos?

Nos últimos anos, estes medicamentos ganharam uma popularidade surpreendente, impulsionada por campanhas em redes sociais, figuras públicas e clínicas de estética. Perante este cenário, poderá ser importante implementar várias medidas. Penso que em primeiro lugar, as autoridades reguladoras devem reforçar o controlo da venda destes medicamentos, exigindo prescrição médica obrigatória, válida e rastreável. Também é essencial encerrar canais ilegais de venda. A fiscalização precisa de ser eficaz, mas também adaptada à nova realidade digital. Em segundo lugar, a prescrição médica deve ser responsável e fundamentada. Em terceiro lugar, a literacia em saúde precisa de ser reforçada. Estes medicamentos devem ser utilizados com base em critérios clínicos rigorosos, com avaliação dos seus riscos e dos seus benefícios. Finalmente, é essencial garantir que os medicamentos chegam a quem deles mais necessita. Os fabricantes têm a responsabilidade de dar prioridade ao fornecimento destinado a pessoas com diabetes e obesidade diagnosticada, e os sistemas de saúde devem garantir equidade no acesso.

HN – Como a Sociedade Portuguesa de Diabetologia pode colaborar com as autoridades para combater o mercado paralelo destes fármacos?

A Sociedade Portuguesa de Diabetologia (SPD) poderá ter um papel estratégico no combate ao mercado paralelo destes medicamentos. Apresento algumas atitudes que têm sido sugeridas nesse sentido:

  • Aconselhamento técnico e científico, apoiando o Infarmed e o Ministério da Saúde com pareceres sobre os riscos do uso não supervisionado destes medicamentos;
  • Formação e sensibilização de profissionais de saúde, desenvolvendo programas de formação para médicos, enfermeiros e farmacêuticos;
  • Promoção de campanhas públicas informativas alertando o público sobre os perigos do uso de medicamentos obtidos fora das vias legais (por exemplo, redes sociais, websites não certificados);
  • Promoção da investigação através de estudos sobre os impactos clínicos e sociais do mercado paralelo destes fármacos;
  • Entre outros….

A SPD pode ser um elo essencial entre os profissionais de saúde, os doentes, a indústria e o Estado. Ao assumir uma posição ativa e cooperante poderia ajudar a garantir a acessibilidade destes medicamentos a quem realmente deles necessita.

HN – Quais os principais riscos do uso destes medicamentos sem prescrição médica?

O uso destes medicamentos sem prescrição médica, surge inevitavelmente associado a uma ausência de acompanhamento clínico, o que no meu entender pode ser uma combinação perigosa. Existem vários riscos descritos, desde o desenvolvimento de efeitos adversos graves (entre os quais: náuseas, vómitos, diarreia ou obstipação; desidratação severa, sobretudo em idosos ou pessoas vulneráveis; pancreatite aguda (uma complicação rara, mas potencialmente fatal); ou mesmo hipoglicemia, particularmente se utilizados em associação a outros antidiabéticos), que sem seguimento clínico podem passar despercebidos ou ser mal interpretados. Por outro lado, os doentes podem desenvolver deficiências nutricionais subdiagnosticadas. Mais ainda, em pessoas sem diabetes ou obesidade, a alteração brusca no metabolismo pode em alguns casos desestabilizar a pressão arterial e o ritmo cardíaco. Sem orientação médica, o risco de interações com outros medicamentos é maior, podendo comprometer tratamentos existentes, especialmente em pessoas com doenças crónicas. Não podemos ainda esquecer que pode haver desenvolvimento de comportamentos de distúrbio alimentar, uma relação de dependência psicológica com o fármaco e que a perda de peso não acompanhada por um plano nutricional e comportamental sustentável pode levar a um efeito de recuperação rápida do peso após a suspensão abrupta destes fármacos. Por fim, e provavelmente ainda mais preocupante, é a proliferação de compras ilegais através da internet, com medicamentos muitas vezes falsificados ou mal conservados, aumentando exponencialmente os perigos para o consumidor.

Em suma, estes fármacos são eficazes, mas só devem ser usados sob prescrição médica e com acompanhamento multidisciplinar (médico, nutricional e, em alguns casos, psicológico). A sua utilização fora deste contexto pode comprometer a saúde física e mental, e até colocar vidas em risco.

HN – Considera que a comparticipação pelo SNS deveria ser alargada à obesidade?

Honestamente na minha opinião a comparticipação deveria ser alargada à obesidade, mas entendo que este tema possa gerar uma discussão complexa, embora cada vez mais pertinente. Há argumentos válidos tanto a favor como contra, que devem ser cuidadosamente ponderados do ponto de vista clínico, económico e ético. Por um lado, tem sido defendido que sendo a obesidade é uma doença crónica reconhecida pela Organização Mundial da Saúde com impacto direto na saúde pública, aumentando o risco de diabetes tipo 2, hipertensão, AVC, cancro e doenças cardiovasculares o seu tratamento eficaz poderia diminuir a incidência de doenças associadas, reduzindo o número de internamentos, medicação crónica e reformas antecipadas por incapacidade. Estudos internacionais já demonstraram que a comparticipação pode representar um investimento com retorno positivo para os sistemas de saúde. Ensaios clínicos como os SURMOUNT (tirzepatida) e STEP (semaglutida) demonstram perdas de peso significativas e sustentadas em pessoas com obesidade, com melhoria de parâmetros metabólicos e qualidade de vida. Atualmente, apenas pessoas com maior capacidade financeira conseguem aceder a estes fármacos para controlo de peso e a comparticipação garantiria maior justiça social, permitindo que pessoas com obesidade clinicamente relevante, mas sem diabetes, também tenham acesso ao tratamento. Por outro lado, em oposição também se aponta que o custo destes medicamentos é elevado e, se comparticipados para a obesidade, o impacto orçamental poderia ser substancial para o SNS, especialmente num cenário de procura elevada. Associadamente, e na ausência de critérios clínicos bem definidos e bem aplicados, o alargamento pode abrir espaço para uso inadequado ou mesmo abuso terapêutico. Mais ainda, com a procura atual já superior à oferta, alargar a comparticipação sem resolver o problema de abastecimento pode comprometer ainda mais o acesso das pessoas com diabetes tipo 2 ao fármaco.

Penso que será importante definir os critérios clínicos de elegibilidade para o tratamento, identificar os clínicos mais habilitados para a prescrição destes fármacos e monitorizar a implementação destes critérios, caso a decisão de comparticipação avance.

HN – Que desafios encontra no acompanhamento dos doentes em tratamento com agonistas do recetor GLP-1?

O acompanhamento de doentes em tratamento com agonistas do recetor GLP-1 levanta alguns desafios clínicos, logísticos e até comportamentais. Estes fármacos têm benefícios comprovados no controlo glicémico e/ou na perda de peso, mas exigem vigilância apertada e uma abordagem multidisciplinar para serem eficazes e seguros.

É necessário gerir os efeitos adversos gastrointestinais, que pode exigir ajustes na titulação das doses e aconselhamento nutricional adequado. Também é importante aferir a adesão à terapêutica, identificando desde situações de abandono da terapêutica em virtude dos efeitos adversos desenvolvidos ou até omissões que possam ser decorrentes da utilização semanal dos mesmos. Também é importante definir objetivos realistas com o paciente, alinhando as suas expectativas com resultados clínicos sustentáveis e seguros, evitando o desenvolvimento de sarcopenia ou deficiências nutricionais (especialmente em idosos). É, ainda, necessário vigiar periodicamente parâmetros metabólicos (glicemia, HbA1c, perfil lipídico, função renal e hepática). Em muitas situações pode justificar-se um acompanhamento multidisciplinar. Pode ser necessário ajustar outros fármacos em curso (antidiabéticos, anti-hipertensores…), realizar ensinos específicos em mulheres em idade fértil, entre outras recomendações, o que certamente exige experiência clínica. Associadamente o “ruido mediático” associado a esta classe terapêutica pode levantar questões, nomeadamente situações de desinformação nas redes sociais, que podem comprometer a administração dos fármacos de forma adequada e segura, levantar dúvidas clínicas sobre quanto tempo se deve manter o tratamento quando há uma boa resposta ao mesmo, condicionar interrupções bruscas que podem levar a aumento de peso ou glicemia, entre outras questões que muitas vezes nos são levantadas em âmbito de consulta. Por fim, existem limitações inerentes à prática clínica diária dos nossos tempos, o que inclui tempos de consulta reduzidos, longas listas de espera para uma primeira avaliação ou mesmo para avaliações subsequentes dos doentes em tratamento e pouca acessibilidade para promover uma adequada e multidisciplinar educação terapêutica destes pacientes. Sem esquecer ainda que a comparticipação limitada em alguns contextos pode comprometer a continuidade do tratamento.

HN – Que mensagem deixa à população sobre o uso responsável destes medicamentos?

Estes medicamentos são inovadores e eficazes, desenvolvidos para o tratamento da diabetes tipo 2 e, em alguns casos, da obesidade — sempre sob orientação médica. O seu uso pode trazer benefícios importantes para a saúde, mas apenas quando administrado de forma adequada, com um apropriado acompanhamento clínico e se integrado num plano terapêutico completo.

Utilizar estes medicamentos sem prescrição médica, por razões estéticas ou por recomendação de redes sociais, é perigoso e pode trazer sérios riscos à sua saúde.

Aspetos chave a transmitir à população:

  • Estes medicamentos não são “milagrosos” nem substituem hábitos saudáveis como uma alimentação variada e equilibrada e a realização de atividade física regular e individualizada;
  • Estes medicamentos só devem ser utilizados com prescrição médica e após minuciosa avaliação dos seus riscos e benefícios;
  • A automedicação, o uso prolongado sem acompanhamento ou a aquisição fora das farmácias (mercado paralelo) podem resultar em efeitos adversos graves;
  • Se tem excesso de peso ou suspeita de diabetes, fale com o seu médico. Há tratamentos eficazes, mas é essencial encontrar a abordagem certa para o seu caso.

A saúde merece responsabilidade, ciência e individualização dos cuidados — nunca se devem procurar soluções improvisadas ou seguir tendências!

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