Relógio biológico. Com certeza já ouviu falar dele, mas talvez pense que se trata apenas de uma figura de estilo.

Se é este o seu caso, desengane-se: o relógio biológico não só existe, como corresponde a áreas específicas do cérebro e está directamente relacionado com o sono, bem como com todas as outras funções corporais.

Em conversa com o neurologista Ângelo Soares, autor da obra «O sono – efeitos da sua privação sobre as doenças orgânicas», ficámos a saber como este mecanismo funciona e como factores como a luz e o ruído afectam a qualidade do sono.

O «relógio biológico» corresponde a uma função específica do cérebro?

Sim, é regulado por duas pequenas estruturas ou núcleos do tamanho de cabeças de alfinete que estão situadas sobre o hipotálamo, uma zona na base do cérebro, por baixo do cruzamento dos dois nervos ópticos – o quiasma óptico. Em cada um desses núcleos há cerca de 20 neurónios que regulam o funcionamento de todo o organismo.

Do batimento cardíaco aos movimentos respiratórios, passando pela função urinária, tensão arterial e temperatura intra-cerebral e do corpo, tudo é ali regulado e acertado pelo relógio biológico, segundo a sucessão dos ciclos circadianos. São criados ciclos iguais, com a duração de cerca de 24 horas – é o chamado ciclo circadiano («circa» cerca de, e «diano» de um dia).

Que factores podem alterar esse ritmo?

A exposição ao stress e o número de horas de exposição à luz e à sombra, além de muitos outros factores físicos e mentais, podem alterar esse ritmo circadiano. Pode atrasar-se ou acelerar-se para 25 ou 23 horas e todo o corpo se adapta lentamente a essa pequena modificação, como nos casos de workshift (trabalho por turnos), jet lag (viagens longas de avião), ou outros. No entanto, o ritmo tem tendência a auto-regular-se, voltando às 24 horas, após período de adaptação, variável, e relacionado com a extensão do desvio horário.


A forma como uma pessoa adormece depende do tipo de actividades que desenvolveu ao longo do dia?

Enquanto numa actividade de que se gosta há um efeito estimulante que faz com que a pessoa se esqueça do sono e continue a trabalhar, numa actividade forçada, a pessoa tenta arranjar todos os subterfúgios para a interromper, nomeadamente com o sono.

Numa actividade exagerada, em que a pessoa fica cansada física e/ou mentalmente, pode chegar à exaustão neuronal, isto é, os neurónios utilizados ficam de tal forma fatigados que esgotam as secreções viáveis para poderem ser utilizados, a pessoa tem necessidade de parar para descansar, para não os desgastar mais e reconstituir as suas estruturas de laboração. Passado o sono de umas horas, recupera e está pronta para recomeçar.

Como se dá o processo de adormecimento?

Em termos gerais, desenvolve-se igualmente para todas as pessoas. Há estruturas cerebrais preparadas para começar a funcionar e dar à pessoa a noção de que é altura de ir dormir, ajudando a criar condições favoráveis à sonolência e até à situação de sono profundo.

Simultaneamente, há formas espontâneas de bloquear os neurónios que levariam ao movimento, já que, durante uma certa fase do sono, a pessoa não se mexe - sono profundo não-REM, dito reparador.


É verdade que o sono nocturno é mais reparador?

Sem dúvida. A melatonina, uma hormona que funciona como neurotransmissor, é segregada durante a noite. Também a luz do sol tem uma influência fundamental sobre o sono. Quando entram os primeiros raios de luz pela janela, a pessoa acorda e começa a funcionar; quando ele se põe, desencadeiam-se actividades ao nível do cérebro, cerebelo e do tronco cerebral, que induzem ao sono. Por isso, o tipo de sono varia conforme as horas. O ideal é dormir entre as 11 da noite ou meia-noite e as sete ou oito da manhã.

Nas pessoas que trabalham à noite, há uma adaptação desses horários?

Não, mas pior para a resistência física e mental é a sucessão de horários diferentes, seja por turno de trabalho, seja por jet lag. Por exemplo, se uma pessoa trabalha da meia-noite às quatro da manhã e, na semana seguinte, tem que estar a dormir a essa hora, necessita alterar e inverter o ritmo biológico para se adaptar. Essas pessoas, com este tipo de funcionamento, mantêm-se eficazes durante oito a dez anos e depois disso, muitas delas acabam por consultar psiquiatras.

Quanto tempo demora organismo a adaptar-se a esse tipo de mudanças?

É variável, mas cerca de quatro a cinco dias para ajustar o ciclo. Durante esse período o trabalho não vai render, a pessoa não está apta.

Só ao fim de oito dias é que voltará totalmente à sua performance normal, embora relativamente, dado que foi acumulando fadiga e falta de repouso.


Por que é que algumas pessoas precisam de dormir menos?

Precisam, não! Podem dormir menos mas estruturalmente estão preparadas para ter ciclos sucessivos de 24 horas, podendo decidir dormir cinco ou 12 horas em cada um deles. No entanto, qualquer uma destas situações vai conduzir à modificação da actividade das estruturas cerebrais, reflectindo-se em todo o organismo ao fim de alguns anos.

É um facto que os idosos precisam de dormir menos?

Não. Os idosos precisam de ter sono profundo como toda a gente. Uma criança pequena dorme 20 ou 22 horas e vai dormindo menos até chegar às seis a oito horas do adulto médio. Aos 70 ou 80 anos, dormir quatro ou cinco horas de sono profundo por noite é suficiente já que, durante o dia, os idosos passam por fases de adormecimento ou sonolência.

Os idosos, em princípio, adormecem mais cedo e vão fazendo as suas sestas de sono superficial ao longo do dia, dormindo cada vez menos profundamente. Esse é um sono por inactividade, falta de interesse, falta de ocupação, não tem efeitos benéficos nem relação com a memória e não é reparador. Por esta razão é frequente um idoso dizer que não dorme, porque não é de qualidade o sono que tem.

Essa sonolência também surge quando se come uma refeição pesada e tem que se desempenhar um esforço intelectual a seguir...

A sonolência pode ser provocada por uma alimentação muito condimentada e pesada, regada com vinho, o que não é propriamente saudável. Essa sonolência surge porque é necessário um grande dispêndio de energia para a digestão e essa energia é desviada de outras áreas do cérebro, causando uma diminuição da função mental. Esse sono é artificial, isto é, não está relacionado com a actividade de sono normal. O sono normal e reparador não tem que ver com isso e até é prejudicado por esses exageros alimentares.

Existem padrões de sono masculinos e femininos?

Toda a investigação tem englobado indiferentemente homens e mulheres. Mas é natural que o facto de as mulheres terem uma emotividade mais intensa possa ter reflexos no seu sono.

O ritmo biológico muda conforme as estações do ano?

Não, as estações do ano não têm assim tanta influência, embora a noite mais longa, possa, em certa medida, condicionar alguma sonolência acrescida.

O ruído tem o mesmo efeito que a luz na qualidade do sono?

Não tem o mesmo efeito porque a luz interfere directamente na actividade cerebral, enquanto o ruído estimula a actividade auditiva e, como tal, todo o cortex temporal auditivo. Mas, de facto, é necessário silêncio para haver um sono reparador, caso contrário, é um sono entrecortado, o que pode ser prejudicial se acontecer muitas vezes.

É possível compensar ao fim-de-semana o défice de sono acumulado?

A pessoa não consegue recuperar o que perdeu, embora tenha a sensação que sim. O organismo humano não reage à custa de matemáticas, mesmo que as horas de sono somadas correspondam ao total recomendado.

Portanto, o ciclo de sono deve processar-se naturalmente e sem grandes atropelos.

Este conselho pode não parecer realista, mas não vejo outro que possa resolver o problema sem acarretar riscos para a saúde.

Que substâncias bioquímicas nos fazem acordar?

A acetilcolina tem um papel importante porque faz a transmissão entre o córtex, o hipotálamo e o sistema límbico. Toda essa sincronia entre os neurotransmissores, se funcionar bem, vai permitir um acordar suave, tranquilo e bem-disposto. Se houver alguma perturbação que termina o sono, o acordar é sobressaltado ou preocupado.

Como se pode acordar serenamente?

Um ritmo biológico, treinado durante o tempo suficiente, permite acordar sempre à mesma hora, de forma espontânea, após um sono reparador e tranquilo. Do ponto de vista do funcionamento do organismo, não deveria haver despertador, telefone ou alguém a acordar-nos, isso é uma violência. Mas a vida em sociedade tem estas exigências e os benefícios não compensam o risco de acordar sob stress sempre que nos atrasamos.

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Texto: Rita Miguel com Ângelo Soares (neurologista)