Há muito que a angústia dos "fins do mundo", da finitude enquanto corpo individual e espécie, amedronta os meandros do nosso cérebro mais primitivo. Cometas e eclipses, terramotos, secas e dilúvios, há todo um corpo de apocalipses que conjuga a sua ameaça a crendices e superstições populares, falsos profetas e seitas. Um abismo para o fim dos tempos que encontrou novo veículo, a partir do século XIX, na imprensa nacional e estrangeira. Rádio e cinema viriam mais tarde a exponenciar estes medos coletivos de finitude.

Joaquim Fernandes, historiador e cofundador do Centro Transdisciplinar de Estudos de Consciência, coligiu em livro um percurso de mais de dois mil anos de “fins do mundo” nacionais. “Apocalipses, os vários fins do mundo da história de Portugal” (edição Contraponto), dá-nos mote para a conversa com o homem que escreveu a primeira tese sobre a temática extraterrestre no nosso país. Troca de palavras que viaja pelas Invasões Napoleónicas, o Cometa de D. Sebastião, combates de asteroides sobre a capital, auroras boreais, invasões alienígenas e a peste na cidade do Porto do século XIX onde encontramos similitudes com o momento presente. Entre o drama e a comédia, revivemos mais de 20 séculos de apocalipses.

A abrir o seu livro cita o escritor, mestre do terror, H.P. Lovecraft ao referir-se ao medo do desconhecido como o mais antigo de todos os medos. Podemos afirmar que o medo nos paralisa e, em simultâneo, é nosso aliado para anteciparmos e superarmos adversidades?

Exatamente. É um paradoxo curiosíssimo. Pegando nessa citação, logo de imediato nos conduz ao que acaba de afirmar. Se o medo nos inibe, também nos incita a desafiar e superar as dificuldades e desconhecimento. Neste momento, estamos perante uma Pandemia e que nos expõe a essa reação coletiva e que, em tempos recentes, nos levou ao confinamento quase automático. O mesmo medo que, na hora da descoberta e superação, nos faz abrir novas fronteiras em termos de ciência, de medicina, enfim o que se relaciona com o progresso da Humanidade. O mesmo se passa na caminhada para Marte e outros planetas que no futuro, quem sabe, albergarão o Homo sapiens ou os seus sucedâneos. Então, já não apenas como Homo sapiens, mas algo que integrará inteligência artificial.

Cometas, terramotos e invasões extraterrestres. Histórias do “fim do mundo” contadas em português
Reconstituição do grande cometa de 1843 numa pintura feita na Tasmânia, por Mary Morton Allport. créditos: https://en.wikipedia.org/wiki/Great_Comet_of_1843

O professor Miguel Real escreve no prefácio ao seu novo livro que nas suas obras descobrimos uma espécie do “retorno do recalcado”. É uma forma de exorcizar os medos coletivos?

É uma expressão muito curiosa, dado os temas que tenho cultivado em termos históricos. São temas que, infelizmente, na nossa historiografia mais institucional e conservadora, não são vistos com tanta consideração como os temas de ordem social, económica, política, porque estão relacionados com o nosso inconsciente e com aquilo que nos move há milénios. O povo português é feito de argamassas de outros povos e culturas muito mais antigas e que foram evoluindo neste espaço geográfico que hoje é Portugal. De facto, são sedimentos muito antigos que têm a ver com fórmulas muito ligadas à magia, ao inconsciente, ao sobrenatural e que não foram exorcizadas em função do nosso desenvolvimento social e científico.

Podemos ver estas expressões do medo como fragilidade?

Sim. Através dos exemplos que dou no livro, através de mais de dois mil anos de história, desde o século IX a.C., até à presente crise, todos esses marcos refletem essa reação intrínseca, aquilo que se pode designar como reação do nosso cérebro primitivo. Hoje, em termos neurológicos, admitindo que temos três cérebros, o último adquirido, o neocórtex, decorre do progresso. Contudo, quando se trata de reações que nos deixam em guarda, em luta pela sobrevivência, prepondera o cérebro instintivo e primitivo. Algo que se manifesta em todos os “fins do mundo” que trago ao meu livro, obviamente não concretizados [risos].

Cometas, terramotos e invasões extraterrestres. Histórias do “fim do mundo” contadas em português
Professor Joaquim Fernandes. créditos: Edições Contraponto

Consegue historicamente situar este medo coletivo do fim? É intrínseco à nossa tomada de consciência da finitude?

A ideia do fim, da nossa finitude face à eternidade tem, sobretudo, uma marca de modelação por parte dos credos religiosos. Todos eles nos indicam que há um percurso que cumprimos do nascimento à morte, depois, eventualmente, a promessa de um renascimento, através de um prémio ou de um castigo, seja através de um céu ou deum inferno, mediado por um purgatório. Essa ideia é marcada pelas religiões e ideologias religiosas. O próprio catolicismo e cristianismo, em si, têm isto marcado ao longo de centenas de gerações que nos antecederam. Julgo que é algo que estará presente junto de gerações futuras. Só será eventualmente alterado quando houver um sobressalto, uma alteração genética e de consciência muito evidente, introduzindo alterações de fundo na nossa constituição orgânica, como há pouco referi. Mas será num futuro distante.

O apocalipse pode ser encarado como a forma extrema de medo?

Sim, claramente, porque sugere o fim do tempo, da vida, de tudo, o corte final de fórmulas de vida que subitamente são estancadas. O apocalipse, no seu étimo grego aponta-nos para os fins dos tempos. Termo que também nos remete para referências bíblicas, nomeadamente o Apocalipse de João.

A partir do século XIX, a nossa imprensa diária é muito rica e atinge setores alfabetizados da sociedade. Daí, o fator exponencial da divulgação de mensagens, pseudoprofecias

Neste último ano vivemos um medo face ao novo vírus que, não sendo um temor desconhecido para a humanidade, é singular nos nossos tempos de vida. Num tempo racional como o que vivemos ainda há campo para temermos o fim do mundo?

Sim, aliás recriamos um medo marcado entre o drama, a tragédia e a própria festa, como é patente no confinamento e desconfinamento. No passado, vimos isso, por exemplo, com a Peste Bubónica do Porto em 1899. Recordemos a contestação à cerca sanitária a que o Porto foi sujeito pela via militar, a relação no “fio da navalha” entre a economia e a saúde que hoje tão bem compreendemos. O cerco asfixiava a própria vida de uma cidade exportadora. Basta que nos lembremos do vinho do Porto. Isto face à necessidade de controlar o vírus.

Na época, há também a contestação das mulheres que iam ser inoculadas com o soro antipestífero, resultado de um trabalha em colaboração com o Instituto Pasteur, em Paris. Algo que podemos ver como um movimento antivacina. Mesmo nos comportamentos, recordemo-nos das palavras dos clérigos que caracterizavam a vacina como algo demoníaco. Há, aí, uma vertente supersticiosa do ponto de vista religioso.

Cometas, terramotos e invasões extraterrestres. Histórias do “fim do mundo” contadas em português
Desinfestação de casas pelos bombeiros no Porto durante a epidemia de peste que assolou a cidade. créditos: In Renato Roque, ob. cit. Documento Biblioteca Pública Municipal do Porto

Cometas, eclipses, auroras boreais, conjunções planetárias, os apocalipses nacionais parecem estar muito relacionados com a dicotomia Céu/Terra.

Sim, alguns deles anunciados no estrangeiro e, depois, importados pela imprensa. A partir do século XIX, a nossa imprensa diária é muito rica e atinge setores alfabetizados da sociedade. Daí, o fator exponencial da divulgação dessas mensagens, pseudoprofecias, algumas pela voz de astrónomos e líderes religiosos, com a matriz evangélica norte-americana, como os adventistas do sétimo dia, os mórmons, mais tarde originando três grandes confissões evangélicas.

O grande eclipse do sol no reinado de D. Sancho I, em 1199, levou as pessoas ao terror, fugindo para as igrejas, doando os seus bens aos mosteiros.

Refere no seu livro um interessante episódio com o cometa de D. Sebastião em 1577. Quer partilhar connosco?

O cometa anunciava que o rei D. Sebastião devia de acometer, ou seja, ir para a guerra, porque tinha uma vitória assegurada. Foi o que se viu, com todo o trajeto histórico que Portugal viveu enquanto nação independente a partir dessa infeliz decisão do nosso mais jovem monarca.

Aliás, no capítulo das ameaças externas, um dos fenómenos mais temidos, associados aos “fins do mundo”, eram os eclipses do sol. Temos o grande eclipse do sol no reinado de D. Sancho I, em 1199, que levou as pessoas ao terror, fugindo para as igrejas, doando os seus bens aos mosteiros e aos padres. Houve nisto uma consequência económica, com a transferência de património para as mãos das ordens religiosas. As pessoas queriam assegurar a sua sobrevivência no Céu.

Mais tarde, no século XIX, as décadas de 1800, 1840 e 1870 foram ricas no que respeita a cometas. Por exemplo, os combates entre cometas sobre a capital colheram a atenção do astrónomo Filipe Folque. Aqui temos o exemplo de um matemático, estimado do ponto de vista científico, que não resistiu a prognosticar um combate de cometas sobre o céu da capital.

Cometas, terramotos e invasões extraterrestres. Histórias do “fim do mundo” contadas em português
Edições Contraponto

Falámos dos apocalipses originados em fenómenos externos, mas também os temos internos. Quer especificar?

A forma mais assustadora de apocalipses internos são os sismos, como bem vimos em 1755 com o Terramoto de Lisboa que arrebatou milhares de vidas no nosso país.

Tal como as pestes que ceifavam milhares de vidas.

A questão das pestes é marcante. Repare-se no episódio do Cerco de Lisboa, no século XIV, pelas tropas de D. João I, de Castela. Cerco cujo levantamento ocorreu com as tropas sitiantes contaminadas pela peste, enquanto os sitiados, os lisboetas, foram poupados. Isso levou a que o nosso rei e a corte se sentissem protegidos pelo Céu. Obviamente, esqueceram-se de que o opositor também era católico [risos].

Tivemos, inclusivamente, no século XVII, a visão apocalíptica da segunda vinda de Cristo como era referida. O ano de 1666 não foi alheio a estas manifestações?

Sim, trata-se do ano associado ao número da Besta [666], uma marca muito impressiva do ponto de vista da literatura bíblica apologética, com os fins dos tempos. Essa marca do século XVII é muito própria do período do Barroco, época de alta religiosidade que vive muito do terror. Há toda uma prática religiosa muito marcada pela relação do pensamento mais progressivo com as reações da própria Inquisição, os processos de autos de fé que corriam perante os olhos da população, por exemplo no Terreiro do Paço, em Lisboa.

A forma mais assustadora de apocalipses internos são os sismos, como bem vimos em 1755 com o Terramoto de Lisboa.

Podemos dizer que criámos um corpo de apocalipses nacionais? No seu livro fala-nos dos “universos fechados”, por norma, rurais e avessos à mudança, nomeadamente à industrialização. Foram promotores de mensagens apocalípticas?

Sim, mensagens muito associadas aos movimentos do interior rural português. Por exemplo, o episódio de Mondim de Bastos, no século XVIII, com o grupo que se forma para anunciar o dilúvio de areia. Mas também outros movimentos associados à revolta de Maria de Fonte, anunciando que o mundo ia acabar. É claro que surge aí o oportunismo. Vemos pseudo cartas escritas por Jesus Cristo a anunciar os “fins do mundo”, mas também vigaristas que procuravam tirar dividendos de senhoras ricas. Há, de facto, uma grande variedade de cenários.

Cometas, terramotos e invasões extraterrestres. Histórias do “fim do mundo” contadas em português
Título do jornal República, de 16 de novembro 1919, sobre a profecia de Alberto Porta. créditos: Apocalipses, os vários fins do mundo da história de Portugal

O professor descreve-o como o “maior evento de medo coletivo jamais sentido pela população portuguesa”. Refere-se ao Cometa Halley, no início do século XX. Porquê este temor?

Porque a imprensa difundiu essa perspetiva ao longo de muitos meses. O nosso destino estava traçado, pois a cauda do cometa iria atravessar a Terra. Os gases venenosos contaminariam a atmosfera, aniquilando a população. Um episódio em torno da comédia e da tragédia, com a invenção dos medicamentos para proteger dos gases do cometa. As farmácias tiraram grandes dividendos [risos]. O próprio teatro de revista inventou a peça “No Cometa”, mas também esplanadas com música para os comensais se divertirem com a chegada do cometa. Subjacente está a ideia de desconfinamento total dentro do lema latino carpe diem [goza o teu dia].

Essa imagem de festa associada à tragédia também a encontramos na aurora boreal dos anos de 1930?

Sim, a famosa aurora boreal em 1938 que, de certo modo, ficou ligada à mensagem de Fátima pois a Irmã Lúcia tinha previsto um sinal do céu que anunciaria a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Civil de Espanha. A aurora boreal é vivida nesses dois termos contraditórios, entre a festa e o drama. Neste caso, com as mulheres nas igrejas a confessarem os seus pecados e os homens nas tabernas a conviverem com o deus Baco [risos]. No fundo, são imagens que retemos na crise que vivemos, com comportamentos paradoxais, quando vemos ajuntamentos, sem distanciamento físico. Por outro lado, o medo, com as pessoas resguardadas.

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Reconstituição da aurora boreal, vista de Cambridge, em 24 de outubro 1847. créditos: In Institute of Astronomy Library, University of Cambridge

As Invasões Francesas em Portugal também foram encaradas como um tempo final. Quer recordar-nos? 

Uma vez mais, temos o desconhecido como inimigo poderoso. O próprio exército napoleónico personificava esse desconhecido real que punha em causa a nossa sobrevivência, pois acreditava-se, iria aniquilar todas as vidas. Aliás, isso mesmo está personificado com a história da invasão dos marcianos em 1958, muito divulgado pela imprensa. Questão que chegou mesmo a ser tratado pela PIDE e que pôs em sarilhos Matos Maia, o autor da emissão radiofónica na Rádio Renascença. O programa sobre a suposta invasão marciana recebeu reações escandalosas por parte da imprensa afeta ao regime.

Uma emissão à qual não foi estranha uma outra anterior do outro lado do Atlântico.

Sim. No final do século XIX, quando H.G.Wells publica o livro “A Guerra dos Mundos”, temos a fundação da ficção científica contemporânea, revivida no cinema e na rádio, neste último caso, na célebre emissão de Orson Wells com a invasão dos marcianos. Acontecimento que aterrorizou os Estados Unidos da América, tendo mesmo havido mortes.

A presença dos primeiros sinais de interesse sobre o planeta Marte dá-se em 1870, quando são descobertos os seus dois satélites naturais.

O imaginário extraterrestre em Portugal começa em que momento do nosso percurso?

A presença dos primeiros sinais de interesse sobre o planeta Marte dá-se em 1870, quando são descobertos os seus dois satélites naturais, o Fobos e o Deimos. Estes, trazem na sua designação a ideia de medo e de desconhecido. Fobos é repugnância, enquanto que Deimos, associa-nos a uma entidade diabólica. A difusão destas notícias ocorre em Portugal. Daí decorrente, autores portugueses, alguns deles com formação astronómica, começam a ficcionar e a produzir textos interessantes sobre outros mundos. Mas sempre com o ponto de vista da agressividade, de animosidade do outro, do desconhecido. Exatamente aquilo que Lovecraft nos traz na citação que referiu, o medo.

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Ilustração de um tripod por Henrique Alvim Corrêa para a edição francesa de 1906 de "A Guerra dos Mundos". créditos: Wikipedia

Antevê no futuro uma alteração como vivemos com os apocalipses?

A evolução mental, aquilo que hoje se designa em termos historiográficos como as atitudes mentais ou mentalidades, é a forma mais resistente de evolução. Temos graduações de evolução muito diversas. A mais rápida é a política. Um golpe de estado muda radicalmente o cenário vigente. Depois encontra a vertente social, seguida da económica, um pouco mais morosa. Mas, a mais eternizável é a atitude mental. Logo, é dessa massa que somos feitos e não vejo que em curtas gerações possamos mudar a nossa maneira de ser portuguesa. Temos uma formatação cultural muito associada ao sensível, à emoção.

A partir de um determinado momento tornámo-nos promotores dos nossos apocalipses. Lembremo-nos, por exemplo, do crash informático do início deste século e na emergência climática ou, antes, o terror nuclear. Concorda?

Sim. Eventualmente, no médio ou longo prazo temos de encontrar uma solução ou enfrentaremos um fim do mundo antecipado, face aquele que temos como certo, dentro de 500 milhões de anos, com a morte do Sol que se iniciará muito antes, dentro de cinco mil e quinhentos milhões de anos. Será o mais plausível, entre os acidentes de percurso que antes possam ocorrer, como o impacto de um asteroide. Isto, não obstante os esforços para evitar a intromissão desses corpos, desviando-lhes a trajetória. Mas, creio, nesse futuro longínquo, os nossos sucedâneos já terão povoado outras terras, embora, eventualmente, alguns com a memória saudosa de um planeta azul chamado Terra.