Noites de insónia, acordo azedo, do lado errado da vida.

Sento-me zonzo na beira da cama, com a visão amarga de uma manhã no Hospital, doentes a visitar na ansiedade do pós-operatório, pilhas de papeis burocráticos que nunca tenho tempo, (ou pachorra), para resolver.

E no entanto é feriado.

10 de Junho, dia de Camões, de Portugal, das Comunidades.

Felizmente já não o “dia da raça”, termo borolento, salazarento, que o 25 de Abril arrumou no lixo Histórico.

Que raça poderia ser?

Uma amalgama de Iberos, Lusitanos entre eles, Celtas, Celtiberos, Alanos, Suevos, Visigodos, Gregos, Fenícios, Cartagineses, Romanos, Árabes…

Toda a imensa amalgama de uma fascinante História que não lemos, ou já esquecemos, mas que desembarca nessa estranha pretensão de uma “raça” diferente, melhor, superior… mais um povo eleito?

O arrepio que me dá na pele, quando vejo gente agarrada com desespero a uma bandeira, que solta uma ideia de Patriotismo alucinado, Nacionalismo fanático, nós contra os outros, a “excepcionalidade” de um povo…

Como Mussolini achava que a Itália tinha o direito de impor a herança do Império Romano, ou Hitler berrava a excepcionalidade do Povo Alemão, natural escravizador da vizinhança…

Como Franco beijava essa bandeira, que torna agora a aparecer no apoio à “ la Roja”, Espanha única, Espanha eterna, mesmo que pisando os cadáveres de 200 a 300 mil mortos do “Terror Branco”…

Como um Salazar menos histérico, mas igualmente congelado, quase 40 anos num seboso Deus, Pátria, Família.

Ou essa excepcionalidade do povo russo, tão propagada por Putin, na sua herança de Estaline, defendendo o direito de impor aos países vizinhos a continuação da brutal repressão da antiga “cortina de ferro”.

Também na Praça Vermelha o desfile de símbolos, bandeiras, canções patrióticas, a coreografia de quem tem como medalha a vergonhosa e covarde invasão de um país irmão, o fim da esperança de qualquer redenção da “alma russa”.

Por isso quando se fala de nacionalismos, patriotismos, povos eleitos, “razões históricas” para justificar a barbárie, a minha alma treme….

Para mim não é nada difícil ter orgulho de ser o que sou, herdeiro da história do meu país, na forma simples equilibrada a que todo o povo tem o direito de se orgulhar, nem demais nem de menos, nunca acima de ninguém

Mas estas ondas negras não me abandonam.

Lembro-me do espetáculo fantástico de milhares de imigrantes, com saudades da terra Lusa, chorando de emoção vendo a sua seleção derrotar a Espanha, lágrimas sinceras de alegria e de orgulho pátrio.

Mas pensando também que na proporção certa, metade daqueles que enchiam o estádio teriam votado no lodo da moda.

E glorificavam Nuno Mendes naquele momento, para no dia a seguir, nas janelas de ódio nas redes sociais, o mimarem com o “macaco volta para a tua terra”, da praxe.

E assalta-me a imagem daquele líder, que avança em ondas de triunfos, com o cuidado de publicar uma foto alva e luzidia de jogadores brancos e luzidios, apagando aquelas manchas de outras cores, que tão indisfarçável repulsa lhe causam.

Porque hoje o que está de moda é ser um canalha e portar-se como um canalha e assumirmos que ser canalha é o novo sexy…

Pensar que a juventude que tantas bandeiras na história levantou pela construção da dignidade humana, hoje vê tantos acreditarem que ser jovem e revolucionário dos novos tempos, é a luta contra o “sistema”.

Mesmo sabendo que esse sistema se chama sistema democrático e foi aquele que permitiu ao ser humano atingir os maiores níveis de felicidade, conforto, igualdade, justiça social, defesa dos Direitos Humanos, que a humanidade construiu, em algum período da história, até o momento.

E por isso me vem à memória os 10 junho da minha infância.

Festas tristes e cinzentas, sem um pingo de espontaneidade, dignas de um Portugal amordaçado.

Ecos de uma História que nos foi ensinada como uma catadupa de momentos de glória, de heróis inigualáveis, de gente de uma bravura, de uma candura, de uma quantidade infinita de tão nobres intenções, construindo a ilusão que sustentou o ideal de um ethos perfeito.

A tal “raça lusitana”…

Do outro lado a loucura woke, que nos quer obrigar a rever a história com os valores morais e éticos da atualidade, como se diferença nenhuma houvessem em abandalhar a evolução da humanidade séculos e séculos, para uma altura em que os valores eram outros, os conceitos eram outros, sendo para nós absolutamente inatingível ou absurda, a ideia vermos o mundo da mesma forma que as gentes de 5 séculos atrás.

A simplesmente idiota ideia de termos de pedir perdão pelos nossos antepassados, termos vergonha da nossa própria história e condenarmo-nos a pagar compensações e indemnizações, pelos crimes cometidos em nome de Cristo.

Porque também está de moda nos comportarmos perante uma ciência como a História como autênticos imbecis, colocar o estudo da história nos óculos do preconceito ideológico.

Refugio-me então nos verdadeiros historiadores portugueses (que os há e brilhantes…), mas principalmente nos olhos dis de outros países, que estudam e divulgam a nossa história com o olhar crítico de separar os feitos extraordinários de gente de uma coragem indomável, que em condições absolutamente impensáveis conseguiram dar a conhecer ao Mundo outros mundos, permitiram desenvolvimento geográficos e cartográficos, técnicas de navegação incomparáveis.

Gente difícil de quebrar, que em condições infra humanas conseguiu feitos de descoberta e navegações inexcedíveis.

Nunca apagando os períodos negros da escravatura, da exploração de terras e gentes, outros que história nunca foi em nenhum recanto do Mundo, uma sucessão luminosa de feitos heróicos.

Sempre foi uma amálgama de tudo o que de grandioso e obscuro a alma humana pode conter.

Penso no pobre Camões, um génio criativo da escrita muito à frente do seu tempo, autor de uma obra Poética sem igual, sem que a maior parte de nós saiba dizer ao menos em quantos cantos.

Transformamos a aprendizagem nas escolas numa seca tremenda, para jovens a quem um ensino manco e defeituoso conseguiu a imagem de que ler “os Lusíadas” , “Os Maias”, o “Livro do desassossego”, todos exemplos de uma escrita que nos transporta para o divino… Numa seca para ser despachada em resumos, os mínimos que permitam o não chumbar, porque porque a História, a Literatura, a Cultura Geral, se medem medem agora em vídeos de 8 segundos, que devoramos às centenas, aos milhares, diariamente especados no ecrã de um telemóvel, presos numa cifose que prenuncia o caos anunciado que domina os noticiários…

As redes sociais que colocaram no topo da nação mais rica e poderosa, o conjunto de descerebrados fanatizados, ignorantes e narcisistas, apenas candidatos a serem motivo de riso e desdém, por um Mundo habitado por gente apenas normal… Mas depois lembro-me de como a minha mãe recebeu aqueles viajantes de vários recantos do Mundo, companheiros de interrail dos meus 18 anos, que chegando esfomeados a nossa casa, foram presenteados com “coisinhas simples”, como eu tinha pedido: tripas à moda do Porto e rojões a moda do Minho!

A facilidade e alegria com que sabemos receber quem nos visita, a simplicidade de tanta gente do meu país, sempre disponíveis para ajudar, a candura e alegria espontânea das festas populares… Este país de paisagens de cortar a respiração, de uma culinária sem par, também construída de gente simples e dedicada à comunidade…

Gente capaz de ser solidária, gente capaz de se unir nos momentos difíceis e tristes, gente capaz de dignificar o verdadeiro sentido do ser Português, neste precioso cantinho de jardim plantado a beira-mar, onde a paz, o sossego e o encanto de saber viver no dia-a-dia as coisas simples, o sabor único de uma sardinha degustada com bom vinho nas noites dos Santos populares…. Destas orgias de alegria e comunhão, onde temos um orgulho enorme de incluir quem nos procura, esses exemplos simples de um povo que já foi capaz de se fazer ao Mundo, que não perdeu o direito a um dia voltar a fazê-lo…

Essa esperança que se recusa a morrer no meu peito, de continuar a ter orgulho no meu país.

De continuar a esperar que a simplicidade, a generosidade e gratidão que vejo todos os dias nas minhas consultas médicas, em todos os recantos que percorri, possam manter a verdadeira alma do sentir português, possam continuar a dar esperança de num 10 junho qualquer, acordar com a alma lavada e um brilho diferente dos meus olhos….