Estavam quarenta graus negativos, e um vento polar uivava como uma assombração; a sua lamuria viajava pelos sulcos dos riachos das montanhas mais próximas, fustigando a ampla planície das estepes da Mongólia setentrional e beliscando‑me o rosto com os seus dedos  gelados. O frio parecia uma criatura viva, conseguindo alcançar as partes mais minúsculas da minha pele exposta e penetrando nos meus ossos. A uns meros 15 metros, um reconfortante pilar de fumo elevava‑se da ger – ou, como e mais conhecida, yurt, uma cabana circular – para se dissipar de imediato.

A visão daquela casa do pastor, agachado a minha frente, era incrivelmente acolhedora e convidativa. Das suas mãos ocupadas escapava o vapor do corpo do iaque que acabara de ser abatido com um único golpe de martelo de forja, que fez cair o enorme animal como uma pedra. Assim que este aterrou na terra gelada, o pastor largou o martelo, pegou na faca e fez um golpe na jugular do animal pesado. Nada aqui e desperdiçado – principalmente o sangue do animal –, e o pastor colhe cada gota numa tigela de metal antes de o coração parar de bater. Agora chegava o momento do grande esforço de cortar em peças aquele animal gigante, uma tarefa mais fácil com ajuda, e dois dos vizinhos do pastor vieram em seu auxílio. Aqui, o termo “vizinho” é relativo. De onde venho, um vizinho viveria na casa que fica a cerca de 40 metros da minha, mas, nas estepes, o vizinho mais próximo mora a 50 quilómetros. Estes dois tiveram de fazer uma grande viagem para ajudar o amigo com o iaque.

Para a maior parte das pessoas da sociedade atual, assistir ao desmanchar da carcaça de um animal é, no mínimo, desconcertante e, na pior das hipóteses, repulsivo e perturbador. Para mim é fascinante. Porquê? Porque é uma janela honesta para a dieta de uma determinada sociedade e cultura. As diferentes perspetivas e valores determinam que partes do animal integram a alimentação e quem as irá consumir.

Para a maior parte das pessoas da sociedade atual, assistir ao desmanchar da carcaça de um animal é, no mínimo, desconcertante e, na pior das hipóteses, repulsivo e perturbador. Para mim é fascinante.

Por sua vez, tudo isto dita como as partes do animal devem ser cortadas. Nas estepes geladas, fui testemunha de estratégias inéditas de corte da carne. De início, senti‑me confuso, mas, ao longo do processo, comecei a perceber que aquele povo valorizava no animal algo que nada tinha que ver com a nossa perspetiva de uma cultura ocidental. Com exceção do baço e da vesícula (que foram dadas aos cães), nada foi desperdiçado. Com mãos de cirurgião, os pastores trabalharam em conjunto para remover o fígado, coração, os rins e pulmões. Os intestinos servem de invólucro para fazer enchidos feitos de carne crua seca, pendurada no telhado da ger para estar exposta ao fumo. Os estômagos limpos são recheados de manteiga feita de leite de iaque, onde esta fermenta durante vários meses. Assim que o sangue e os órgãos foram retirados, toda a precisão cirúrgica desapareceu e começou a etapa de separar a carne. Não houve distinção entre cortes de primeira e de segunda, nem qualquer corte específico que conseguisse identificar, como acontece na gastronomia ocidental. Alias, a carne não chegou a ser separada dos ossos. Tudo – e refiro‑me a tudo – o que sobrou foi cortado em conjunto em pedaços do tamanho de um punho, cada um com a sua proporção de carne, cartilagem, tutano e gordura.

O que fora um iaque era agora uma pilha de pedaços de carne indiscerníveis. A estratégia e técnica de corte de carne deles dava claramente prioridade as partes do animal mais ricas em nutrientes – os órgãos, sangue, gordura e fressuras – e revelavam uma indiferença em relação à carne. Através de decisões completamente distintas das de um talhante ocidental a trabalhar para um mundo de consumo ocidental contemporâneo, alcançaram zero desperdício, o Santo Graal da mentalidade que defende o aproveitamento do animal “do focinho a cauda”.

Assim como aconteceu com as plantas, também temos de repensar a nossa relação com os animais.

Porque decidi falar sobre esta experiência? Porque ilustra na perfeição algumas das questões fundamentais complicadas e, muitas vezes, de caráter ético sobre a forma como consumimos carne na cultura ocidental contemporânea. Assim como aconteceu com as plantas, também temos de repensar a nossa relação com os animais. A maior parte de nós acredita que está a tomar uma decisão saudável quando vai ao supermercado e compra filetes de porco, ou peitos de frango sem osso nem pele, ou lombo de vitela. Dizem‑nos que estas escolhas são boas porque são cortes de carne mais magros, com baixos níveis de gordura e ricos em proteína. Esta informação não está errada – estes cortes são relativamente magros e ricos em proteína. Mas há mais. Na realidade, devíamos ouvir os nossos antepassados e alimentar‑nos de menos carne e optar por outras partes dos animais.

Miudezas, só de nome, pois de resto são grandes carnes e de boa linhagem à mesa
Miudezas, só de nome, pois de resto são grandes carnes e de boa linhagem à mesa
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Ao centrarmos a nossa atenção apenas na carne – em especial, na carne magra – excluímos as partes mais nutritivas e de melhor qualidade das nossas dietas, como a gordura, os órgãos e miúdos, que são para os seres humanos os alimentos mais ricos em nutrientes e com maior biodisponibilidade no planeta. Vale a pena parar aqui e referir a palavra que faz muitas pessoas torcer o nariz: “vísceras”. Em inglês, a palavra “offal” tem origem no neerlandês do século XVI, juntando‑se as palavras “af”(“de”) e“vallen” (“queda”), ou seja, literalmente, “aquilo que cai” durante o processo de corte da carne: sangue, órgãos, tecido conjuntivo, intestinos, pele, e por ai adiante.

Podemos considerar como fressuras, estas vísceras comestíveis, diversas partes do animal – desde molejas (pâncreas ou timo) a pezinhos (pés de porco), de tripas (pele de estomago) a chitlins (intestino grosso). Este termo pode ter um significado diferente em culturas e hábitos alimentares distintos. Na cultura ocidental, refere‑se por norma às partes do animal que não são consideradas comida – quase tudo o que não corresponde à nossa ideia de carne e que raramente chega às nossas mesas. No entanto, neste livro, referimo‑nos as suas raízes linguísticas, abarcando este significado: órgãos, sangue, ossos, pele e outros subprodutos do processo de desmanchar uma carcaça de animal. A diferença é que, neste livro, estes subprodutos são considerados alimentos valiosos.

De acordo com esta definição, o fígado – um alimento que não é completamente desconhecido da culinária ocidental – entra na categoria de fressuras e proporciona valores nutricionais muito mais promissores quando comparado com a carne de vaca picada, um produto mais universal. Uma porção de 100 g de fígado de vaca cru contém 4,9 mg de ferro, 313 mg de potássio, 9,8 mg de cobre, 59 mcg de vitamina B12 e 16,899 unidades internacionais (UI) de vitamina A (aliás, comer demasiado fígado pode causar intoxicação de vitamina A). A mesma porção de carne de vaca picada contém 2 mg de ferro, 175 g de potássio, 0,1 mg de cobre, 2 mcg de vitamina B12 e nenhuma vitamina A. Ambas contém quase a mesma quantidade de proteína – o fígado representa 20,4 g, e a carne picada de vaca, 19,4 g –, mas o fígado tem menos calorias (135 versus 192, respetivamente) e gordura (3,6 versus 12,7 g). Quando comemos fígado, os nossos organismos conseguem absorver com facilidade e usar quase todos os seus nutrientes. Por outro lado, a carne tem menos nutrientes e requer que seja processada (cozinhada) para que fiquem todos completamente biodisponíveis.

Nos Estados Unidos, consome‑se cerca de 55 por cento do total do porco e 50 por cento da vaca. O que acaba por chegar às embalagens dos supermercados representa cerca de metade do animal.

No entanto, apesar destes atributos inegáveis, o fígado costuma ser tratado pelo mundo culinário como um alimento servido como prato do dia em snackbars, coberto por cebolas (por norma, cozinhado para lá do ponto). Além disso, é vítima de um equívoco comum, que nos leva a acreditar que contém toxinas, sendo toxico comê‑lo, quando, na verdade, é responsável por processar e filtrar toxinas. Este alimento, à semelhança dos outros órgãos, sofre de um problema de marketing e perceção, que se deve, em grande medida, ao nosso sistema alimentar atual, que dá prioridade à carne, desperdiçando as partes mais úteis e nutritivas do animal. Nos Estados Unidos, consome‑se cerca de 55 por cento do total do porco e 50 por cento da vaca. O que acaba por chegar às embalagens dos supermercados representa cerca de metade do animal. Quando descartamos metade de um animal, não desperdiçamos metade dos seus nutrientes, mas muito mais do que isso, pois as partes negligenciadas são as mais nutritivas. Esta importância dada a carne distorceu a ideia daquilo que realmente constitui uma dieta saudável, no âmbito da proteína animal. Morremos de medo da gordura. Porém, a gordura animal de qualidade ajudou, literalmente, a dar o impulso para que acontecessem os mais importantes avanços da evolução humana.

Os órgãos, a gordura e os miúdos apenas continuam a ser valorizados nas culturas mais tradicionais, como o povo lapão, os inuítes e os pastores de iaques da Mongólia.

Os seres humanos começaram a alimentar‑se de carne ao escavarem cadáveres de animais mortos, cujas vísceras – os órgãos, o sangue e a gordura – já haviam sido levadas pelos predadores. Foram precisos outros 1,5 milhões de anos para ser desenvolvida a tecnologia para caçar, e só então, após sermos os responsáveis pela matança, conseguimos ter acesso às partes mais nutritivas, e os nossos cérebros e corpos começaram a crescer exponencialmente. Os restos de carne não foram responsáveis por isto, mas os órgãos ricos em nutrientes, a gordura e fressuras, partes hoje descartadas e consideradas nojentas, ilegais até, em certos casos. A grande ironia é que, com esta nova abordagem em relação à carne, demos um gigantesco passo atrás. Depois de os nossos antepassados se terem esforçado tanto para ganhar acesso em primeira mão ao animal inteiro, hoje optamos pela estratégia oposta, alimentando‑nos das partes menos nutritivas e deixando de parte o resto.

Como aconteceu isto? Deve‑se a uma miríade de fatores, mas, em primeiro lugar, temos de recuar ao passado recente – a 1869, para ser mais exato –, quando a construção da primeira ferrovia transcontinental ficou completa. Esta conquista marcante permitiu‑nos enviar animais vivos por todo o país para serem abatidos. Porem, estes animais ocupavam muito espaço, precisavam de ser alimentados durante o período de transporte, e era comum perderem peso ou morrerem durante a viagem atribulada. Para resolver este problema, desenvolvemos novas técnicas de refrigeração que permitiram que o abate, o ato de desmanchar a carcaça em peças e o transporte da carne decorressem de forma muito mais eficiente, do ponto de vista económico e da segurança, a partir de localizações centrais – de Chicago, Omaha e de Kansas City, por exemplo. No entanto, estes novos procedimentos deixaram de lado os órgãos e outras entranhas dos animais, pois estes precisavam de um sistema de refrigeração mais consistente e frio do que a carne. Também resultou na extinção de matadouros e talhos por todo o país. As montanhas de “desperdício” dos matadouros – previamente consideradas alimentos ricos em nutrientes – transformaram‑se em produtos como gelatina, graxa, ictiocola e fertilizantes.

Podemos iniciar o caminho de volta a uma abordagem mais sustentável, ética e saudável de comer mais partes do animal e menos carne.

Foi assim que a dieta americana se voltou para a carne e se afastou das fressuras, e demos início à prática atual de comer apenas metade do animal. Este conjunto de decisões, tomadas somente por razoes económicas, deram origem à nossa prática contemporânea de comer apenas a carne de partes especificas do animal, morto, esquartejado, embalado e enviado por outrem. A maior parte dos americanos não tem qualquer papel neste processo, nem conhecem o talhante.

É curioso que a classe média seja a camada da sociedade com menos acesso, físico e psicológico, a fressuras. Quando estas partes estão à venda cruas, são muito baratas (numa típica mercearia americana, 500 g de fígado custam cerca de 2 dólares e meio, enquanto a mesma quantidade de lombo custa 10 dólares) e, nesse sentido, é muito mais comum nos agregados familiares com menos recursos. Quando são vendidas confecionadas, as miudezas costumam servir‑se nos restaurantes mais finos (e caros) sob a forma de patês e terrinas.

Todavia, não fazem parte da dieta da maioria dos consumidores de classe media. Apesar de estas partes serem usadas em diversas gastronomias a volta do mundo (desde a tarte de carne e fígado inglesa ao gulai otak, um caril de mioleira da Indonésia), os órgãos, a gordura e os miúdos apenas continuam a ser valorizados nas culturas mais tradicionais, como o povo lapão, os inuítes e os pastores de iaques da Mongólia que conheci nas estepes. O consumidor americano médio não saberia o que fazer com essas partes do animal. Como acontece com muitos outros aspetos da nossa cultura gastronómica, perdemos a ligação às práticas e processos que os nossos bisavós, e, em muitos casos, avós, percebiam e punham em prática com regularidade.

Acredito que afastarmo‑nos do processo – ao não sabermos como foi criado e tratado o animal, alimentado e abatido – e fundamentalmente imoral e apoia um sistema que trata os animais criados para consumo de forma atroz e pouco segura.

Então, como devemos lidar com este relacionamento desajustado com os animais enquanto proteína no mundo atual como parte da nossa dieta? À semelhança do que acontece com grande parte dos alimentos, e preciso mudarmos a perceção que temos e a nossa mentalidade. Da mesma forma que restabelecemos a relação com as plantas – ao voltar a criar uma ligação com os alimentos e aprendendo sobre as tecnologias e métodos de processamento que os tornam seguros, ricos em nutrientes e biodisponíveis podemos iniciar o caminho de volta a uma abordagem mais sustentável, ética e saudável de comer mais partes do animal e menos carne. Como caçadores‑recoletores modernos, podemos encontrar plantas, semear um jardim e adquirir legumes de mercados e produtores locais. No que se refere a carne, podemos aplicar as mesmas práticas: caçar, montar armadilhas e pescar para obter animais diretamente, ou conhecer o nosso talho local ou um pastor e comprar‑lhes a carne, incluindo as fressuras.

Da mesma forma que recorremos a tecnologias como a fermentação para tornar as plantas biodisponíveis, podemos aprender ferramentas que promovam o aproveitamento da carne segundo a ideologia “do focinho à cauda” e cozinhar o animal todo, de forma não apenas mais satisfatória, mas empolgante para os nossos palatos, para nutrir e saciar o corpo, assim como a alma. Antes de dizer “nem pensar, não sou capaz de cortar uma carcaça de animal”, vou dizer‑lhe que sim, consegue, e pode fazê‑lo na bancada da cozinha, sem grande espalhafato.

Mas, antes de mais, falemos de caça. Percebo que haja pessoas que não conseguiriam matar um animal. Mesmo que o conseguissem, para que o esforço? O sistema alimentar atual tomou a decisão por elas. Quando compramos uma peca de lombo de porco embrulhada em plástico num supermercado e a grelhamos sobre carvão, isto não passa de uma transação sem rosto nem sangue. A maior parte das pessoas consideram isso uma mais‑valia do sistema alimentar moderno. Porem, a minha opinião e diferente. Acredito que afastarmo‑nos do processo – ao não sabermos como foi criado e tratado o animal, alimentado e abatido – e fundamentalmente imoral e apoia um sistema que trata os animais criados para consumo de forma atroz e pouco segura.

Retirarmo‑nos da equação, de que não queremos fazer parte, não significa que não continue a acontecer. Pelo contrário: significa que continua a acontecer sem nós, e a nossa ausência e falta de vigilância permite que decorram situações e práticas terríveis. Ao aceitar e apoiar este sistema, não investimos na vida nem na morte de um animal, que acaba morto para nos garantir alimento.

Não o digo para gerar sentimentos de culpa, nem para que se sinta irresponsável; digo‑o para encorajar a mentalidade de que é um imperativo ético associar um rosto a nossa comida e tomar a decisão consciente de eliminar a distância entre nós e os alimentos. Caçar é provavelmente a forma mais direta e acessível de o fazermos. Aprendi a caçar com o meu pai em Nova Jérsia, em pequeno, e nunca gostei do ato de matar animais, trate‑se de um esquilo, um ganso ou um veado. Mas gosto mesmo, a um nível profundo, de saber que tenho uma ligação direta a esse animal, que o matei da forma mais rápida, indolor e com o maior respeito possível, que me irei esforçar por não desperdiçar nada e que me irei certificar de que as suas partes serão partidas e processadas de modo seguro. À semelhança do meu pai, passei este conhecimento ao meu filho, Billy, e é muito gratificante não só ver como se tornou um caçador talentoso, mas também a minúcia e atenção que dedica às tarefas que se sucedem à caça e que fazem toda a diferença: a preparação do campo, a desmontagem da carcaça e a sua confeção. Enche‑me de orgulho testemunhar a consideração que tem pelo animal que matou e ver que percebe porque é tão importante aproveitar ao máximo cada uma das suas partes e aplicar esta forma de pensar na caca desde o início até ao fim.

Nunca gostei do ato de matar animais, trate‑se de um esquilo, um ganso ou um veado. Mas gosto mesmo, a um nível profundo, de saber que tenho uma ligação direta a esse animal.

Percebo que as pessoas, na sua maioria, não cresceram com um mentor com tanto conhecimento como o meu pai, que me ensinou tudo o que precisava de saber para crescer e desenvolver‑me como um caçador responsável e ponderado. Porém, com a disseminação da ideia de obter alimento de forma direta, existem cada vez mais oportunidades para aprender a caçar e a preparar o fruto da caça.

Ainda assim, se caçar não e para si, o próximo passo será encontrar um pastor ou produtor local, com quem possa estabelecer uma ligação. Informe‑se sobre o modo como os animais são criados e alimentados, como vivem.  Se não tiver um produtor perto de si, procure um talhante artesanal. Para este tipo de talhantes, o acesso a órgãos, como fígado, coração e rins, tem‑se tornado mais fácil.

Como cresci com o meu pai a ensinar‑me a caçar, pensava que sabia tudo sobre o modo de desmanchar carcaças de caça e as formas de processar os animais para conseguir alimentar a minha família. Mas a verdade e que só muito recentemente conheci a abordagem “do focinho a cauda”. Durante anos tratei da carne do animal como me ensinaram, ou seja, guardando a carne e descartando quase tudo o resto. Só muitos anos depois de o meu pai me ter ensinado a caçar, durante uma viagem a Calábria, Itália, é que consegui aprender a pôr em prática aquilo que testemunhei nas estepes da Mongólia: o compromisso de usar todo o animal.

Tudo aconteceu sob tutela do chef John Nocita, do Italian Culinary Institute, num curso de uma semana sobre charcutaria e carnes curadas, de acordo com as tradicionais praticas italianas, que dão origem a uma diversidade de alimentos deliciosos e incríveis, com recurso a tecnologias tradicionais, incluindo a fermentação, a cura e outros métodos inovadores.

Fiquei admirado por este curso não se ter iniciado numa sala de aula, mas antes numa quinta, em Casellone, onde o porco preto da Calábria é criado ao ar livre, em ambiente natural, com uma alimentação de alta qualidade, que inclui azeitonas da região. Depois de falarmos com o produtor e conhecermos a quinta, pediu‑nos que escolhêssemos dois porcos, que seriam abatidos para aquele curso. Esta experiência trouxe responsabilidade e um significado acrescido ao que estávamos a fazer.

Os porcos foram entregues no dia seguinte, sem pelo, sem entranhas e divididos ao meio. Todos os órgãos e miúdos foram entregues em sacos separados, com exceção dos intestinos, que chegaram num balde de plástico com capacidade de cerca de 20 litros. A partir daqui, o chef John falou‑nos do leque de opções de que dispúnhamos e explicou‑nos a melhor maneira de tratarmos cada parte. Assim que começámos, não parámos durante uma semana inteira. Entre histórias, lições, demonstrações e as constantes provas proporcionadas por John, preparámos partes do porco para fermentação, cura e armazenamento a longo prazo. Ali cozinhamos e comemos diversas partes, como órgãos, pele, orelhas e alguns cortes de carne.

Limpámos e preparámos os intestinos, que seriam recheados para dar origem a salsichas, quer frescas, quer fermentadas. No final do curso, tínhamos feito uma grande variedade de curas, que requeriam trabalhar com músculos inteiros, como a pancetta e o prosciutto.  Preparámos lardo, ou gordura de porco curada. Usámos os ossos para confecionar bollito, ou caldo de restos de ossos. Preparámos carnes fermentadas e curadas, incluindo salame, e, o meu preferido, nduja, uma espécie de salame picante fermentado e curado para barrar, feito a partir de todo o tipo de sobras das partes que não correspondiam aos critérios de outros produtos de carne curada – um alimento que produz zero de desperdício e é absolutamente delicioso.

Confecionámos diversos pratos que usavam tudo: cortes nobres em pratos de massa, pele de porco em braciola e todo o tipo de aparas em cabeça de xara. Seguimos a tradição, mas, quando era apropriado, inovávamos. No final daquela semana, tudo o que restava daqueles dois porcos não enchia uma tigela média. Recorrendo a tecnologias tradicionais de processamento de alimentos, transformámos aqueles animais em pratos e alimentos nutritivos, deliciosos e deslumbrantes, que apelavam a todos os nossos sentidos e com os quais havíamos criado uma estreita ligação.

Esta experiência constituiu o apogeu da abordagem “do focinho a cauda”. É claro que nem todos podemos partir de repente rumo a Itália para aprender tudo isto com um mestre. Assim sendo, por onde começar, para pôr em prática esta ética “do focinho à cauda” na sua própria cozinha e na relação que estabelece com os animais que fazem parte da sua dieta? Como em tudo, a melhor forma de começar e dar pequenos passos. Pode participar em workshops sobre a temática ou encontrá‑los online. Desenvolvi alguns destes cursos, que estão disponíveis para qualquer pessoa com acesso a um computador. Ou pode começar por comprar um frango inteiro no talho e trabalhá‑lo em casa. Assim que tiver dominado a técnica da galinha, compre uma perna de porco inteira no talho e use todas as partes. Sim, pode fazê‑lo no balcão da sua cozinha. Neste ponto da sua aprendizagem, há muito pouco sangue envolvido, uma vez que a maior parte terá sido retirada logo após a matança.

Aprenda a cozinhar os rins. Faça caldo recorrendo a ossos, patês e terrinas com os órgãos, torresmos com a pele, rillettes a partir das aparas das carnes cortadas e guarde os sucos e gordura para cozinhar todos os dias. Assim que o conseguir fazer, pode dedicar‑se ao processo de curar carne. Faca o seu próprio bacon – é tão mais fácil e económico do que pensa – e mesmo salsichas e salame.

Convide um ou dois vizinhos para ajudarem a desmanchar metade de um porco, usando cada uma das partes. Volte a estabelecer uma ligação com a sua comida, aprenda, ganhe poder, divirta‑se e crie a mudança – tudo isto ao mesmo tempo que se alimenta da comida mais nutritiva do planeta.


Este artigo é um excerto do livro “Comer Como um Humano”, edição Lua de Papel, pp. 85 a 97.

Bill Schindler é arqueólogo, estudioso de artefactos primitivos e chef de cozinha. Fundou e dirige o Eastern Shore Food Lab, que tem a missão de recuperar e preservar dietas ancestrais que promovam um sistema alimentar nutritivo, ético e sustentável. É professor de Arqueologia no University College Dublin, na Irlanda. O seu trabalho e reportagens podem ser vistos nos canais de YouTube das revistas Wired, Basic Instincts e Food Science e em publicações como The Washington Post, The Atlantic e London Times. Foi também apresentador da série The Great Human Race, no National Geographic Channel.