Depois de bisar nos escaparates com a “Dieta Perfeita”, a nutricionista Mariana Abecasis dedicou uma sua obra a um público difícil, as crianças. Em “Vamos Conhecer os Alimentos”, uma edição da Booksmile, encontramos mais do que um manual do bem comer para a infância. Fundada na sua prática clínica e nos princípios de uma alimentação equilibrada, natural e funcional, Mariana Abecasis, apresenta-nos de forma esquemática e profusamente ilustrada, dezenas de alimentos.
Frutos frescos e secos, legumes, leite e derivados, carnes, peixes, especiarias, mel, água, entre outros, são alvo do interesse da nutricionista. De onde chegam, como crescem, mitos e factos, propriedades nutritivas são algumas das abordagens que Mariana esmiuça na obra.
A nutricionista segue fiel ao seu projeto para a dieta alimentar: diversa, sem radicalismos, com respeito pela sazonalidade, pela origem dos alimentos. Um dizer não aos alimentos processados e ao fast food. Um livro que também é um piscar de olhos para pais e educadores, como sublinha Mariana nesta conversa. Uma entrevista que não esquece questões prementes, como a obesidade infantil e uma realidade vincada neste século XXI, a pressão da industrial alimentar e a responsabilidade desta junto dos consumidores.
Mariana, seria importante antes de nos determos seu mais recente livro, “Vamos Conhecer os Alimentos”, percebermos como encara a todos estes movimentos em torno da nutrição?
Nos últimos anos deu-se um boom, ou seja, há um crescimento muito grande à volta da nutrição. Há um conjunto de blogueres, de cozinheiras, de mães de família, pessoas autodidatas que, não sendo nutricionistas, acrescentam muito valor a esta área. Contudo, ao fim de algum tempo, os conceitos estão baralhados, o que é mais científico e o que é menos científico. A nutrição tem crescido muito e, tal como nas outras áreas, também há muito negócio em torno de tudo isto. No meu caso particular, sou nutricionista, estudei Ciências da Nutrição e já trabalho há sete anos, maioritariamente, em nutrição clínica. Algo que adoro. Neste momento tenho o meu próprio consultório.
Em suma, como define a Mariana Abecasis a sua abordagem nesta área?
Defino o meu trabalho como uma abordagem prática e simples, ou seja não complicar o que não é complicado. Pretendo mostrar a quem me procura e aos meus seguidores que estamos perante matérias que, não obstante terem a sua complexidade, quando explicadas e enquadradas tornam-se assuntos ao alcance de qualquer um. Mais, podemos mudar para melhor a nossa alimentação recorrendo a produtos próximos que encontramos, por exemplo, no supermercado.
Com algumas restrições, presumo?
Sobretudo adaptadas ao objetivo e às condições clínicas de cada pessoa. Por vezes o truque está em não inventarmos muito. Olharmos para os produtos portugueses bons, disponíveis até nas grandes superfícies. Não procurar o produto complicado que, depois, não vamos aplicar no dia-a-dia, um quotidiano que inclui os filhos, o trabalho e a falta de tempo.
A Mariana anteriormente escreveu dois livros em torno da “Dieta perfeita”. Que dieta perfeita é esta?
Não praticar uma alimentação estanque. Um mesmo indivíduo, dependendo da fase de vida em que está, ou do contexto, precisa de se adaptar. Não tenho de ser eu a adaptar o meu dia ao plano alimentar, é este, se for perfeito, que se adapta àquilo que eu faço, aos meus horários, à minha fase de vida. É isto que eu procuro, ajustar o plano alimentar à pessoa.
Ao terceiro livro, “Vamos Conhecer os Alimentos”, dedica particular atenção a um público muito específico, o infantil. Qual foi a principal motivação?
Sem dúvida, a educação alimentar. Uma criança motivada interessa-se pelos assuntos, procura os porquês e, depois, obtendo uma resposta vai coloca-la em prática.
Quais são os principais objetivos subjacentes ao livro?
Não o lancei como golpe de marketing, inspirei-me no que se observa em relação à reciclagem. Na nossa geração e nas gerações anteriores, esse assunto não era falado nem ministrado na escola. Reparei que as crianças defendem a reciclagem e que são eles que educam os pais para a fazerem em casa. Hoje em dia a maior parte dos pais faz reciclagem porque as crianças impuseram. Educando as crianças em relação à alimentação, percebendo o porquê das coisas, essa informação acaba por entrar nos lares. Considero que este facto tem um impacto muito grande no futuro das crianças mas também no comportamento dos pais.
Nesse sentido podemos dizer que o livro também é um piscar de olhos aos pais e educadores.
Chegando às crianças também é uma forma de chegar aos pais. As crianças estão habituadas a cumprir regras portanto a tendência natural é seguir e obedecer aquilo que aprendem.
Ou seja, os pais ao lerem este seu livro aprendem, cozinham e com isto estão a dar o exemplo à mesa. Não se pode dizer ao filho para comer brócolos e o adulto come as batatas fritas, certo?
Sim, sem dúvida. O princípio é “faz o que eu digo e faz o que eu faço”. As crianças aprendem a falar porque observam os pais e as pessoas que estão à sua volta a falar, aprendem a andar pelos mesmos exemplos. Se, em casa, tiverem exemplos contraditórios, na cabeça das crianças isso não faz sentido. Estamos, aqui, a falar de uma alimentação para a família e não somente para determinado membro.
Mariana, a generalidade dos adultos nunca soube comer racionalmente, ou desaprendeu?
Acho que nós temos uma base e uma história alimentares ricas e saudáveis, mas, eventualmente, associada a uma classe social mais baixa. À medida que a sociedade evoluiu, de alguma forma e inconscientemente considerámos que modernizar seria fugir das referências anteriores que tínhamos. Há uma geração que fugiu da alimentação mediterrânica e é importante voltarmos porque temos uma base alimentar portuguesa muito rica. Uma dieta com alimentos processados e fast food não nos torna mais evoluídos.
Mas temos uma máquina industrial e comercial muito forte a vender e a gerar uma narrativa que é difícil combater…
Sim, durante muitos anos a indústria pensou muito em potenciar sabor, com gordura e sal, e em ser líder de vendas. Só agora é que começa a haver uma preocupação por parte da fileira e a contratar especialistas da área da nutrição. Percebem que o que foi feito durante uns bons anos repercute agora na saúde. Há um processo de reversão. Neste momento a indústria não pode subtrair de imediato aos alimentos os sabores que lhes colocou, mas tem de encontrar alternativas e pensar na saúde dos consumidores.
Há uma preocupação sua com a origem do produto. As crianças estão muito afastadas da origem dos alimentos?
Sim. Atualmente tudo é tão moderno, tão industrializado que, quando abrimos um pacote, não fazemos ideia do que ali está. Há um estudo muito interessante em que pedem às crianças para desenharem um frango ou um atum, e neste caso eles desenham uma lata. No fundo, neste meu livro, o que faço é abordar as verdadeiras matérias-primas. O que é realmente o alimento e não o processado.
Neste seu livro também pretende tirar as pessoas de casa, levando-as às origens dos alimentos…
Exatamente, será excelente se algumas vezes os pais puderem fazer esse exercício e levar os filhos a um mercado, a uma quinta pedagógica. Faz muita diferença ver a carne, o peixe, os legumes, as frutas, antes de transformados.
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Mariana, a pergunta é quase óbvia, mas tenho de a fazer: vivemos numa sociedade viciada no doce e no salgado?
Sim, e nós nascemos com uma pré-disposição para gostarmos naturalmente do doce e do salgado, sem esforço e sem estranhar. Todos os outros sabores podem causar alguma estranheza de início. Precisamos de provar uma, duas, três ou dez vezes e estar em contato para que o alimento nos saiba bem.
Acabamos por viciar também as crianças, certo?
O não presentear as crianças e os jovens com comida açucarada é muito importante. Presentemente, e já não entrando no campo da obesidade, muitos distúrbios alimentares decorrem do fato de associarmos o açúcar a uma fonte calmante, de prazer e que efetivamente tem esse efeito fisiológico no nosso organismo. Por parte dos pais tem de deixar de haver a associação entre recompensa e doce. Quantas vezes já ouvimos isto? “Se te portares bem comes um doce”. É importante deixarmos de a fazer.
O livro é visualmente muito apelativo e esquemático na apresentação dos alimentos. A Mariana começa a obra com a Roda dos Alimentos o que, presumo, terá sido o seu ponto de partida. Quer explicar-nos o critério de escolha dos ingredientes que constam na obra?
Por acaso concentrei-me mais no conteúdo do livro e, só depois na reta final de escrita da obra, na Roda dos Alimentos. Está no capítulo de abertura porque é logo reconhecida pelos miúdos. Tive em conta o que eles devem consumir em maior quantidade ao longo dos seus dias e também alimentos que, à partida, possam ter menos aceitação por parte das crianças.
No elenco de alimentos que apresenta não falta, por exemplo, a cana-de-açúcar. É um alerta?
O açúcar também faz parte da alimentação e acima de tudo está muito presente nos dias de hoje. Por isso faz todo o sentido falar dele. Há que perceber a sua origem. Perceber que este, assim como a cana de onde provém, também são produtos naturais, mas que em excesso têm efeitos perigosos no nosso organismo. Tal como alguns açúcares ditos “naturais”, que as pessoas pensam que são mais saudáveis.
Estamos a falar do impacto a longo prazo? Ou seja, se consumirmos todos os dias há uma acumulação.
Exactamente, não temos uma resposta automática, a não ser que falemos de intolerâncias ou alergias. São os benefícios e os malefícios que vão ocorrer a longo prazo, por isso é que eu não defendo radicalismos. Isto é, a pessoa não comer certos alimentos durante três ou quatro semanas. Mais tarde cede e será pior. Digo, desta forma que se podem fazer alguns disparates, comer alimentos açucarados e processados, mas é a exceção
No que respeita ao excesso de peso e obesidade infantil, estamos a falar de uma situação que em Portugal assume contornos preocupantes?
Sim, temos níveis alarmantes e o problema é que têm vindo a subir. Os números de hoje em dia são reflexo do que temos vivido nas últimas décadas. Dentro de dez a 20 anos, espero sim, que comecemos a assistir a uma redução, fruto da preocupação que começamos a ter no presente.
Na articulação deste livro presumo que terá sido importante a sua experiência clínica, ou seja, as questões que lhe são colocadas em consulta?
Sinto muito isso, as crianças quando percebem que a consulta é para elas e percebem o porquê das coisas, são muito mais `certinhas` a cumprir. Mais do que os adultos. Por vezes, volvidas algumas consultas chegam a confessar, “eu sabia que não podia comer, mas a mãe disse que naquele dia não tinha mal”. Sentem-se mal por se desviarem do plano que eu traço e muitas vezes as mães ficam atrapalhadas e justificam o porquê: “porque não dava jeito, ou porque tinham um jantar”.
Imagino que para a Mariana é gratificante acompanhar uma criança que aparece com excesso de peso e evolui para um peso adequado para a sua idade e estrutura corporal…
Sim, é muito gratificante e giro. A evolução da perda de peso num adulto e numa criança não se faz da mesma maneira. Nas crianças, com o crescimento, mais do que a perda de peso por si só, acompanho o equilíbrio do IMC – ou seja a relação entre o peso e a altura vai equilibrando. As crianças querem vir à consulta. Recentemente tive o caso de uma paciente menina que não cumpriu o plano nas férias de verão. A mãe como castigo disse-lhe que ela não voltaria às consultas. A miúda pediu à mãe para a colocar de castigo, mas não lhe retirar as consultas da Mariana [risos].
Considera que as escolas têm tido um papel importante na abordagem, ensino e incentivo a escolhas alimentares corretas ?
Não estou totalmente a par do programa escolar, mas há um cuidado muito maior, sem dúvida, tanto nas matérias, como também na oferta nos bares nas e cantinas. Há o acompanhamento de equipas de nutricionistas, pessoas que percebem de alimentação coletiva e de alimentação em idade escolar. As escolas podem ajudar até determinado ponto, mas se depois, em casa, não há esse acompanhamento não vai funcionar.
Como foi trabalhar com a ilustradora Elsa Martins neste “Vamos Conhecer os Alimentos”?
Foi muito bom. Num livro infantil por muito bons que sejam os conteúdos, se a obra não for visualmente apelativa, é o suficiente para deixar de ser um sucesso naquilo que são os objetivos e pior, estamos a perder a oportunidade de chegar às pessoas.
As receitas que encontramos no livro são da sua autoria da Mariana Abecasis?
Sim, coisas simples e menos elaboradas, para evitarmos perigos, e as crianças começarem a ter contacto com a cozinha e os alimentos.
Masiana Abecasis aborda regularmente questões sobre alimentação e saúde na sua página na internet.
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