
Este é um momento de reflexão, luta e conscientização sobre os desafios enfrentados pelas mulheres em todo o mundo. Entre esses desafios, a violência contra a mulher mantém-se como uma das mais graves violações de direitos humanos. Contudo, é essencial discutir um aspeto frequentemente negligenciado: como, sem perceber, muitas de nós mulheres interiorizamos e reproduzimos padrões sociais que perpetuam a violência contra nós próprias?
A interiorização dos estereótipos de género
Desde a infância, as meninas são ensinadas a adotar comportamentos específicos: ser dóceis, cuidadosas, delicadas e sempre priorizar os outros em detrimento das suas próprias necessidades. Estes estereótipos de género, embora possam parecer inofensivos, criam uma estrutura mental que normaliza a submissão e a aceitação de comportamentos abusivos. A performatividade da feminilidade, em troca de pequenas vantagens para ser vista como objeto de desejo ou a "escolhida", é uma forma tóxica de existir num mundo misógino, que ainda tem dificuldades em enxergar-nos além dos papéis de género.
Quando uma mulher cresce num ambiente que valoriza a "resiliência" acima de tudo, pode acabar por aceitar situações de desrespeito, violência psicológica ou até física, pois aprendeu que "é assim que as coisas são". A cultura do "não fazer escândalo" ou "não criar confusão" frequentemente leva as mulheres a minimizarem as suas próprias dores e experiências. Quantas vezes ouvimos frases como "ele só estava stressado", "ele não quis dizer aquilo" ou "devo ter feito algo para provocá-lo"? Estas justificações, embora pareçam oferecer proteção, são mecanismos de autopreservação num mundo que ainda culpa as vítimas e absolve os agressores. Frases como “você está a exagerar”, “está nervosa?”, “está louca!” são táticas sofisticadas de deslegitimar as vozes e posicionamentos das mulheres, mantendo, assim, a estrutura machista intacta.
A cumplicidade silenciosa
Outro aspeto relevante é o facto das mulheres, muitas vezes sem perceberem, reforçarem comportamentos machistas nas suas relações sociais. Devemos aceitar o facto que o machismo não se sustentaria sem a nossa colaboração, isto é uma realidade dura.
A competição entre mulheres, a crítica excessiva a outras por causa das suas escolhas (seja na carreira, na vida amorosa ou na aparência) e a reprodução de discursos que culpabilizam vítimas de violência são exemplos de como o machismo é interiorizado e perpetuado. Quando uma mãe diz ao filho "homem não chora" ou quando uma mulher julga outra por não seguir os padrões tradicionais de feminilidade, está, mesmo que inconscientemente, a alimentar uma cultura que nos oprime a todas.
Para aprofundar a discussão, a questão que deve ser feita é: estamos realmente coerentes na nossa luta contra a opressão feminina no mundo? Reconhece a necessidade de estar alinhada com a proposta de mudança? Ou, em vez disso:
- é violenta nos seus discursos em relação a outras mulheres;
- é xenófoba com mulheres de grupos diferentes do seu;
- esconde-se atrás do conservadorismo para preservar uma suposta vantagem social;
- envolve-se com homens casados e em famílias que não são suas;
- vincula-se emocionalmente a homens que estão em relacionamentos formais;
- relaciona-se com homens de passado duvidoso, abusivos, que não pagam pensão aos filhos de relações anteriores, criminosos e com comportamentos questionáveis;
- é incapaz de estabelecer parcerias saudáveis e de confiança com outras mulheres;
- ainda é leal aos desejos do patriarcado em detrimento da aliança feminina;
- adota comportamentos competitivos de caráter tóxico e deixa-se consumir pela inveja;
- não empodera outras mulheres, vendo-as como ameaças;
- abusa do seu pequeno poder e oprime outras mulheres sempre que tem oportunidade
Se tem dificuldade em erradicar tais pensamentos e comportamentos, saiba que está alinhada com o patriarcado, ou seja, a trabalhar contra si mesma.
A violência simbólica e a sua naturalização
A violência contra a mulher não se manifesta apenas de forma física. A violência simbólica, conceito desenvolvido pelo sociólogo Pierre Bourdieu, refere-se à maneira como normas e valores machistas são naturalizados e aceitos como parte da vida quotidiana. Quando uma mulher ri de uma piada sexista para evitar "criar conflito", quando se submete a relacionamentos desiguais por medo da solidão ou quando justifica o comportamento abusivo de um parceiro, está, sem querer, a reforçar a estrutura que a oprime. Esta naturalização é perigosa porque torna a violência invisível. Muitas mulheres passam a acreditar que merecem menos, que não são dignas de respeito ou que devem contentar-se com migalhas de afeto e reconhecimento. Esta mentalidade não apenas as prejudica individualmente, mas também contribui para a perpetuação de um ciclo de violência que afeta todas as mulheres.
O caminho para a mudança
Estamos numa situação crítica! Recebemos salários menores no mercado profissional. Estamos exaustas pelas inúmeras responsabilidades assumidas ou jogadas nas nossas costas. Estamos a perder, e o pior, colaboramos com isso ao sermos condescendentes, permissivas e desunidas.
Somos mais inteligentes que isso!
Reconhecer estes padrões é o primeiro passo para os romper. É fundamental que as mulheres se permitam questionar as normas sociais que lhes foram impostas e refletir sobre como essas normas impactam as suas vidas. A sororidade, ou seja, a união e apoio entre mulheres, é uma ferramenta poderosa para desconstruir estes padrões. Sororidade de verdade, não de rede social.
Quando as mulheres deixam de competir entre si e começam a apoiar-se, criam uma rede de proteção e empoderamento que desafia o status quo. Além disso, a educação desempenha um papel crucial. Ensinar meninas desde cedo sobre os seus direitos, sobre igualdade de género e sobre a importância de se valorizarem é essencial para quebrar o ciclo de violência. Meninos também devem ser educados para respeitar as mulheres e entender que a masculinidade não está relacionada à dominação ou controlo.
Então…
Neste Dia Internacional da Mulher, é imprescindível olharmos para lá das celebrações e refletirmos sobre as estruturas que perpetuam a violência contra as mulheres. Enquanto sociedade, precisamos reconhecer que muitas vezes, sem perceber, as mulheres são levadas a interiorizar e reproduzir comportamentos que as oprimem, como hierarquias raciais, sociais e afins. A mudança começa com a conscientização, com o apoio mútuo e com a coragem de desafiar normas que nos foram impostas há muito tempo. Que este dia seja não apenas de homenagens, mas de um compromisso com a construção de um mundo onde todas as mulheres possam viver livres de violência, com dignidade e plenitude. A luta pela igualdade de género é de todas e todos, e somente juntos poderemos transformar essa realidade.
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