Desde que o crime de violência doméstica foi considerado um crime público e, consequentemente, lhe foi dada uma maior notoriedade passámos a ouvir com alguma frequência que as vítimas apresentam queixa por tudo e por nada, por discussões e atritos de menor gravidade que nem sequer se deveriam enquadrar no crime de violência doméstica. Este tipo de apreciações ganhou uma maior expressão aquando da entrada em vigor da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, que veio consagrar um conjunto de apoios sociais e económicos que podem ser desencadeados para as vítimas de violência doméstica na sequência da apresentação da denúncia pela prática do crime de violência doméstica. Passou, então, a ser recorrentemente ouvido que as vítimas deste crime apresentam denúncia por motivos menores e que o seu objetivo é ganharem dinheiro à custa do Estado Português, entre outros apoios. Nesta linha ouve-se que as vítimas, na sua esmagadora maioria mulheres, apresentam denúncias para conseguirem o rendimento social de inserção, os abonos dos filhos, indemnizações, e, sobretudo, que apresentam denúncias para conseguirem que o Estado lhes atribua casas para viverem por via do Estatuto de Vítima.

Sendo que, quem tem a audácia de tecer tamanhos impropérios e de propagá-los desconhece o conteúdo e o alcance da legislação em vigor, porquanto os apoios económicos e sociais concedidos às vítimas de violência doméstica não são uma decorrência automática das denúncias apresentadas.

Urge esclarecer de uma vez por todas que, com a denúncia do crime a vítima de violência doméstica adquire apenas e tão somente o direito a candidatar-se, com caráter de urgência, aos apoios sociais que a lei prevê para todos os cidadãos e cidadãs, portanto, a vítima tem de concorrer a esses direitos em igualdade de circunstâncias em relação aos demais candidato/as.

Por outro lado, aquele tipo de apreciações e comentários serão sempre emanados por quem desconhece o que é a violência doméstica e nunca passou dificuldades na vida, mas também por quem não tem o mínimo de empatia com o sofrimento da vítima e das suas dificuldades.

Conhecer a violência doméstica significa saber também afinal em que é que se traduzem esses apoios concedidos às vítimas na prática.

Sendo que, desde a implementação da lei, desconhece-se quem tenha enriquecido à custa do Estado Português já que os apoios económicos e sociais concedidos apesar de diversos são diminutos e não permitem às vítimas sequer sobreviver com os mesmos. Estes apoios mais não são que uma alavanca que, quando concedida, permitem ajudar a ultrapassar situações violência agudas e direcionar as vítimas no sentido da sua autonomização.

Esta será com certeza uma riqueza que ninguém gostaria de ter se a tivesse de experimentar, pelo que apregoá-la quando não corresponde à realidade é sem sombra de dúvida um ato de profunda maldade que vem no seguimento da ideia das falsas denúncias de violência doméstica.

Este pacote de apreciações pertence aos que resistem a aceitar a natureza pública do crime e teimam em fazer crer à sociedade que muitas das condutas denunciadas deveriam enquadrar-se noutra tipologia de crimes de menor gravidade.

Goste-se ou não dos processos-crime de violência doméstica, já era altura de se perceber que se tratam de processos que têm por base a violação de Direitos Humanos inerentes a cada ser humano em circunstâncias muito especiais e que, por isso, mesmo mereceram uma proteção especial do legislador.

A riqueza alcançada com os processos de violência doméstica não é a económica, mas antes a garantia da segurança, reconhecimento da verdade com a consequente punição da conduta criminosa e, sobretudo, a possibilidade de se viver uma vida livre de violência.

Um artigo de opinião da advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças.