O Poder das Flores
“Trabalhei sempre no meu jardim e com amor. Aquilo de que mais preciso são as flores, sempre”.
Claude Monet (1840–1926)
Há alturas em que o nosso jardim pura e simplesmente me faz deter no caminho. Lembro‑me de uma vez ter sido forçada a parar por um delfínio. Foi numa altura em que estava com muito que fazer no trabalho e em casa. Também tinha tarefas a acumular‑se no jardim: plantar a próxima fornada de sementes, desbastar os vegetais para as saladas e as ervas e capinar os canteiros. Nessa manhã, porém, estava focada em executar todas as tarefas antes de as nossas visitas de fim de semana chegarem, sabendo que em breve haveria imensa gente em casa para dar de comer. Saí de casa e dirigi‑me logo para a geleira que está na nossa casa de arrumos, passando pelos delfínios que bordejavam o caminho. Quando cheguei ao último, o seu espigão azul saudou‑me com entusiasmo, e uma das suas flores iridescentes captou a minha atenção. Era uma flor que estava no espigão mais alto — com o mais fundo das variedades de azuis profundos —, e a luz brilhava através dele. A cor intensa comanda a nossa atenção. Diz: “Olha!”, “Olha melhor!”. E foi o que fiz. Pus‑me a fitar o centro do olho daquela flor azul.
Com os outros espigões da flor a bambolear devagar à minha volta, perdi‑me, e naquele estado fui acompanhada pelo canto de um pássaro negro empoleirado na vedação. Os meus pensamentos, que tinham andado a mil e dispersos, acalmaram. Uma sensação de espaço dentro da mente expandiu‑se e mudou para a vedação e para o canto da cotovia que me sobrevoava bem alto. Os pássaros sempre ali estiveram. Como estivera eu tão absorta, tão surda ao seu canto?
Foi uma mera pausa numa manhã atarefada, porém, mudou o dia inteiro, revertendo a minha perspetiva da frenética escalada que se avolumava dentro de mim. E, mais do que isso, é um momento que regressa a mim, em parte através do assombro que produz, em parte graças ao aviso que emite. Um lembrete para prestar atenção à beleza que me rodeia.
Immanuel Kant, filósofo do século XVIII, descreveu o modo como gostamos de flores, “sem restrições e por vontade própria”. Kant usava as flores para ilustrar a sua conceção de beleza “irrestrita”, que é uma forma de beleza à qual respondemos, seja qual for o seu valor utilitário ou cultural. É certo que percecionamos a beleza quando a vemos. Reconhecemo‑la como se algo em nós tivesse estado simplesmente à espera dela. A beleza capta a nossa atenção e satura a nossa consciência. De certo modo, altera‑se o limite entre o nosso eu e o mundo, e sentimo‑nos mais vivos no momento da floração que ela nos proporciona. Embora a experiência possa ser fugaz, a beleza deixa um rasto na mente que sobrevive à sua passagem.
As flores apresentaram a Claude Monet um irresistível mundo de cor, silêncio e harmonia: “Talvez tivesse mesmo de me tornar um pintor de flores”, escreveu. A primeira vez que cultivou os seus nenúfares, não tinha ideia nenhuma de os pintar. Na sua ótica, jardinar e pintar faziam parte do mesmo esforço artístico. Durante a Primeira Guerra Mundial, permaneceu no seu jardim, em Giverny, recusando‑se a separar‑se das suas flores, mesmo quando as tropas inimigas se aproximavam.
Sigmund Freud também revelou sentir um grande gosto por flores. Em menino, deambulava pelas matas próximo de Viena, apanhando espécimes raros de plantas e flores. Segundo Ernest Jones, o seu biógrafo, Freud desenvolveu uma “invulgar familiaridade com flores”, tornando‑se uma espécie de botânico amador.
A beleza natural alimentava a energia criativa de Freud, e, na vida adulta, fugia com regularidade para as montanhas para caminhar e escrever. Nas férias grandes de verão que passava nos Alpes, tinha o cuidado de transmitir aos filhos o seu amor pela natureza, ensinando‑os a reconhecer as flores silvestres, as bagas e os cogumelos. Freud estava fascinado com a influência que a beleza consegue ter sobre nós: “O desfrutar da beleza”, escreveu, “implica uma qualidade de sentimento peculiar e suavemente inebriante”, e, embora a beleza não nos possa proteger do sofrimento, pode, nas suas palavras, “compensá‑lo bastante”.
Como consideramos a sensação de inebriamento descrita por Freud? Qual é o segredo para a beleza ter tanta influência sobre nós? A intuição sugere que a nossa resposta à beleza pode estar ligada à nossa capacidade de vivenciar o amor, e trabalhos de pesquisa revelam ser, de facto, esse o caso. Semir Zeki, professor de Neuroestética da University College de Londres, acredita que a nossa necessidade de beleza está muito arreigada na nossa configuração biológica. O trabalho por ele realizado mostrou que, seja qual for a origem ou os estímulos sensoriais implicados na sua perceção, a experiência da beleza é consistentemente acompanhada de um único padrão de ativação neuronal visível nas imagens de ressonância magnética, tomografia computorizada ou outros exames imagéticos feitos ao cérebro.
As primeiras experiências de Zeki incidiram em pessoas que expôs à música e a trabalhos artísticos, entre eles um quadro de Monet. Em seguida, decidiu alargar o seu campo de estudo, incluindo uma forma concetual de beleza. Apresentou “lindas” equações matemáticas e incluiu um grupo de matemáticos na amostra. Ofereceu‑se aos participantes uma variedade de imagens visuais, músicas e equações a que tinham de reagir. Nas experiências em que encontraram beleza, todos registaram o mesmo padrão de atividade no interior do córtex órbito‑frontal‑medial, do córtex cingulado anterior e do núcleo caudado — regiões do cérebro incluídas nos percursos do prazer e da recompensa, que também estão associadas ao amor romântico. Estes percursos desempenham igualmente um papel na integração dos nossos pensamentos, sentimentos e motivações. Estão associados à dopamina, à serotonina e aos sistemas opioides endógenos e diminuem as nossas respostas ao medo e ao stress. Por esta razão, a beleza acalma‑nos e revitaliza‑nos ao mesmo tempo.
A resposta estética humana inclui uma afinidade por padrões nos quais a regularidade e a ordem se combinam com a variação e a repetição. É possível que as geometrias simples que encontramos na natureza revelem a sua concentração e atração máximas na beleza da forma de uma flor. Por exemplo, é comum as flores silvestres terem cinco pétalas dispostas numa simetria pentagonal.
No entanto, seja ela elaborada ou simples, a estrutura de qualquer flor exibe proporção, equilíbrio e harmonia, e nós respondemos a isso da mesma forma que respondemos ao ritmo e à harmonia de uma música. Esta reação pode estar ligada às descobertas feitas por Zeki sobre a beleza matemática, uma vez que, na evolução da cultura humana, a padronização botânica deve ter desempenhado seguramente um papel importante no despertar da mente humana para as possibilidades da beleza abstrata e a forma matemática.
As plantas com flor surgiram pela primeira vez no planeta após a era dos dinossauros. Agarradas à terra como estavam, as plantas precisavam de se envolver com outras que as ajudassem a reproduzir‑se. A enorme diversidade de cores, padrões e fragrâncias que revelavam evoluiu, não para nos atrair ou interessar, mas para atrair as criaturas do ar.
As flores são especialistas na sinalização biológica e na atração de insetos, pássaros e morcegos com promessas de doces néctares com que podem alimentar‑se.
O odor transmite um sinal de que uma flor está pronta para ser fertilizada, sendo particularmente importante durante a noite polinizadores como as traças noturnas serem guiados no escuro pelos rastos das fragrâncias que seguem.
Alguma desta comunicação olfativa é verdadeira, outra tem como propósito a sedução — odores que atuam como feromonas, desencadeando um comportamento de acasalamento —, e outra ainda é pura deceção — o doce cheiro do néctar quando ele não existe.
Em grande medida, porém, a relação inseto‑flor baseia‑se na reciprocidade. O inseto aborda a “abertura” da flor e entra na câmara floral; a flor obtém o auxílio de que necessita para a fertilização, e o inseto, por sua vez, recolhe o doce néctar de que precisa.
Esta relação em sentido duplo emergiu graças a um processo de evolução conjunta, existindo benefícios para os dois lados. De vez em quando, esta disposição assemelha‑se a direitos exclusivos: uma flor escolhe um determinado tipo de inseto que se mantém fiel a essa espécie de flor. O melhor exemplo de evolução conjunta entre a flor e o inseto é o da flor em forma de estrela da orquídea de Darwin, Angraecum sesquipedale. Em 1862, Charles Darwin recebeu de Madagáscar um espécime desta flor. Nesse tempo, desconhecia‑se a existência de insetos com uma probóscide suficientemente longa para percorrer os 30 centímetros de comprimento do tubo que guarda o néctar por forma a polinizar esta planta. Do que já sabia sobre a evolução conjunta, Darwin concluiu que tinha de existir um inseto desses, ainda que à época fosse desconhecido, capaz de ter esse longo alcance. Na altura, a sua ideia foi acolhida com ceticismo, porém, 40 anos mais tarde, foi descoberta a traça-esfinge, com o seu prolongamento bucal semelhante a uma língua comprida.
No entanto, mais difícil ainda de explicar na teoria da evolução conjunta é a relação existente entre insetos e flores que praticam o mimetismo reprodutivo. Tomemos o exemplo da orquídea‑abelha, cujas marcas impressionantes mimetizam de tal modo a fêmea desse inseto que consegue atrair os zangões a pousarem nela. Darwin acreditava que alguma vantagem oculta, como uma fonte de néctar cuidadosamente segregada, acabaria por vir à luz e revelaria a razão pela qual aquelas abelhas se mostravam dispostas a despender tanta energia a tentar acasalar com uma flor, mas isso acabou por não acontecer. Em vez disso, a explicação está numa forma de rastilho neuronal.
Até o sistema nervoso dos seres mais pequenos depende da dopamina ou de moléculas estreitamente ligadas a ela para iniciarem comportamentos de busca. A via da recompensa humana pode ser uma versão mais complexa daquela que encontramos nas abelhas, mas, de um modo idêntico, a promessa pode ter mais peso do que o resultado. As recompensas alegadas pelas flores tornam as abelhas mais enérgicas no forrageio graças à ação da dopamina, e experiências levadas a cabo com abelhões descobriram que, quando este neurotransmissor é bloqueado, as abelhas deixam de andar à procura de néctar. Este efeito ajuda a explicar a razão pela qual os insetos podem tornar‑se leais a flores que não produzam néctar.
Existem flores, por exemplo, que atraem moscas‑macho graças às feromonas que têm no seu odor, bem como a marcas nas pétalas que se assemelham a uma mosca‑fêmea. Os instintos de acasalamento das moscas são captados com tanta eficácia pelo mimetismo reprodutivo que elas ejaculam na flor, ao mesmo tempo que se enchem de pólen. É um tipo de “pornografia” entomológica em ação. Os biólogos chamam a um fenómeno como este estímulo supernormal; é “super”, porque a atração para ela é mais forte do que a realidade. Tais estímulos implicam o exagero de indicações ambientais‑chave, como padrões e marcas, desviando, desse modo, um instinto da função para a qual ele devia ser dirigido.
Contudo, à semelhança dos humanos, nem todos os insetos são igualmente suscetíveis. Existem determinados tipos de abelhas que evitam os perigos, voltando em grande medida para flores que disponibilizam pequenas mas autênticas quantidades de néctar. O néctar não é a única substância que os insetos podem recolher; há casos em que é o próprio odor da flor. O macho das abelhas Euglossini, que vive nas chuvosas florestas tropicais, é um inseto perfumista, que recolhe amostras de fragrância de cada flor que visita, misturando‑as e armazenando‑as no seu casulo de perfume na extremidade traseira, criando deste modo o seu próprio odor personalizado. Em conjunto, estas abelhas polinizam mais de 700 tipos diferentes de orquídeas que crescem nas florestas tropicais. Acredita‑se que a complexidade dos odores naturais no perfume individual das abelhas revela a extensão das suas viagens e as suas competências de forrageio. Seja como for, os odores que estas abelhas recolhem são sedutores e ajudam‑nas a encontrar um parceiro sexual.
Muito à semelhança das abelhas, também nós sentimos satisfação diante das flores. A grandeza do mercado florista comprova‑o. As flores falam ao nosso inconsciente de uma forma difícil de sondar, e nós respondemos como se o fizéssemos a um convite que dissesse: «aproxima‑te, cheira‑me, pega em mim, leva‑me contigo…” Algumas sobressaem pela pureza, outras, pela simplicidade, enquanto outras ainda são mais sedutoras — até eróticas — na sua forma. As flores despertam‑nos para a beleza, e, à semelhança das abelhas, também nós podemos ser leais: a maioria das pessoas tem as suas preferidas.
Freud, por exemplo, tinha um apreço especial por orquídeas. Todos os anos, no dia do seu aniversário, colegas, amigos e doentes lhe ofereciam presentes florais. Tornou‑se um acontecimento de tal envergadura que as floristas vienenses repunham os seus stocks com antecedência. Segundo um destes seus velhos amigos, Hanns Sachs, no dia do 75.º aniversário de Freud, “orquídeas de todas as cores e feitios chegaram numa carroça”. Contudo, a sua orquídea predileta não se encontrava à venda nas floristas. Era a Nigritell nigra, uma orquídea alpina com inflorescências escuras de um vermelho‑arroxeado e uma deliciosa e apimentada fragrância a chocolate e baunilha. Segundo Martin Freud, esta pequena flor recordava‑lhe os pais numa altura em que, pouco depois do seu casamento, saíram de casa para ir andar nas montanhas. Avistaram um grupo destas flores raras, e Freud subira uma ladeira íngreme e coberta de erva para apanhar um ramo e o oferecer a Martha, a sua noiva recente.
A poetisa norte‑americana Hilda Doolittle (que ficou conhecida como “H.D.”) era seguida por Freud, no princípio da década de 1930. Um dia, levou‑lhe um presente de narcisos, e o seu odor intenso teve um impacto tão grande nele que ela sentiu que, sem querer, como disse, “irrompeu pelo inconsciente dele”.
Como é sabido, nada abre o inconsciente com maior eficácia do que o sentido do olfato. A fragrância doce, enjoativa diriam alguns, do narciso era, disse‑lhe Freud, “quase o meu odor preferido”.
O “narciso da poetisa”, como ele o descreveu, crescia livremente nos prados húmidos que havia em torno da casa, em Ausee, próximo de Salzburgo, que ele e Martha tinham arrendado para a família passar férias quando os filhos eram pequenos.
Para Freud, aquele sítio era “um paraíso”. Havia apenas, continuou ele a dizer a H.D., uma flor de que gostava mais do que o narciso — “a gardénia, com uma fragrância incomparável”, que o deixava sempre “com a melhor das disposições”. Ele associava‑a a um tempo, 20 anos antes, em que estava em Roma e conseguia comprar uma gardénia todos os dias para pôr na lapela do seu jaquetão.
Memórias e associações desempenham um papel importante na formação das nossas ligações às flores, mas sem dúvida que alguma química também está em causa. Os constituintes químicos de diversos odores florais elevam a nossa boa‑disposição e influenciam o modo de alerta ou de descontração em que nos sentimos.
Em relação à lavanda, que há muito se sabe ter um efeito calmante em nós, há pouco tempo ficou demonstrado que aumenta os nossos níveis de serotonina. Em contrapartida, o cheiro do rosmaninho é estimulante e aumenta os níveis da dopamina e da acetilcolina.
A flor de laranjeira é instigadora de felicidade, graças à combinação dos efeitos da serotonina e da dopamina. O cheiro a rosas, talvez o odor que mais fortemente associamos ao amor, é bom na redução dos níveis da hormona do stress, a adrenalina, que, segundo um estudo, chega aos 30 por cento. Além disso, graças à ação do composto feniletilamina, a fragrância a rosas reduz a queda dos nossos opioides endógenos criando uma sensação de calma prolongada.
Como começou o apreço dos seres humanos pelas flores? Steven Pinker, o bem‑conhecido psicólogo evolucionista sugeriu que os seres humanos começaram a sentir‑se atraídos pelas flores, porque elas lhes davam indicações sobre futuras reservas de comida.
Os caçadores‑recoletores que se interessaram pelas flores e a sua localização podiam voltar mais tarde para apanhar nozes e frutas que lhes dariam uma margem de sobrevivência. As flores também podem significar um ganho imediato, uma vez que, onde há flores, é provável que haja abelhas, e, onde há abelhas é muito possível que haja mel. Os nossos antepassados remotos eram em tudo tão suscetíveis às delícias do açúcar como nós ainda somos.
As flores mais antigas encontradas num aglomerado de habitações de caçadores‑recoletores datam de há 23 000 anos, no sítio de Ohalo II, na costa do mar da Galileia. Uma acumulação de detritos numa das cabanas indica que quem quer que vivesse ali tinha uma grande quantidade de flores Senecio glaucus. Endémicas nesta parte do mundo, elas lembram pequenos crisântemos amarelos.
Não lhes é conhecido nenhum uso prático culinário, medicinal ou outro, o que suscita a possibilidade de terem sido levados para o aglomerado para a preparação de um ritual ou de um acontecimento de particular importância.
A sepultura mais antiga conhecida que continha flores foi encontrada num cemitério natufiano, com 14 000 anos, localizado em Israel. Elas devem ter sido apanhadas num terreno bravio, mas crê‑se que os humanos tenham começado a cultivar flores surpreendentemente cedo — há cerca de 5000 anos. Jeannette Haviland‑Jones, professora de Psicologia, e Terry McGuire, professor de Genética, ambos da Universidade de Rutgers, em Nova Jérsia, são da opinião de que não devíamos subestimar o papel evolucionista do prazer na motivação dos nossos antepassados remotos para o fazer. Muitas das flores que começaram por ser cultivadas são as que aparecem quando o solo é remexido. Haviland‑Jones e McGuire conjeturam que, quando as flores cresceram por geração espontânea em terrenos desbravados para a agricultura, algumas podem ter sido deixadas crescer por as pessoas gostarem delas. Com o tempo, os seres humanos começaram a agir como agentes na dispersão das sementes de flores, e terão escolhido as mais atraentes e as que tinham maior fragrância. O nicho de flores cultivadas no ecossistema é, deste modo, um nicho emocional humano.
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