Em 2022, nasceu o projeto Histórias à Sombra do Montado, uma iniciativa que une arte e preservação ambiental através de narrativas em banda desenhada e que visa homenagear e sensibilizar a população para o Montado de Sobro em Odemira. Um projeto atento a este ecossistema, mas que também nos conta uma história de mudança de vida, ou melhor, de três vidas, as de Hugo Tornelo, Rita Gonzalez e a sua filha. É em Colos, no concelho de Odemira, que encontramos o casal de empreendedores e o seu projeto.
Há dois anos, via a luz do dia o primeiro quarteto de história em formato de banda desenhada e assinadas por nomes grandes das letras e da ilustração portuguesa. As histórias, independentes entre si, foram escritas por Ana Bárbara Pedrosa, Ana Margarida de Carvalho, Afonso Cruz e Luís Afonso, e posteriormente ilustradas por Nuno Saraiva, Marta Teives, Joana Afonso e João Maio Pinto.
Agora, em setembro de 2024, a dupla de criativos anuncia uma nova edição das suas histórias de homenagem ao montado e ao sobreiro. Uma vez mais, assinam as histórias nomes de peso da escrita a da ilustração nacional.
Histórias à Sombra do Montado é, a dois tempos, uma homenagem a uma das árvores e ecossistemas nacionais, mas também uma forma de disseminar boas práticas para a preservação de um ambiente sobre o qual pendem ameaças. As histórias, com distribuição em publicação gratuita no concelho de Odemira, estão ao alcance de todos no site que serve de suporte ao projeto.
O Hugo Tornelo e a Rita Gonzalez deixaram Lisboa para se estabelecerem no concelho de Odemira. Como se deu a vossa adaptação ao Alentejo?
Desde há um ano que estamos a viver permanentemente no concelho de Odemira, mais concretamente numa localidade chamada Colos. Há dois anos que programávamos esta mudança de Lisboa para o Alentejo. Em 2018, adquirimos um terreno em Relíquias, a cerca de dez minutos de distância de Colos. O monte contava com uma casa que acabámos por recuperar. Antes, já visitávamos o concelho numa ótica turística. Aos poucos, criámos aqui amizades e a realidade foi evoluindo. Até que, realmente, decidimos mudar. Uma mudança que também acompanhou a escola da nossa filha, que entrou para o quinto ano. Os nossos trabalhos também permitiam esta transição da capital para aqui. E estamos bastante satisfeitos.
Em Odemira encontraram uma realidade muito diferente face àquela que tinham em Lisboa. O que ganharam no dia a dia com esta mudança?
No que respeita ao trabalho, é óbvio que mudou alguma coisa. Mas, acima de tudo mudou o cenário, a paisagem o ritmo dos dias. Temos mais alguma proximidade à terra, às pessoas. É uma outra maneira de encarar as coisas.
O que vos deu o mote para se interessarem pelo montado, a sua preservação e, de certa forma, iniciarem este projeto?
Há dois anos, quando iniciámos este projeto, queríamos, de alguma forma, fazer algo pelo território para onde nos iríamos mudar. Queríamos, de certo modo, juntar um bocadinho de dois mundos. A Rita está ligada ao cinema e à produção executiva na Sétima Arte. Eu, venho da área do design, da comunicação e da publicidade. Os dois, temos desde sempre a paixão pela banda desenhada e pela ilustração. E de repente, quando adquirimos o terreno, que é montado, fomos reparando que não só aqui, mas em todos os montados da região, e não só em Portugal, este ecossistema padece de alguns problemas, de algumas doenças. Fomos falando com pessoas e tentámos perceber como é que poderíamos recuperar, ou pelo menos tentar recuperar, o nosso montado. Esta aproximação ao montado, aos seus problemas e ao conhecimento sobre o mesmo, fez-nos perceber que, realmente, é um ecossistema muito rico, único, e também identitário do Alentejo, tanto no que respeita à paisagem, como à cultural e à economia local e nacional. Marca, inclusivamente, os ciclos de trabalho. Percebemos que no período da tira da cortiça há muitas pessoas que deixam as suas atividades anuais para se dedicarem à cortiça.
E esse declínio do montado deu-vos o mote para o projeto.
Sim, queríamos de alguma forma criar um projeto que transmitisse a nossa paixão pela banda desenhada e pela componente artística que pontua os nossos trabalhos. Um projeto literário de qualidade, através de um veículo que chega a todos, a banda desenhada. E, de repente, surge a oportunidade de homenagear o montado e uma árvore que é um símbolo, uma árvore nacional, protegida, que faz parte da paisagem. A partir desse momento começámos a executar o projeto, a pensar nos escritores que fariam sentido e também nos ilustradores. A primeira edição deu-se em 2022, na época com o apoio do Programa Garantir Cultura, concedido ao setor aquando da COVID-19.
A Câmara Municipal de Odemira foi nossa parceira na distribuição do livro na área do concelho que, como sabe, é enorme. Quisemos fazer histórias que marcassem a identidade da região. Os intervenientes, os escritores e os ilustradores vieram ao concelho fazer uma pesquisa de campo, inspiraram-se para escrever os contos. Queríamos que o produto final se dirigisse às pessoas de cá, que as pessoas conseguissem de alguma forma ter aqui um sentimento de pertença.
Presentemente preparam o lançamento da segunda edição...
Sim. Esta segunda edição nasceu com a abertura do programa de financiamento da cultura, o Odemira Criativa. Uma vez mais, o conceito é simples, o de homenagear o montado, o sobreiro, as pessoas, o território, a cultura. Tal como na edição anterior, as bandas desenhadas vão ser distribuídas gratuitamente por todo o concelho, a partir de meados de setembro. São seis mil exemplares que vão estar nos locais onde as pessoas se reúnem e se encontram: nos cafés, nas juntas de freguesia, nas farmácias, nos restaurantes, entre outros sítios.
Esta também é uma obra de alerta para a regeneração do montado...
Tal como aconteceu na primeira edição, esta publicação serve também como veículo de disseminação de boas práticas no montado. Nesse sentido, entre os nossos parceiros está o Life Montado ADAPT, um projeto ibérico de regeneração do montado em Portugal e em Espanha, que apresenta cerca de 40 propostas nesse sentido. Algumas destas práticas verteram para o nosso livro. No fundo, procuramos ser uma plataforma de discussão. Que aqueles que nos seguem possam dizer: “oK, o montado está assim, mas uma boa parte do facto de ele estar assim, também se deve a má gestão”. As histórias em si não são pedagógicas. São narrativas onde o montado ou o sobreiro estão presentes de forma direta ou indireta. Desta forma, no fim da obra, passamos algumas mensagens e medidas de como podemos olhar para o montado e tentar recuperá-lo em geral.
Quem assina os contos e as ilustrações nesta segunda edição de Histórias à Sombra do Montado?
As histórias foram escritas pelo Afonso Reis Cabral, pela Joana Bertolo, pela Filipa Martins e pelo Valério Romão. Foram adaptadas para a banda desenhada pela Patrícia Guimarães, pelo Bernardo Maia, pela Joana Mosi e pelo Ricardo Batista.
Que mais-valias vos trouxe a rede de parcerias que estabeleceram com diferentes entidades?
Por exemplo, o Clube Ciência Viva na Escola, ligado à Escola Secundária Dr. Manuel Candeias Gonçalves, em Odemira, e à bióloga Ana Paula Canha, também ali docente, esteve sempre presente nas visitas dos escritores e dos ilustradores. Este Clube Ciência Viva nasceu em colaboração com os alunos, para promover a biodiversidade local. Também a apoiar-nos está a Terracrua Design, uma empresa e consultora em ecossistemas regenerativos, focada na agricultura regenerativa. Quando comprámos o nosso terreno, foi com esta entidade que começámos a traçar o plano de recuperação do montado.
O Hugo referiu há pouco que fazem a distribuição destas vossas histórias em locais frequentados pela população do concelho. Essa distribuição também transcende a dimensão do concelho?
Sim, através do nosso site onde temos as histórias para descarregar gratuitamente em ficheiro no formato PDF. Fisicamente, continuarão somente a ser distribuídas no concelho de Odemira.
As ações que vocês empreendem implicam também contacto próximo, por exemplo, com as crianças, que são um público normalmente interessado nestas questões. Como se tem desenrolado esse contacto?
A nossa associação, a Ronha, entidade de cariz cultural não trabalha diretamente com escolas. Na primeira edição, contámos com uma versão da obra mais direcionada para as escolas. Conjuntamente com a já referida Ana Paula Canha e o Clube Ciência Viva, decorreram diversas atividades para fazer em sala de aula. Também poderemos ir falar ao público escolar sobre o projeto, o que é sempre uma forma de abordar a tomada de consciência sobre a realidade do montado.
Esta conversa tem sido pontuada pelo tema das boas práticas no montado. Que boas práticas implementaram na vossa propriedade?
Acima de tudo, uma das principais, passa por não mobilizar o solo com recurso a grades. Não sou engenheiro ambiental, mas há práticas que vou aprendendo. No fundo, o que quero dizer é que, ao limparmos o terreno, não devemos usar alfaias de grade, para não danificar as raízes próximo à superfície. Fragilizamos o sobreiro e tornamo-lo mais atreito a contrair doenças. Por isso, recorremos ao corta-mato e ao maneio de animais no terreno de uma forma mais extensiva e não intensiva. Fazemos um pastoreio rotativo e praticamos sementeiras que ajudem a azotar a terra, a melhorar o solo. Um solo saudável também vai, de alguma forma, propiciar árvores mais saudáveis.
Há uma outra dimensão ligada à vossa propriedade que se prende a um subproduto do montado. Qual é?
Sim, estamos a abraçar um projeto que é, de certa forma, pioneiro. Vamos ser produtores de bolota. Isto é, utilizar a bolota para alimentação humana através de farinha. Hoje, muito se fala de resiliência alimentar. Ora, no Alentejo temos algo que está neste momento no chão ou serve unicamente para a alimentação dos animais. Acresce que já há tecnologia para tirar os taninos da bolota do sobreiro para a tornar comestível como a da azinheira. Depois, temos todo o ecossistema à volta, como o porco preto ou o gado, os cogumelos selvagens, o turismo de natureza, as plantas aromáticas, o mel. Este é um ecossistema muito rico, que implica muita coisa e que, na realidade, é importante preservar, valorizar e homenagear.
Comentários