Lucília (nome fictício) ficou a saber que afinal é autista. Digo que ficou a saber, porque ela própria diz que já há algum tempo que o sabia. Não o nome que as pessoas lhe dão, mas sabia tudo aquilo que ela viveu e vive. Não lhe faz muita diferença saber que agora se chama autismo. É melhor saber o nome das coisas, mas é apenas isso, saber o nome das coisas. Mas não é a única coisa que para Lucília é assim. A sua vida é assim sem diferença.

As coisas na vida vão continuando a acontecer e a Lucília está lá. E é isto, os acontecimentos de vida vão-se sucedendo e a Lucília está presente. Porque é que as coisas são assim? Não sabe! São-no. Não as sente, ou não as parece sentir, melhor dizendo. Até porque o sentir é bem mais complexo do que aquilo que todos nós dizemos. Mas o certo é que assim a vida não lhe faz sentido.

Qual sentido poderíamos nós perguntar! Não sabe. A família preocupa-se. Fica angustiada. Não sabe o que fazer ou como fazer. E porque é que isso acontece dessa maneira. Mas Lucília não sente que esse é o impacto causado na família. Não sente, ou aparentemente não o sente. E como tal, também não percebe. Mas faz-lhe sentido se explicado - é lógico, diz. E acrescenta - mas eu não me quero matar! A vida não me faz é sentido!

Até recentemente, comportamentos como a automutilação, pensamentos e comportamentos suicidas não receberam a devida atenção na investigação clinica e cientifica no autismo. A evidência de taxas altas de automutilação nas pessoas autistas foi sendo enquadrado no contexto de comportamentos desafiantes e/ou repetitivos e à Dificuldade Intelectual e Desenvolvimento.

No entanto, o facto de haver cada vez mais casos de pessoas adultas a serem diagnosticas com Perturbação do Espectro do Autismo (PEA), tem feito com que haja mais investigação neste grupo, e mais especificamente no suicídio. Até porque estes adultos começaram a trazer para as consultas este relato.

Recentemente, demonstrou-se que 65% de adultos recentemente diagnosticados com PEA, já tinham contemplado o suicídio na sua vida, e cerca de 35% tinha planeado ou tentado o suicídio. Os adultos autistas são significativamente mais propensos a experimentar comportamentos de auto-lesão em comparação à população em geral. E este comportamento está associado ao aumento do risco de suicido neste grupo. Mas porque é que tudo, ou quase tudo, parece acontecer no autismo, e aparentemente mais grave que na população em geral.

E neste caso, o suicídio também, sendo uma situação que precisa de ser tida em conta muito seriamente pelos profissionais de saúde, quer aqueles que os acompanham, mas também aqueles que em algum momento os recebem na clínica e que precisam de poder identificar estes sinais e sinaliza-los.

É comum quando escutamos uma pessoa autista falar sobre si, suas experiências de vida, dizer que tem uma sensação de frustração de não saber onde pertence, onde lhe faz sentido encaixar-se. Ainda que o consiga fazer racionalmente quando lhe é perguntado. Pode dizer que pertence à espécie humana e à família da qual é oriunda. Mas sente uma maior dificuldade em conseguir pensar-se em relação à pertença existencial. Mas também é comum ouvir-mos relatos constantes de um maior esgotamento (burnout), característico das sucessivas tentativas de interacção com as pessoas e as situações no mundo.

A sobrecarga, normalmente sensorial, tem um impacto muito grande nesta sensação de desvitalização, esvaziamento de energia, sentida ao fim do dia, de algumas horas ou minutos, dependendo da situação vivida. E isto multiplicado ao longo do dia, dias e anos. E que no caso da Lucília, sem sequer ter o diagnóstico que a ajudasse a dar o nome às coisas e possivelmente uma outra explicação.

Lucília, ao longo destes anos foi fazendo aquilo que hoje chamamos de camuflagem social. Foi observando e fazendo. Mas sem qualquer envolvimento afectivo na realização desses comportamentos. É isso que se faz, ou é assim que se deve fazer. É uma acção, é um comportamento. Faz sentido ser assim na medida de que é assim que os outros na sua maioria fazem. E isso foi-lhe valendo outros diagnósticos e outros acompanhamentos, mas sem mudança daquilo que dizia - a vida não faz sentido!

Para a vida lhe fazer sentido, é preciso que a vida fosse sendo vivida de uma forma plena, composta por um sentir, fisiológico, sensorial, que fosse integrado e para os quais houvesse uma representação mental, um nome atribuído. E que naquele momento fosse criado um sentido para o que estava a acontecer. Mas muitas dessas coisas não aconteceram e não acontecem com a Lucília.

E também não acontecem com muitas outras pessoas autistas. Mas ainda assim, a questão do pensamento e comportamento suicida não deixa de estar presente. E apresenta um conjunto de contornos diferentes daquilo que é ou parece ser a expressão do suicídio nas pessoas não autistas. E precisa de ser melhor compreendido por nós profissionais de saúde e também precisa de ser explicado às pessoas autistas e em conjunto com elas procurar-se este sentido para a vida, a sua vida.

Mas na Perturbação do Espectro do Autismo parece haver muitas coisas que levam as pessoas a escapar na compreensão do sofrimento psicológico e mais especificamente do suicido. Nomeadamente, a forma como os afectos são sentidos e expressos. Isto, quando não existe associado uma Alexitimia, que ainda acaba por afetar mais o quadro e a forma como todas estas vivências são processadas ao longo da vida. A expressão e a comunicação destas situações é feita de uma forma diferente do normativo e leva a que muitas pessoas que contactam consigo, inclusive profissionais de saúde, possam não dar a relevância necessária a eles.

Este mês de setembro, designado de setembro amarelo, devido há campanha que surgiu há cerca de três anos para chamar a atenção a nível mundial para a importância da prevenção do suicídio e da necessidade de promoção da saúde mental e no combate ao estigma. Também serve para chamar a atenção para a importância de olharmos para esta situação no autismo.

As pessoas autistas dizem-nos, ainda que da sua forma, aquilo que estão a viver. Ainda que nos possa ser diferente e estranho à forma de alguns de nós o viver.

Ainda assim, é fundamental poder atender a estas palavras da Lucília e de tantos outras pessoas adultas e ajuda-los a dar um sentido, o seu.