
A literatura tem sido, ao longo da história, um espaço de resistência, levantamento de questões e transformação social. No entanto, a desigualdade de género continua a refletir-se também no mercado editorial, onde autoras frequentemente enfrentam menor visibilidade e reconhecimento. Foi para combater esta disparidade que Lorena Travassos, docente e investigadora de género, fundou a Livraria Greta em Lisboa, no bairro dos Anjos, um espaço que se dedica exclusivamente a livros escritos por mulheres e pessoas não binárias.
Nesta entrevista, Lorena partilha a motivação por detrás da criação da livraria, os desafios do mercado editorial e a importância da representatividade na literatura. Além disso, fala sobre o impacto do feminismo na sociedade contemporânea, o papel das redes sociais na promoção da leitura e os projetos futuros da Greta. Um olhar aprofundado sobre um projeto que não se limita a vender livros, mas que promove reflexão, debate e mudança.
A livraria Greta dedica-se exclusivamente à literatura de mulheres e pessoas não binárias. Esta escolha foi puramente ideológica ou identificaste uma lacuna no contexto das livrarias nacionais?
Não é uma questão ideológica, mas sim política. As mulheres sempre publicaram, mas aparecem muito menos na publicidade aos livros e têm menos visibilidade, apesar de representarem metade da população. Existem muitos livros escritos por mulheres, mas muitas vezes não são divulgados e passam despercebidos. Quantas vezes descobrimos um livro publicado de que nunca ouvimos falar. O objetivo da livraria Greta é tentar reparar a desigualdade entre homens e mulheres no mercado editorial, facilitando o acesso a essas obras e contribuindo para uma reparação histórica.
Essa desigualdade não se limita ao mercado editorial, acaba por ser transversal a várias áreas da sociedade. Quando criaste esta livraria, referiste numa entrevista anterior que as livrarias independentes enfrentavam há vários anos dificuldades. Identificar um nicho de mercado facilitou de alguma forma a ligação aos leitores?
A Greta não é uma livraria com um grande fluxo de compradores, é uma casa pequena e independente, de bairro. Não posso dizer que é um enorme sucesso de vendas, mas mantém-se. A escolha deste nicho foi uma necessidade, porque sempre fui investigadora de género e sempre enfrentei dificuldades em encontrar livros sobre feminismo, mulheres na política e debates de género. O objetivo era colmatar essa falta e tornar os livros que referi mais acessíveis e fáceis de serem encontrados.
As mulheres sempre publicaram, mas aparecem muito menos na publicidade aos livros e têm menos visibilidade.
Como é que constituíste o catálogo? Recebes sugestões, investigas constantemente?
É um trabalho de investigação contínuo. Recebo listas de livros em pré-venda e são muito poucos os de mulheres. Dentro desses, faço uma seleção baseada no interesse e na limitação de espaço. Tento escolher livros com uma visão progressista e feminista, como coletâneas de escritoras ou títulos sobre mulheres na guerra. Ou seja, faço uma curadoria criteriosa para garantir que os livros refletem a missão da livraria.
Sei que encontraste inspiração numa livraria semelhante em Barcelona e que aqui em Portugal não havia nenhuma oferta semelhante. Mas até conseguires abrir o espaço físico, começaste com uma loja online. Como foi esse processo?
Passei muito tempo à procura de um espaço que se pudesse pagar com a venda de livros. Em Lisboa, era impossível devido ao custo elevado das rendas. As pessoas que compravam na minha loja online pediam um espaço físico para ter um contacto próximo com os livros. Por acaso, encontrei esta loja vazia, falei com o porteiro e, como era propriedade do dono do prédio, o valor era muito mais acessível. Deram-me um mês sem renda para fazer reformas e isso ajudou a concretizar a abertura da livraria.
Tento escolher livros com uma visão progressista e feminista, como coletâneas de escritoras ou títulos sobre mulheres na guerra.
A Greta celebrou um ano em setembro passado e vai a caminho do segundo ano. Como tem sido esta jornada?
Tem altos e baixos, mas está estável [risos]. Espero vender mais para poder melhorar a loja e aumentar o catálogo. A livraria mantém-se apenas com a venda de livros, sem apoios externos. Para continuar a existir, precisa de compradores frequentes.
Mas a livraria não se limita à venda de livros, também promove debates. Como organizas esses eventos?
Além da venda de livros, temos oficinas, workshops e eventos. As temáticas variam, mas estão sempre ligadas a livros escritos por mulheres e ao feminismo. Por vezes, editoras e escritoras procuram-me, outras vezes sou eu que organizo as iniciativas. Tudo acontece de forma orgânica e natural, sem uma agenda rígida. Quando percebo, já tenho eventos marcados para seis meses à frente. Faço questão de que todas as oficinas tenham ligação a livros ou a autoras. O que quero, acima de tudo, é valorizar a leitura e as autoras.
Abrir uma livraria como a Greta é um ato político. A curadoria reflete um ponto de vista em relação ao mundo e desafia as pessoas a pensar sobre os seus hábitos de leitura.
Como sentes que a livraria contribui para a representatividade das mulheres e de pessoas não binárias na literatura?
Abrir uma livraria como a Greta é um ato político. A curadoria reflete um ponto de vista em relação ao mundo e desafia as pessoas a pensar sobre os seus hábitos de leitura. Muitas vezes, os leitores percebem que leem mais autores homens do que mulheres, e essa reflexão já é uma conquista. Há quem venha à livraria procurar livros para compreender melhor o feminismo. Além disso, participar em festivais e eventos literários ajuda a ampliar a discussão e a desconstruir a ideia errada de que feminismo é ódio contra os homens.
De que forma contribuis para a discussão do feminismo no teu dia a dia?
Nas redes sociais é difícil, há muitos comentários negativos. O essencial é manter-me fiel ao propósito da livraria e apoiar mulheres e pessoas não binárias. Ter um espaço seguro para conversar sobre estas questões. Tento contratar apenas mulheres para trabalhar aqui, na contabilidade e outros serviços, apoio negócios femininos, participo na greve feminista e em marchas, além de promover práticas antirracistas. Tento ser coerente com os meus valores, embora reconheça que, num sistema patriarcal, nem sempre seja fácil.
A literatura sempre teve um papel de questionar e desafiar às estruturas de poder. Consideras que as autoras contemporâneas têm conseguido quebrar barreiras?
Na atualidade tem havido avanços. A qualidade sempre existiu, mas as mulheres precisam de se esforçar mais do que os homens para serem reconhecidas. As editoras estão a publicar mais autoras, mas ainda não chegam a 50%. O debate está a crescer, e há mais projetos e associações dedicados ao tema. A produção artística, como peças de teatro e festivais, também tem desempenhado um papel importante na ampliação dessas discussões.
O feminismo tem várias vertentes, e cada escritora aborda as suas próprias prioridades. Há uma nova geração que, paradoxalmente, pode ser mais tradicional do que a dos pais.
A literatura feminina tem acompanhado e refletido as mudanças sociais?
Nem sempre. O feminismo tem várias vertentes, e cada escritora aborda as suas próprias prioridades. Há uma nova geração que, paradoxalmente, pode ser mais tradicional do que a dos pais, refletindo a ascensão da extrema-direita. Isto é muito estramos. Por exemplo, encontramos livros de mulheres com perspetivas misóginas ou estereotipadas. Mas o mais importante é que as mulheres estão a escrever mais, porque houve mulheres que lutaram para isso. A quantidade de publicações aumentou, e isso, por si só, já é uma vitória.
Os hábitos de leitura dos portugueses têm crescido, influenciados por redes sociais como o TikTok. Como vês o impacto destas novas ferramentas?
As redes sociais podem ter um efeito positivo ao incentivar a leitura, mas também criam modas passageiras. Ainda assim, se mais pessoas estiverem a ler, mesmo que seja por tendências momentâneas, já é algo positivo para o mercado editorial e para a literatura.
Eu acho muito bom que o TikTok sirva para isso também. Porque, pelo menos na sala de aula, quando dou aulas, vejo que as pessoas são muito viciadas no telemóvel. E agora também os mais velhos, assim como as crianças. Mas, o TikTok, por mais que seja uma plataforma de entretenimento, tem levado os jovens adultos a ler mais, e isso é fantástico, um aspeto a valorizar.
Voltando ao termo feminismo, é um conceito que assusta muitos homens, sobretudo porque acreditam que não é uma questão que os afete diretamente. Como é que achas que podemos desconstruir esta visão estereotipada? Como podemos mostrar que as questões femininas, que foram abordadas ao longo da história, são relevantes para toda a sociedade?
Nem todas as mulheres abordam estas questões, mas, cada vez mais, as gerações mais jovens sentem a necessidade de aprofundar o conhecimento histórico e de desenvolver um pensamento crítico. E isso está diretamente ligado ao hábito de leitura.
No sistema em que vivemos, patriarcal, não há interesse dos homens, em cargos de chefia, para que a palavra feminismo seja desconstruída. Os homens fizeram uma campanha massiva contra o feminismo, com um discurso que o deturpa. Já conversei com mulheres que me dizem que não gostam de feministas porque estas estão sempre zangadas. Mas, a verdade é que estar zangado é o mínimo quando temos de continuar a lutar por direitos que deviam estar garantidos. Por exemplo, ainda temos de protestar para que o direito ao aborto seja efetivo. Continuamos a lutar pelas mesmas coisas.
No sistema em que vivemos, patriarcal, não há interesse dos homens, em cargos de chefia, para que a palavra feminismo seja desconstruída.
Concordas que parece que vivemos um retrocesso em Portugal neste domínio?
Sim, apesar de o aborto estar garantido por lei, muitas mulheres ainda enfrentam dificuldades para aceder a este. Nos Açores, por exemplo, algumas mulheres têm de viajar para o continente, e a objeção de consciência dos médicos torna tudo ainda mais complicado. É um direito garantido sem garantias reais.
Então, a luta não é contra os homens, mas sim contra o sistema…
Exatamente. E é importante perceber que os homens também são vítimas deste sistema. O patriarcado impõe-lhes um modelo de masculinidade tóxica, onde não podem demonstrar emoções ou partilhar tarefas domésticas sem serem ridicularizados. A solução passa por educação e debate.
Essa educação deve começar na infância?
Sim, as crianças reproduzem o que veem em casa. Se não impusermos estereótipos desde cedo, já teremos um grande avanço.
Tens alguma autora ou obra que consideres revolucionária para a literatura feminista?
A escritora francesa Simone de Beauvoir foi fundamental com o livro O Segundo Sexo. Apesar de não abordar a interseccionalidade e a raça, trouxe uma reflexão essencial: a mulher é uma construção social, não uma questão biológica.
E quais os temas que deviam ser mais explorados hoje?
O feminismo decolonial e interseccional são cruciais. Autoras como a norte-americana Judith Butler também são essenciais para compreender a construção social do género.
Muitas pessoas vêm de propósito à livraria, porque não estamos numa zona de grande passagem.
Na tua livraria, que tipo de comunidade tentas construir?
Uma comunidade ativa, que apoia as iniciativas da livraria e opta por comprar aqui em vez de em grandes plataformas como a Amazon. Pessoas que têm um forte hábito de leitura e partilham esse gosto com outros.
Há alguma história especial de um visitante que te tenha marcado?
Muitas pessoas vêm de propósito à livraria, porque não estamos numa zona de grande passagem. Há pessoas que me trazem livros de viagem, que partilham experiências e têm um carinho especial pelo espaço.
E quais são os livros mais vendidos?
Tudo do Amor, de Bell Hooks, é o mais procurado. É um livro sobre amor em várias formas: romântico, amizade, trabalho, objetivos de vida. Também vendemos muito Onde é que Elas Andam?, o primeiro livro da Greta Editora, com uma seleção de textos produzidos por pessoas e mulheres lésbicas
Para terminar, quais são os teus projetos futuros para a livraria?
O principal é manter a livraria aberta, pois janeiro e fevereiro foram meses muito difíceis. Queremos aumentar o acervo e criar projetos ligados à educação. No momento, estamos a organizar um segundo livro, desta vez com mulheres indígenas, para continuar a dar visibilidade a diferentes vozes femininas.
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