A 30 de maio as livrarias nacionais receberam um livro sobre a intimidade, experiência emocional resultante da proximidade face ao outro, partilha de sentimentos entre duas pessoas e maturidade construída ao longo de uma viagem. Um livro que verteu há um quarto de século da verve e experiência clínica do psiquiatra Daniel Sampaio e que, em 2023, seis edições depois, regressa ao protagonista da obra, um homem que pediu ajuda para a cura de uma pulsão violenta que o levava à violência doméstica. Com revelações, de certo modo surpreendentes, próprias da relação médico-doente, num caso de saúde mental.

A Arte da Fuga. 25 Anos Depois, uma edição da Caminho, fala de afetos positivos e negativos, de comunicação clara e paradoxal, de espaços privados e de serviços psiquiátricos públicos. A edição revista e aumentada, permite-nos regressar a estes temas, sempre atuais, e ter o privilégio de revisitar os seus protagonistas passados 25 anos.

“Achei por bem reeditar A Arte da Fuga e refletir um pouco sobre essas páginas escritas há tanto tempo. Temas como a paixão, a construção do amor, a violência conjugal e a saúde mental merecem sempre ser revisitados”, escreve o autor na apresentação que faz ao seu livro.

Daniel Sampaio escreve sobre as famílias, os casais e os jovens dos nossos dias. Dos títulos que publicou destacam-se Ninguém Morre Sozinho (uma obra sobre o suicídio adolescente), Tudo o Que Temos Cá Dentro e Lavrar o Mar.

A versão teatral do seu livro Vagabundos de Nós foi levada à cena em 2004 no Teatro Maria Matos. Em 2008 publicou A Razão dos Avós, um livro sobre as várias gerações da família e sobre a importância dos avós no século XXI.

Em 2021 publicou Covid 19. Relato de Um Sobrevivente, que retrata, sob a forma de diário, a sua experiência de doente de Covid grave.

A propósito da reedição d´A Arte da Fuga. 25 Anos Depois publicamos um excerto.

26 de março de 1999

Recebi um telefonema da Caminho. O livro está quase pronto e ainda não entreguei o prefácio. Pode ser que o publiquem tal como está e ficarei sem obrigação de o apresentar agora. Como falar de um livro projetado para descrever um ano de atividade e que termina com uma só narrativa? A verdade é que 1998 foi o ano do mágico.

A Arte da Fuga é um livro sobre a intimidade, experiência emocional só possível com proximidade face a outro, partilha de sentimentos entre duas pessoas e maturidade construída ao longo de uma viagem. Nesta obra fala‑se de afetos positivos e negativos, de comunicação clara e paradoxal, de espaços privados e de serviços psiquiátricos públicos.

A intimidade é essencial para a vida. É o que conseguimos quando somos capazes de estabelecer uma relação próxima com alguém, permitindo ultrapassar o isolamento que nos inquietava. Uma experiência de intimidade põe‑nos em profundo contacto com o outro, partilhando vivências em várias áreas ao mesmo tempo, quase sempre com a esperança de que essa mútua construção do real não acabe depressa e nos devolva a solidão de que fugimos.

Na “Fuga” deste livro a intimidade é procurada, atingida e perdida várias vezes. Como na relação terapêutica em psicoterapia. Como preciso conseguir com os doentes que estão hoje à minha espera.

É sexta‑feira e consigo chegar muito cedo à Consulta Externa do hospital. Dezenas de doentes aguardam a sua vez em cadeiras de madeira viradas para a porta. Alguns deles olham para uma televisão colocada num ponto alto ao cimo da porta, veem uma imagem desfocada e ouvem ruídos incaracterísticos. O arquivo abriu há pouco, ainda consigo descobrir o resto da grade que o protege, a azáfama da responsável mostra que vai ser um dia difícil. Duas doentes comentam a minha entrada e um rapaz olheirento procura alguma coisa para ler num monte de revistas esventradas, a ladear o matagal de cadeiras. Cheira a urina e a perfume de má qualidade, alguém protesta e vai fechar a porta da casa de banho dos homens. Organiza‑se uma fila de doentes para entregar o cartão e aguardar a chegada dos médicos.

Caminho para o meu gabinete por um corredor ainda obscurecido. A empregada Isabel arruma os papéis e repete em voz ciciada o que falta e deve ir buscar. Os enfermeiros mudam de roupa num gabinete minúsculo e um deles começa por ir buscar café. Tropeço em mesas liliputianas ao longo do corredor, vejo ao fundo a fria Sala de Aula, paredes com dezenas de avisos e cartazes a comunicar eventos científicos que já tiveram lugar, um fragmento do Diário da República lembra inutilmente que é proibido fumar em estabelecimentos de Saúde. No chão há vasos com flores secas e plantas artificiais. Vou à casa de banho, um cubículo minúsculo emparedado junto ao vestiário dos enfermeiros, separado com uma parede incompleta do sítio onde tomamos café. Por cima da sanita está escrito “Aos utentes que utilizem estes sanitários pede‑se o favor de não deitarem papéis na sanita. Há um recipiente para o efeito”. Uma mão cuidadosa, talvez obsessiva, riscou com tinta de outra cor as palavras “que utilizem”.

a arte da fuga
a arte da fuga créditos: Editorial Caminho

Sento‑me a uma secretária enorme com duas gavetas que não abrem, outras duas estão atulhados de folhetos de propaganda médica, inefável esconderijo do colega aborrecido pela visita de um delegado. Um catre jaz junto à parede, numa posição que torna impossível observar alguém deitado (o que não é necessário, porque a maioria dos psiquiatras não toca nos doentes), três cadeiras diferentes estão atiradas no meio da sala, um boião de iogurte, queimado por três cigarros, está depositado no fundo de um cesto de papéis forrado por um saco de lixo preto. O resto do cenário é composto por uma velha cadeira de madeira, onde me sento até ficar com dores nas costas, uma reprodução que o meu velho professor de Desenho do Liceu Pedro Nunes designaria por “solene borrada”, um Simpósium Terapêutico desatualizado e fichas de receitas e de requisições, a maior parte com rara utilização.

Vejo doentes sem parar até às 11 horas, altura em que alguém grita “coffee‑break!” e me apresso a passar mais uma receita. Quando chego ao cubículo já a Dulce, num gesto decidido, tira e distribui cafés com um sorriso agradável.

Estamos num bocado de gabinete, iniciado por um corredor estreitíssimo que desemboca numa parte um pouco mais larga, atravessada por uma mesa de tampo de fórmica rachado, totalmente ocupado por várias chávenas de café.

Os utilizadores amontoam‑se no espaço exíguo, uma médica fumadora procura um cinzeiro inexistente e um psiquiatra de barba guarda para mim um lugar ao fundo. Fechamo‑nos lá dentro durante alguns minutos, alheios ao barulho do autoclismo adjacente e aos delegados que nos esperam no corredor. Bebemos café e comemos bolachas que uma enfermeira distribui generosamente, alguém comenta o último filme ou as novidades do serviço, percorro com o olhar a máquina de café, o velho frigorífico, o armário dos medicamentos cheio de latas ferrugentas de bolachas, uma garrafa de plástico com um líquido rosa parecido a groselha, um resto de bolo de natas a apodrecer por ali.

Volto para o meu gabinete de consulta e fico a pensar no livro. Decido mesmo não escrever um prefácio. A Editorial Caminho não levará a mal. Como contar que o ano de 1998 passou num instante? Como mostrar ao leitor que este é um livro sobre os limites da psiquiatria? Como fazer acreditar que não estamos perante uma novela, visto que tudo isto se passou o ano passado?

A “Fuga” origina, por vezes, jogos de intimidade em que os atores julgam ganhar ou perder. Como a relação terapêutica na patologia da afetividade, a verdade é que na maioria desses jogos interativos não há vencedores nem vencidos. A psicoterapia é um processo de intimidade que requer muito tempo e que exige uma partilha permanente. Como o amor. Como o ano de 1998 e este livro me ensinaram.

Daniel Sampaio