Num tempo em que a parentalidade está inundada de opiniões, teorias e conselhos contraditórios, muitos pais sentem-se perdidos e sobrecarregados, sem saber em que caminho confiar. No novo livro Educar com Culpa (edição Manuscrito), a psicóloga clínica Laura Sanches desafia as perceções tradicionais e propõe um olhar renovado sobre um sentimento que muitos tentam evitar: a culpa parental.

Sanches defende que a culpa não deve ser vista como um inimigo a abater, mas antes como um alarme natural — uma manifestação do chamado “instinto alfa” — que nos lembra das nossas responsabilidades e dos valores que queremos passar aos nossos filhos. Inspirada pelo modelo do psicólogo canadiano Gordon Neufeld, a autora explica que o instinto alfa é aquele que nos coloca naturalmente na posição de cuidadores, guias e protetores, algo essencial para que as crianças possam sentir-se seguras e aprender a depender dos adultos à sua volta.

No entanto, vivemos numa sociedade onde, segundo Laura Sanches, os pais estão cada vez mais desconectados da sua intuição, buscando confirmação constante em teorias externas e até nos próprios filhos. Esta insegurança, alerta, acaba por sobrecarregar emocionalmente as crianças, que ficam ansiosas e menos disponíveis para se deixarem orientar.

O livro destaca ainda a importância vital do brincar — não apenas para a diversão, mas como motor essencial do desenvolvimento emocional, social e cognitivo. Para Sanches, os videojogos e o tempo de ecrã afastam as crianças das experiências essenciais da brincadeira livre, que lhes permite explorar emoções, calibrar riscos e aprender a lidar com frustrações num ambiente controlado.

Para proteger as crianças, defende, o mais importante é garantir-lhes colo, apoio emocional e a certeza de que não estão sozinhas nos momentos difíceis. E lembra: os pais não precisam de ser perfeitos ou livres das suas próprias feridas emocionais para serem bons cuidadores — precisam apenas de assumir, com confiança, o papel de quem cuida.

O seu livro propõe-nos um novo olhar sobre a culpa parental. De que forma as páginas que nos entrega desafiam as perceções tradicionais sobre a culpa na educação das crianças?

Nas últimas décadas a tendência tem sido a de encararmos a culpa como algo que devemos eliminar para podermos viver bem. Aquilo que explico no livro é que devemos aceitá-la como parte integrante do instinto de cuidar, o instinto alfa: sempre que assumimos a responsabilidade de cuidar de alguém a culpa surge inevitavelmente porque queremos que tudo corra bem e que tudo funcione com essa pessoa e, naturalmente, isso nem sempre é possível. Por isso temos que aprender a criar uma relação com a culpa, mais do que fugir dela. Até porque, a culpa também tem a utilidade de nos ajudar a perceber quando estamos a desviar-nos demasiado do caminho que queremos seguir e daqueles que são os valores mais importantes para nós.

Também precisamos de distinguir a culpa da vergonha, porque a culpa pode até ajudar-nos a fazer melhor, mas a vergonha bloqueia e paralisa.

Em Educar com Culpa sugere que muitos pais são assoberbados por múltiplas teorias educacionais. Na sua opinião, como é que esta variedade de abordagens afeta a confiança dos pais nas suas próprias decisões?

Hoje, temos uma certa tendência para abordar tudo de forma muito racional e temos cada vez mais informação sobre o impacto que pode ter a forma como educamos os nossos filhos no seu desenvolvimento. Por isso é natural que muitos pais procurem informar-se antes de fazerem determinadas escolhas.

Laura Sanches é psicóloga clínica e do aconselhamento. Licenciada na Universidade Lusófona, em 2002, concluiu, dois anos mais tarde, o mestrado em Consciousness and Transpersonal Psychology, na Liverpool John Moores University. É autora de vários livros sobre mindfulness e parentalidade e, desde que se estreou no papel de mãe, em 2011, começou a dedicar-se às áreas da educação e do desenvolvimento infantil, tendo feito formação no Neufeld Institute. Atualmente, dá consultas no Espaço Vida, em Lisboa, onde, além da psicologia clínica, faz também sessões de aconselhamento parental.

O problema é que, mais do procurar informação ou conselhos de especialistas e não só, é fundamental que os pais aprendam a confiar em si mesmos e que sintam que, no fundo, têm tudo aquilo de que precisam para educar bem os filhos. Até porque nos momentos de crise, a tendência é justamente para agirmos muito mais com base no instinto do que na teoria.

Alerta para a importância de um retorno ao "instinto alfa" interior. Resumidamente, o que é este “instinto alfa”?

O instinto alfa é um termo criado pelo psicólogo canadiano Gordon Neufeld e refere-se ao instinto de cuidar ou de educar. No modelo de Nefeuld existem dois instintos complementares: o alfa e o de dependência. O instinto alfa é aquele que precisa de estar ativo sempre que estamos na posição de cuidar ou de orientar alguém, por exemplo, um terapeuta ou um professor, precisam desse instinto ativo para desempenharem bem essas funções. Mas as crianças precisam de estar maioritariamente no modo de dependência para se deixarem cuidar e orientar.

O instinto alfa é um termo criado pelo psicólogo canadiano Gordon Neufeld e refere-se ao instinto de cuidar ou de educar.

Como podemos reaprender a “ouvir a nossa própria voz” enquanto pais, num mundo cheio de opiniões e recomendações externas?

Precisamos de confiar em nós, de saber que para os nossos filhos somos mesmo a melhor resposta. Gordon Neufeld explica que esta ativação do instinto alfa passa muito por sermos capazes de sentir que somos a resposta para aquela pessoa. E de facto cada pai ou mãe é mesmo a melhor resposta para os seus filhos. Mas isto precisa muito mais de vir de dentro, não podemos estar à espera que eles nos confirmem isso. Quando temos um filho recém-nascido nos braços e ele está tranquilo é fácil sentir que temos tudo aquilo que é preciso para aquele bebé. É esta sensação que precisamos de recuperar mesmo com os mais crescidos. Mas isto tem mesmo que vir de dentro, não podemos ficar à espera que sejam eles a confirmar-nos isto.

A sua experiência clínica leva-a a acreditar que a sociedade atual, de forma ampla, perdeu a capacidade de confiar nas suas intuições? Quais são as consequências desse afastamento?

Aquilo que vejo é que existem cada vez mais pais e mães menos capazes de confiar em si mesmos e nas suas emoções e intuição e instinto, sim. As consequências disso são que temos pais mais inseguros, que procuram muito mais nos filhos a confirmação de que estão a fazer um bom trabalho o que, por sua vez, sobrecarrega as crianças com uma função que não é a sua. E temos também crianças cada vez menos capazes de se deixarem guiar porque quando os adultos não confiam em si próprios é muito mais difícil que as crianças o façam. E uma criança que não se deixa guiar, é sempre uma criança mais ansiosa e mais desafiadora também.

Educação: “Temos que aprender a criar uma relação com a culpa, mais do que fugir dela” – Laura Sanches, psicóloga clínica
Educação: “Temos que aprender a criar uma relação com a culpa, mais do que fugir dela” – Laura Sanches, psicóloga clínica créditos: Manuscrito

Na sua opinião, qual é o equilíbrio certo entre procurar apoio junto de psicólogos e terapeutas e confiar na capacidade interna de cada pai e mãe para compreender e acompanhar os filhos?

Acredito que em primeiro lugar quem deve procurar ajuda são sempre os pais e não as crianças. Depois temos que escolher profissionais que não tenham receitas e fórmulas aplicáveis a todos e temos também que sentir que estes profissionais servem para nos fazer confiar mais em nós mesmos e não o contrário.

Não podemos obrigar ninguém a brincar, mas podemos criar as condições necessárias para que tal aconteça. E as crianças precisam de brincar com os seus pares

No livro, destaca a ideia de "voltar a brincar". Escreve que voltar a brincar é essencial para o desenvolvimento da criatividade, inteligência, resiliência, identidade, e até da empatia nas crianças. Como podem os pais e educadores incentivar a brincadeira num mundo que parece preparado para afastar os mais pequenos desta?

Em primeiro lugar é preciso reduzir muito a presença dos ecrãs na vida das crianças, porque eles competem muito com esse espaço do brincar.

Depois precisamos de confiar na importância da brincadeira para podermos dar-lhe espaço. E confiar também na comunidade, temos que saber que as crianças estão seguras na rua, como acontecia há algumas décadas. E temos que confiar que é seguro deixá-las correr riscos apropriados à idade. Os nossos parques infantis, na sua maioria, são muito pobres deste ponto de vista, precisamos de criar espaços muito mais desafiadores e apelativos, de preferência com muito mais materiais naturais, como paus, terra e areia.

E também precisamos de cuidar da relação, de dar às crianças a tranquilidade de saberem que sabemos e queremos cuidar delas, porque uma criança que esteja preocupada com a relação é uma criança que terá sempre mais dificuldade em brincar livremente. Em alguns casos isto também pode significar que temos de afastar um pouco as crianças dos seus pares, porque para poderem descansar as crianças precisam, acima de tudo, de boas relações com adultos.

Não podemos obrigar ninguém a brincar, mas podemos criar as condições necessárias para que tal aconteça. E as crianças precisam de brincar com os seus pares, sim, mas só quando já têm a certeza de que são as relações com os adultos as que mais contam para lhes dar segurança.

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brincar créditos: Freepik

Também escreve que brincar está em vias de extinção e faz uma distinção entre brincadeiras tradicionais e os videojogos. De que forma a brincadeira, tal como sempre a conhecemos, pode contribuir para um desenvolvimento emocional e social mais saudável, em comparação com a dependência da tecnologia e dos videojogos?

A brincadeira faz com que as crianças aprendam a relacionar-se com o seu próprio corpo, mas também com as outras pessoas. Para brincar as crianças precisam de saber colocar-se no lugar do outro: saber de que é que as outras crianças gostam e saber que se determinadas coisas podem fazer com que elas parem de brincar. Coisas que não acontecem em jogos de vídeo.

Mas o mais importante é percebermos que quando brincam as crianças estão a projetar o seu mundo interno cá fora, estão a descobrir esse mundo a encontrar forma de o comunicarem e integrarem na brincadeira. Quando estão a fazer jogos online são apenas recetores passivos de mundos construídos por outras pessoas com a finalidade de criarem dependência e libertações de dopamina que podem mesmo desregular o seu sistema de recompensas. Os jogos online seguem exatamente as mesmas regras que os jogos de casino, para criar dependência.

Além disso quando brincam as crianças também podem aprender a lidar com as emoções mais difíceis, como a frustração ou até a tristeza e podem aprender a regular o seu sistema de alarme. A brincadeira livre ajuda a calibrar o seu sistema de alarme que entra em funcionamento quando as crianças correm riscos controlados e geridos por elas mesmas. Nestas brincadeiras elas aprendem facilmente a ligar e desligar o alarme, à medida que vão gerindo esses riscos. Os jogos de vídeo contribuem para a desregulação desse sistema porque o alarme está sempre em modo de ativação enquanto o jogo durar e esta ativação não é controlada pela criança. Que, na verdade, pode nem estar muito consciente dos seus sinais e acaba por nem sequer ter oportunidade para aprender a lidar com essas sensações e para as integrar. Além de que este ligar do alarme que os jogos provocam também não permite uma descarga física, como a que acontece naturalmente na brincadeira livre em que as crianças se podem mexer.

A brincadeira faz com que as crianças aprendam a relacionar-se com o seu próprio corpo, mas também com as outras pessoas.

Na sua perspetiva, de que forma experiências de trauma — quer dos próprios pais, quer das crianças — podem interferir na capacidade de educar com confiança e empatia, e como é que podemos integrar a consciência do trauma no processo educativo diário?

Fala-se muito de trauma nos nossos dias e tenho algumas dúvidas de que isto seja verdadeiramente benéfico. Precisamos de encontrar um equilíbrio entre saber que tudo o que fazemos com os nossos filhos os irá marcar de alguma forma, mas que, ao mesmo tempo, as crianças não são assim tão facilmente traumatizáveis.

Aquilo que traumatiza não são tanto os acontecimentos por si mesmo, mas o facto da pessoa ou a criança sentir que tem de passar por eles sozinha. Por isso o melhor que podemos fazer para que as crianças não fiquem traumatizadas, mesmo em situações muito difíceis, é dar-lhes essa confiança de que estamos sempre disponíveis para cuidar delas e para as ajudar a lidar com o sentem. Dar-lhes um colo para chorar e mostrar que podem lidar com a tristeza é a melhor garantia que serão capazes de se adaptar. os traumas vêm da incapacidade de adaptação.

Em relação aos pais é importante termos alguma consciência das nossas feridas e de como elas nos podem condicionar quando lidamos com as crianças, mas também é fundamental que saibamos que não precisamos de ser livres de traumas ou de feridas para sermos bons pais ou mães. Só precisamos de ser capazes de chorar aquilo que nos falta, porque isso também é aquilo que nos ajuda a adaptar.

E saber que quando assumimos plenamente o nosso instinto alfa e somos verdadeiramente capazes de nos colocar no papel de cuidar e educar os nossos filhos, assumindo em pleno essa responsabilidade e sabendo que somos a resposta para os nossos filhos, isto faz com que essas feridas tenham menos impacto e poder sobre nós.