Quando a psicóloga clínica Filipa Jardim da Silva quis encontrar uma expressão que servisse de síntese ao livro que entregou aos escaparates, encontrou-lhe um título que nos é grato: “Dar a volta”. Aqui, entendido como mudar. Todos queremos, embora biologicamente estejamos programados para resistir à mudança. Procuramos segurança e conforto e, esse estar, não compagina com mudar. Esta, entre outras questões, trazem Filipa Jardim ao contacto com os leitores. Porque não nos devemos focar na palavra insucesso? Porque devemos agir mais como investigadores, menos como juízes? Onde está, de facto, a raiz da mudança? Sobre estas questões conversamos com Filipa. Isto, não esquecendo que tudo tem um propósito. Mudar, mas saber porque o fazemos. Mudar por nós mesmos, não centrando o foco nos outros. Também saber que essa mudança se faz por etapas. Filipa sugere-nos 66 dias para construirmos uma vida com propósito.

A Filipa entrega-nos um manual que sintetiza a sua experiência clínica, informação científica. Isto com um propósito: Aprendermos a mudar. O que a fez decidir trazer para livro este tema?

Nos últimos dois anos e meio atravessei uma mudança profissional, com um projeto autónomo e que me faz sentido. Entretanto, constatei que aquilo que trabalhava em sessões há muitos anos, acabava por se repetir em muitas consultas, com muitas pessoas. Acresce que senti que conteúdos partilhados em sessões individuais, teriam interesse para muitas pessoas que, de outra forma, não chegariam a eles, quer por não terem acesso a sessões de psicoterapia, por não terem predisposição para as mesmas ou capacidade financeira para as frequentar. Quis, assim, deixar um legado físico ao qual todos os interessados pudessem aceder. Houve, claramente, um gatilho que foi sentir, em consultas, em conversas em contexto de empresas, em situações diversas, que para darmos a volta às nossas vidas implica não sermos os nossos maiores inimigos.

Porquê?

Devido à forma como pensamos, com o nosso estilo de vida. Podemos gerar mais sofrimento do que saúde. Ou seja, há imenso potencial humano a ser desaproveitado.

Podemos gerar mais sofrimento do que saúde. Ou seja, há imenso potencial humano a ser desaproveitado.

Filipa, sabendo que a mudança é inevitável, porque somos tão avessos a esta mudança?

Porque, tendencialmente, somos seres que precisamos de algo básico, como a segurança.  Esta é uma das nossas necessidades psicológicas universais. Logo, somos seres de hábitos, gostamos de reconhecer as coisas à nossa volta, apreciando a previsibilidade e temendo a perda de controlo, de poder. Tudo o que contraria essas premissas, leva-nos para a desconfiança e aversão. Quimicamente estamos programados para isso.

Quanto mais tivermos esse conhecimento e essa consciência de que a mudança, por um lado, é inevitável e de que precisamos dela para sermos felizes, ao mesmo tempo também é válido que todos somos um pouco avessos à mudança, pois implica uma perda de segurança. Quando olhamos para esses dois lados complementares, conseguimos, por um lado, dar alguma legitimidade acrescida a esta dificuldade que vamos sentindo, mas ao mesmo tempo consciencializamo-nos, momento a momento, de que temos de nos desafiar e não ficar numa zona de conforto que se vai tornando mais redutora e limitativa.

“Dar a volta às nossas vidas implica não sermos os nossos maiores inimigos” - Filipa Jardim, psicóloga clínica
créditos: Denys Nevozhai

No seu livro podemos ler que, por dia, geramos entre 25 mil a 70 mil pensamentos. Perto de 70% destes pensamentos são negativos. Há algo na nossa natureza humana que nos empurre para este negativismo?

Uma vez mais se relaciona com as nossas origens enquanto espécie. Para sobrevivermos como espécie, foi mais vantajoso estarmos alertas face aos perigos, mais do que ao conforto. A nossa programação biológica base tende a levar-nos a visualizar o que não está bem, com uma visão protetora. Se não está bem, pode ser um perigo, se o é, temos de nos proteger. Sinteticamente funciona assim.

Na realidade, atualmente, a nossa exposição ao perigo natural diminuiu. Temos, na nossa sociedade, um conjunto de questões asseguradas, não vivemos num estado de guerra. Existem outros perigos, sem dúvida, mas esta nossa programação base manteve-se independentemente da evolução social.

Temos é de saber conscientemente reprogramar. Ou seja, treinar a nossa capacidade para estarmos atentos e, simultaneamente, treinar o equilíbrio entre os focos do positivo e do negativo.

A nossa programação biológica base tende a levar-nos a visualizar o que não está bem, com uma visão protetora. Se não está bem, pode ser um perigo, se o é, temos de nos proteger.

Porque diz que devemos ser mais investigadores do que juízes?

Porque temos de ter uma postura mais flexível. Olharmos para nós, para quem nos rodeia e não ter uma postura rígida, a preto e branco, uma visão muito dicotómica do tudo ou nada. Assim, iremos olhar para os desafios com medo, para os outros como inimigos. Fazemo-lo numa escala comparativa com os outros, o sucesso destes é inibitório.

Pelo contrário, há que ter uma mentalidade de crescimento, flexível, em que os obstáculos são vistos como um patamar necessário para nos superáramos; as falhas, como oportunidade de aprendizagem; o sucesso dos outros inspira-nos e não nos reduz. Nos últimos anos, tem-se chegado a esta evidencia, a de que a flexibilidade é o recurso mental mais preditor de saúde mental. Quanto mais desenvolvermos a nossa atenção e flexibilidade, mais favorecemos o nosso bem-estar e nos protegemos da doença psicológica.

filipa jardim

Muitas vezes resistimos à mudança colocando a culpa em fatores que nos são externos. Na realidade, os obstáculos estão em nós. Concorda?

Esse é sempre outro ponto desafiante. Aliás é um aspeto que, quer em trabalho individual, quer em trabalho de grupo, suscita sempre algum desconforto. É mais tranquilizador pormos o foco no que está à nossa volta, do que nos responsabilizarmos. Mas, quando isso acontece, também percebemos que nos dá poder.

Vivemos numa herança judaico cristã e, na sociedade portuguesa, a palavra culpa é, provavelmente, a que se escuta mais diariamente. Quando começo a explicar a alguém que mais do que nos focarmos fora, nos devemos focar dentro, essa pessoa diz que a culpa do que acontece é sua. Devemos banir a palavra culpa do vocabulário, antes elegendo a expressão responsabilidade. Isto porque vem de mãos dadas com a ideia de poder. Logo, se é de minha responsabilidade, significa que eu tenho poder para fazer algo, para mudar o que está à minha volta.

Por vezes, precisamos de ajuda. Temos de ter a capacidade para parar e reconhecer que precisamos de ajuda. Daí, o livro também referir as etapas de mudança. Por vezes as pessoas ficam muito focadas não na ação concreta e mais fazível e querem saltar muito precocemente para o fazer aqui e agora. Mas podemos começar a mudar de uma forma subtil.

A Filipa considera que andamos a empregar mal a palavra insucesso?

Pessoalmente não gosto muito do termo. Em termos académicos e empresariais usamos muito essa expressão, a do aluno ou do empresário que não têm sucesso. É uma palavra injusta.

Prefiro mais a ideia de aprendizagem. Gosto muito da palavra falha, acho que é essencial e com a qual devemos mudar a nossa relação. Não é possível crescermos sem falharmos. A questão do insucesso é difícil de enquadrar nesta ótica de empoderamento. Ou seja, se me responsabilizo pela minha vida, procurando em cada momento dar o meu melhor, como posso não ser bem-sucedido? Neste contexto, insucesso não é uma possibilidade. Posso estar aquém dos meus objetivos, mas o foco é na minha postura, no processo e não nos resultados. O insucesso pode focar-nos num único resultado e não no processo.

Vivemos numa herança judaico cristã e, na sociedade portuguesa, a palavra culpa é, provavelmente, a que se escuta mais diariamente.

Aliás, a Filipa coloca o foco nesse processo e propõe-nos 66 dias para a mudança.

Pode ser um processo de 66 dias, ou um ponto de partida consistente para outros 66 dias. Mas que haja esta capacidade de compromisso com uma vida melhor, com saúde e equilíbrio, ao invés de uma banalização do eu não estou bem, mas os outros também não estão. A questão da definição do ´meu` sucesso e das ´minhas` metas é muito importante. Uma das questões que passam pela frustração é a de estarmos a atingir metas que não são nossas, mas a das pessoas que estão à nossa volta.

filipa jardim

Dá-nos o exemplo do empresário que é um sucesso para as pessoas que estão à sua volta, mas que se sente um embuste. É possível construirmos uma imagem de sucesso sem que valorizemos uma efetiva mudança?

Sim, quando alcançamos metas e sucessos aplaudidos por quem está à nossa volta, mas que não se cruzam com os nossos talentos, com o que mais priorizamos. E isso diz-nos da qualidade do nosso quotidiano. Podemos estar a atingir metas, mas, enquanto pessoas, perdemo-nos de vista. Tenho de estar atenta à meta, mas não a qualquer custo. Saber parar, readequar a rota, Não ir pelo caminho mais rápido, mas o mais sustentável.

Uma expressão que escutamos recorrentemente é, “só precisas de força de vontade”. No contexto desta nossa conversa, não parece ser bem assim.

Essa expressão já criou mais mal-estar do que qualquer outra coisa. É uma expressão dura e mesmo cruel. Muito redutora e até bastante injusta. Em várias situações é muito utilizada. Como se fossemos robôs com um botão on e off e pudéssemos pensar diferente de um momento para o outro.

Entramos no campo do juiz, onde avaliamos o outro de uma forma redutora, a preto e branco e sem gerar empatia. O mesmo se pode aplicar aos chamados momentos “eureka”. São as maiores falácias que podemos comprar. Há pessoas que estão à espera desse clique, o que pode nunca acontecer.

A motivação tende a surgir com a ação, não é o gatilho para esta. Temos de ter consciência que vamos agir com desconforto, com muita resistência e, depois, aos poucos vem a motivação.

Podemos estar a atingir metas, mas, enquanto pessoas, perdemo-nos de vista. Tenho de estar atenta à meta, mas não a qualquer custo.

Filipa, aplicando este seu processo a uma situação prática gostaria de trazer para a conversa a vontade aplicada às dietas alimentares. É um campo onde a mudança ocorre, mas onde é difícil manter os resultados. Porquê?

As pessoas chegam ao profissional de saúde, por exemplo nutricionista, com o objetivo de perder peso. Aí, a primeira questão é redefinir os objetivos apresentados. Terão de ser relevantes. Aquilo que o profissional de saúde devia de compreender é o porquê da perda de peso. Logo, conseguimos focar a pessoa nos seus ganhos verdadeiros e não no objetivo imediato de perder peso. As pessoas querem perder peso porque querem sentir-se melhor na sua pele, sentirem-se melhor com os companheiros, ou seja, tem de ter impacto na sua vida. Daí, o foco estar no verdadeiro objetivo e nunca no secundário. Depois, há que conhecer a pessoa minimamente; o seu histórico com a comida, o seu dia a dia, de que alimentos gosta e não aprecia, se gosta de cozinhar. Isto para que o plano de reeducação alimentar seja personalizado, o que muitas vezes não acontece.

Terceiro ponto, há que empreender um plano de reeducação alimentar e de reeducação do estilo de vida. O que normalmente é apresentado é um plano alimentar restritivo. Não refletindo sobre nada, apenas uma prescrição que é seguida. Isso leva sempre ao falhanço.

Em suma, quando começamos um plano que é restritivo, nos foca no objetivo secundário, não é personalizado e assente numa ordem [“tenho de fazer isto”], química e psicologicamente, o nosso corpo encontra um momento em que tende para o oposto, o da rebeldia e compulsão.

Já tenho recebido em sessão pessoas que mudaram para pior a sua relação com a comida após planos alimentares restritivos. A comida tem de ser vista como combustível para o nosso corpo e cérebro. Uma medicação natural. Mais do que comer algo que me faz ganhar ou perder peso, encontra no alimento algo que vai melhorar a minha saúde global.

“Dar a volta às nossas vidas implica não sermos os nossos maiores inimigos”
Ashley Batz

Filipa, finalmente, que argumentos encontra para afirmar que este não é mais um livro de autoajuda?

Não tenho nada contra os livros de autoajuda. Provavelmente, se tivesse de enquadrar esta minha obra seria numa categoria de desenvolvimento pessoal. Primeiro não é um livro assente apenas numa opinião pessoal. Está assente numa perspetiva pessoal, sem dúvida, mas alicerçada na experiência profissional e na investigação atualizada, no saber de várias áreas, da psicologia, à neurociência, ao coaching. Logo, falamos de uma estrutura de livro alicerçada. Não parte apenas de uma história de vida, ou da experiência de uma pessoa que testou algo consigo e funcionou.

Depois, o livro está desenhado de uma forma prática, mas personalizada. Não é obrigatório que as pessoas façam os exercícios na sequência apresentada. Há sempre um convite e isso é frisado ao longo de toda a obra.

É um livro que engloba pessoas de um espetro muito alargado. Pessoas que ainda não têm a noção de que querem mudar, pessoas que querem mudar, mas não sabem como. Pessoas que já mudaram aspetos, querem continuar e estão a otimizar processos nessa mudança.

Para além disso, acredito realmente que há aqui informação e conteúdo que nos ser útil em vários momentos da nossa vida. Na minha perspetiva, é um livro que não se esgota num único momento, mas numa temática que pode ser transversal a toda a nossa vida. Não temos aqui um exercício teórico, antes algo que pudesse ser útil a muitas pessoas.