Quando falamos em Perturbações do Espetro do Autismo (PEA) a maioria das pessoas pensará em dificuldades no relacionamento social. No entanto, as PEA não se referem apenas a esta área de funcionamento.
Mantendo presente que as PEA se caracterizam por alterações noutras áreas de desenvolvimento foquemo-nos, neste artigo, no caso particular do relacionamento social e relações de amizades nas PEA no sexo feminino. E porquê falar especialmente das PEA no sexo feminino?
A experiência clínica, bem como alguns estudos e autorrelatos, tem tornado evidente que a expressão das características das PEA nas raparigas (e mulheres) apresenta diferenças relativamente à manifestação no sexo masculino. Esta diferença verifica-se especialmente no extremo menos grave do espectro do autismo (PEA Nível 1, de acordo com o DSM-5 - Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais; também ainda designada como Síndrome de Asperger), no qual os indivíduos têm uma linguagem superficialmente normal e podem ter níveis de inteligência dentro ou acima da média.
Uma das diferenças no perfil do género feminino refere-se à subtileza na manifestação das características, que são menos acentuadas e menos observáveis. Contudo, para além disso, o olhar clínico atento, tem trazido à tona diferenças também na qualidade das características.
Estudos recentes confirmam que as raparigas com uma PEA, têm uma maior motivação social e mais relações íntimas de amizade do que os rapazes com a mesma perturbação, embora não sejam tão hábeis como as raparigas sem autismo, a desenvolver relações de amizade e, principalmente, a reconhecer e resolver os conflitos que surgem nas mesmas.
As meninas com PEA parecem ter uma maior necessidade por amigos “do mundo real”, alguém com quem se sentar ao lado para almoçar, brincar depois da escola e partilhar experiências. Isto parece ter um impacto ainda mais perturbador nas suas vidas do que acontece com os seus pares do sexo masculino.
As raparigas com PEA podem ter poucas relações de amizade, na maioria das vezes, uma ou duas, mas muito intensas
Em alguns casos, vivenciam a relação de modo muito obsessivo e algo aparentemente “possessivo”, acabando por levar as suas amigas a afastarem-se. O comportamento que assumem na relação poderá ser explicado, entre outros fatores, pela dificuldade em fazer novas amizades, medo de serem abandonadas e não estimadas e/ou pelas lacunas nas suas competências sociais, como em saber quais os limites interpessoais.
É na altura do 2º Ciclo e primeiros anos do 3º Ciclo, que várias das pré-adolescentes e adolescentes diagnosticadas com uma PEA, são encaminhadas para uma avaliação, motivada pelas suas dificuldades no relacionamento com as suas colegas. Contudo, as dificuldades podem começar mais cedo, e começam geralmente, quando se inicia a escolaridade. As outras meninas podem gozar com a maneira de brincar, de vestir, de reagir às situações, com o facto de se isolar ou com alguns maneirismos da menina com uma PEA.
Uma adolescente que acompanhei, e que sofreu silenciosamente vários anos de bullying, começando no 1º Ciclo, assumia, por fases, que era um determinado animal (um dos seus interesses específicos) e tentava comportar-se como tal, por exemplo, uma tartaruga. Mesmo procurando “proteger-se na sua carapaça”, foi vítima de agressões físicas e verbais durante um longo período. Uma vez vítimas de bullying, as raparigas com PEA, podem ter ainda mais dificuldade em estarem verdadeiramente próximas de outras pessoas e confiar nas mesmas. Será preciso alguém que invista tempo, para se poderem conhecer e cultivar uma amizade.
Algumas raparigas com PEA podem, por vezes, tornar-se muito vulneráveis às “falsas amigas”, que abusam da sua ingenuidade, falta de habilidade social, lealdade e enorme desejo de terem amigas.
Quando chegam à adolescência, é mais frequente não se identificarem e não se sentirem compreendidas entre as colegas, que outrora foram companheiras de brincadeira. A relação muito baseada nas conversas intermináveis, nos comportamentos que se exibem, tornam-se muito difíceis de decifrar. As amizades das raparigas são baseadas mais nas competências sociais e emocionais do que as dos rapazes, que têm mais para fazer com a partilha de interesses e atividades do que conversarem.
Os défices nestas áreas de competência, fazem-se sentir nesta fase de um modo que até então poderia não ser tido impacto. Devido a estas dificuldades em acompanhar o modo como as raparigas se relacionam entre si, uma rapariga com PEA pode preferir relacionar-se com os rapazes, pois a brincadeira destes é mais baseada em ações e a conversa mais simples e objetiva.
À medida que se sentem mais afastadas dos grupos e amizades, também mais afastam os outros. Uma das formas de o fazerem é afastarem aquelas que não partilham as mesmas “paixões”. Algumas procuram levar as colegas a gostar das suas obsessões, mas sem sucesso. Outras não compreendem que as colegas possam não ter o mesmo tópico de interesse ou o mesmo nível de fascínio, e consideram os interesses “mais comuns” das suas colegas, completamente sem interesse.
A falta de assertividade para gerir estas diferenças conduz, frequentemente, a um afastamento do grupo, ou por desinteresse da própria rapariga com PEA ou por rejeição do grupo. Vários são os desafios que uma adolescente com PEA tem de ultrapassar para se integrar no seu grupo de pares, o que conduz, com frequência a uma extrema ansiedade, que apenas diminui com o evitamento das situações sociais.
A ansiedade torna-se assim um dos motivos principais de procura de ajuda psicológica, que abre o caminho para um despiste de PEA e diagnóstico (tardio) da mesma. Frequentemente, as adolescentes com PEA sofrem também de depressão na adolescência.
Os sinais e sintomas destas perturbações podem ser “a ponta do iceberg” abaixo do qual existe um perfil de características que explica as dificuldades no relacionamento social e que é fundamental investigar. A falta de amigos parece ter muito mais a ver com dificuldades nas competências para desenvolver e, sobretudo, manter as relações de amizade, do que com uma inata falta de desejo para ter amigos.
Texto: Inês Leitão - Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta
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