Num universo onde a morte é rotina e o corpo humano conta histórias que poucos sabem deslindar, Philippe Boxho emerge como uma figura intrigante. Médico-legista há mais de três décadas, o belga abre-nos as portas do seu mundo no livro Os Mortos têm a Palavra (edição Arena), uma obra que é, simultaneamente, autobiografia, divulgação científica e um mergulho direto no universo do true crime.

Numa escrita pontuada de refinado humor negro — aquele que só a convivência diária com a finitude permite — Boxho guia o leitor pelos meandros da medicina legal. São histórias reais, casos vividos na primeira pessoa, que desafiam o senso comum e, muitas vezes, parecem saídas de um filme de suspense... ou de comédia absurda.

Entre cadáveres que afinal ainda respiram, suicídios falhados com requintes de surrealismo e vítimas que continuam a transpirar mesmo depois de mortas, o autor oferece-nos um retrato cru da sua profissão. O caso do homem que precisou de disparar contra si 14 vezes para finalmente morrer ou o da mulher catatónica colocada num caixão como se estivesse morta são apenas algumas das histórias que nos oferece este livro.

Philippe Boxho não é apenas um perito em cadáveres. Para além de dirigir o Instituto de Medicina Legal da Universidade de Liège e de lecionar Criminologia e Medicina Legal, é uma presença habitual na televisão belga. O seu trabalho clínico e académico valeu-lhe o reconhecimento da Academia Real Belga de Medicina e um lugar no Conselho Nacional da Ordem dos Médicos.

“Quando se trata de morrer, de matar, de se suicidar ou de fazer desaparecer um corpo, a realidade é suficiente, desde que se dê asas à imaginação”, escreve o autor. Acrescenta a sinopse à obra: “As histórias reunidas neste livro são todas verdadeiras, nada é inventado. Aliás, nem sequer seria necessário, já que, quando se trata de morrer, de matar, de se suicidar ou de fazer desaparecer um corpo, a realidade é suficiente, desde que se dê asas à imaginação”.

Do livro, publicamos o excerto abaixo:

Morto-Vivo

“Estou, Doutor? Gostava que fosse ver um morto, não há nada de suspeito, mas prefiro que lá vá para termos a certeza.” Era a época em que — pelo menos, na região de Liège — o médico-legista era enviado para examinar todas as pessoas que faleciam devido a morte violenta, ou seja, quase todos os homicídios e suicídios, mas também todas as pessoas que morriam sozinhas no seu domicílio. Este sistema é eficaz, porque permite descobrir homicídios que, de outro modo, poderiam passar despercebidos. Atualmente, o médico-legista apenas é chamado no caso de mortes suspeitas, ou seja, unicamente quando se suspeita da intervenção de terceiros. Com este sistema, já não temos a possibilidade de descobrir um homicídio que pudesse ter passado despercebido, o que significa que há homicídios que nunca são descobertos.

A vantagem, quando somos chamados pelo procurador, é podermos estacionar mesmo em sítios onde é proibido, sem no entanto perturbar a circulação. Regra geral, os polícias ficam contentes por nos ver chegar, pondo fim a uma longa espera que não têm vontade de prolongar inutilmente. É verdade que os nossos prazos são por vezes longos, que a circulação na cidade é densa e que a nossa intervenção não é urgente, como pode acontecer no caso de uma ambulância. Há alguns anos, os médicos-legistas pediram autorização para poder usar uma luz rotativa azul e uma sirene, autorização essa que lhes foi recusada pelo Ministério dos Transportes, alegando que o exame de um morto nunca era uma urgência. É certamente verdade, mas contribui para aumentar ainda mais o tempo que demoramos a intervir.

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Quando chego à rua onde se encontra o defunto, nunca procuro o número da casa, mas antes o automóvel da polícia. Em geral, está estacionado mesmo em frente. Nesse dia, estaciono diante de um edifício com uma dezena de pisos. À chegada, vejo um polícia um bocado stressado, com um aspeto muito enervado, que me diz: “Suba depressa, ele está vivo.”

Nesse momento, tenho uma reação cheia de inteligência e de bom senso que pode ser resumida numa só palavra: “Como?”

“Ele está vivo, estou à espera da ambulância, que não deve tardar a chegar, suba depressa.”

Para ser mais rápido, vou pelas escadas e, quando chego ao primeiro piso, dou-me conta de que não sei a que piso me devo dirigir. Mas não importa, tenho a certeza de que, assim que vir uma porta aberta, estarei no sítio certo.

Efetivamente, é no segundo piso, num apartamento em que um homem está deitado no chão, rodeado de dois polícias. Cumprimento toda a gente e pergunto ao homem que está deitado no chão, a quem vamos chamar Bernard, o que faz ali deitado. Explica-me que caiu e que não conseguiu levantar-se. Começo a conversar com Bernard, tentando compreender porque é que caiu. Pergunto-lhe se tem dores em algum sítio, há quanto tempo ali está e se costuma cair daquela maneira com frequência, e o Bernard explica-me que não tem dores nenhumas, que é a primeira vez que cai depois de ter colocado uma prótese total da anca, mas que não sabe há quanto tempo está ali caído. Deduzo que tenha feito uma luxação da prótese da anca, o que teve o efeito de o fazer desequilibrar-se e cair.

Piso a correspondência que está espalhada pelo chão e que mostra que Bernard não se levanta há dois dias, e, quando passo o olhar pela divisão, não posso deixar de reparar que há outros “cadáveres” espalhados pelo chão por toda a casa, que indicam que o homem é um fervoroso adepto do consumo de uma célebre marca de cerveja barata.

Enquanto faço estas constatações, chegam os serviços de emergência, que ficam espantados por me ver ali. É verdade que, geralmente, chegam antes de mim. Informo-os das minhas constatações e explico-lhes que Bernard deve estar ali, no máximo, há dois dias, facto que é importante, dado que se deve considerar que possa estar em hipotermia, ou seja, que certamente perdeu temperatura ao estar deitado num chão de tijoleira frio, e que, além disso, corre o risco de desenvolver uma síndrome de esmagamento. Esta é uma patologia que ocorre quando os tecidos cutâneos, em particular, não recebem oxigénio durante muito tempo porque o sangue já não circula. É o que acontece quando, como Bernard, se fica deitado no chão na mesma posição durante várias horas.

Os serviços de emergência levam Bernard e a minha missão termina ainda antes de ter sequer começado. Quanto à nossa pequena história, Bernard viverá ainda muitos anos. Depois de ser levado pelos serviços de emergência, peço aos polícias que me expliquem o que aconteceu. Foram chamados por causa de “uma pessoa que não respondia ao chamamento”, terminologia clássica para dizer que a ausência de resposta de uma pessoa nos inquieta, sobretudo quando se trata de uma pessoa que vive sozinha, como é o caso de Bernard. Aquando da sua intervenção, os polícias arrombaram a porta e descobriram Bernard inanimado. Chamaram-no e Bernard não reagiu. Além disso, constataram a presença de larvas de insetos perto do corpo, o que, para eles, era um sinal de que a putrefação já tinha começado, coisa que é uma observação perfeitamente lógica.

Nesse momento, avisaram o procurador-adjunto, que solicitou a minha presença e me enviou para o local. Enquanto esperavam pela minha chegada, tentaram identificar formalmente Bernard, o que é indispensável. Para isso, procuraram os seus documentos de identificação, que, infelizmente, não estavam à vista na divisão, e, como Bernard estava vestido com um fato com casaco, supuseram, muito naturalmente, que a carteira devia estar no bolso interior, como acontece com todas as pessoas que usam casaco. Dado que Bernard estava deitado de barriga para baixo, um dos dois polícias, o mais intrépido, colocou a mão entre o chão e o corpo de Bernard. Deslizou a mão para o bolso interior do casaco, onde encontrou a carteira, agarrando-a e puxando-a para fora. Foi nesse momento que o “morto” lhe agarrou no braço. Imagine a surpresa e o medo do polícia! Podia bem ter tido um enfarte, se tivesse um coração sensível. E, no entanto, o raciocínio dos polícias estava correto, havia larvas de moscas presentes, mas, como Bernard não estava morto, não entrara em putrefação.

Nesse caso, como explicar a presença das larvas? Com efeito, existem duas outras situações principais em que pode haver a presença de larvas de moscas. Mas comecemos pelo princípio. Os insetos, e nomeadamente, as moscas, podem ser atraídos pelo odor libertado pelo cadáver. Em cada fase da putrefação, há um odor diferente e diferentes insetos que infestam o cadáver. Chamamos-lhes “necrófagos” ou “necrófilos”, dependendo se aparecem para se alimentar do cadáver ou para comer os insetos necrófagos.

No seu conjunto, formam a fauna entomológica ou fauna de insetos do cadáver; a disciplina que os estuda chama-se entomologia médico-legal ou entomologia forense. Estes insetos aparecem no cadáver logo nas primeiras horas da morte, o que significa que, mesmo que nós não os sintamos, o cadáver emite muito rapidamente odores que atraem os insetos. Os primeiros insetos a chegar ao corpo, como sabe, são as moscas, verdes, azuis ou pretas. Têm nomes científicos variados, como Musca domestica, para a mosca preta, Lucilia sericata, para a mosca verde, Calliphora vomitoria, muito bem nomeada, para a mosca azul, e Calliphora vicina, para a mosca azul da carne. Por vezes, vêm de longe, percorrendo dezenas de quilómetros, atraídas por um odor que escapa por uma janela entreaberta. Independentemente da repugnância que nos possam provocar, as moscas permitem datar o momento da morte, por vezes com uma precisão de ourives, como veremos num outro capítulo.

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As primeiras moscas são atraídas pela degradação amoniacal que afeta os tecidos. Bernard tinha-se urinado, e as moscas, atraídas pelo odor, vieram pôr os seus ovos sobre ele. Foi isso que levou os polícias a pensar que Bernard estava morto e já em vias de putrefação.

As moscas têm mais de uma utilidade: se algumas são comestíveis e muito ricas em proteínas, outras são excelentes para limpar ferimentos. As suas larvas atacam apenas os tecidos mortos, necrosados e consomem-nos. Desta maneira, limpam o ferimento quando este está infetado.

Foi isso que pude constatar num belo dia de verão. Fui chamado para o caso muito particular de um senhor que vivia com a mulher, que tinha 82 anos, e morrera na sua cama. Todas as noites, o senhor juntava-se à mulher e dormia com ela. Quando os polícias a descobriram, pensaram que estava morta, tal como o médico que chamaram para confirmar a morte. Pela parte que me toca, fui chamado pelo magistrado devido às circunstâncias muito particulares deste caso. No meu exame, apercebi-me rapidamente de que a senhora não estava morta, porque não apresentava nenhum dos sinais habituais da morte. Consequentemente, chamei os serviços de emergência, que não tardaram a chegar ao local. Avaliámos a situação em conjunto e constatámos que, se movimentássemos a senhora, esta corria o risco de morrer. O seu nível de consciência era muito baixo, estava completamente desidratada, sentia dor e fazia esgares assim que lhe tocávamos.

As moscas vieram pôr os seus ovos, que se tornaram larvas, nos sítios húmidos, ou seja, nos sítios onde a pele está em contacto com os lençóis, os sítios onde a transpiração se espalha, mas também nos sítios onde se espalhou a urina, porque esta senhora, desprovida de cuidados e de capacidade de sair da cama, urinou sobre si mesma. Aliás, foi a presença das larvas que convenceu tanto a polícia quanto o médico de que a senhora tinha falecido. É difícil dizer há quanto tempo durava esta situação, mas, tendo em conta o tamanho das larvas, a senhora devia estar ali há, pelo menos, uma semana.

Senhor Bernard, o caso do morto-vivo belga. Quando a morte “fala” através de um médico-legista
Senhor Bernard, o caso do morto-vivo belga. Quando a morte “fala” através de um médico-legista créditos: Arena

Ao limpar as escaras que se formaram na sequência da maceração da pele das costas (uma carência de oxigénio das células cutâneas que causa a sua necrose), provocada pelo atrito dos tecidos cutâneos, porque esta senhora já não se mexia, acrescida da presença de líquido, observamos que a necrose dos tecidos cutâneos se desenvolveu, contribuindo para a felicidade das larvas que com ela se deleitam. Levanto a senhora para ver em que estado tem as costas e fico particularmente surpreendido ao constatar que a necrose avançou tanto que, em certos sítios, a pele desapareceu completamente e deixa à vista a caixa torácica.

Quando a levanto com delicadeza, a senhora solta gemidos de dor muito compreensíveis, que provam que ainda tem um certo nível de consciência. Os serviços de emergência sedam-na e levam-na para o hospital, onde acabaria por morrer pouco depois, sem nunca ter recuperado a consciência.

Quanto ao marido, será colocado numa casa de repouso, onde irá recuperar as forças, mas não terá memória do período da morte da mulher porque ele próprio estava desidratado, o que provocou um estado próximo da demência.

“Estou, Doutor? Pode vir a… para examinar uma senhora que morreu, vai ver que é um caso especial.” O procurador-adjunto está com pressa e visivelmente atarefado, porque não se deu ao trabalho de me explicar o que é que o caso tem de tão especial. Já no local, descubro que os panos mortuários que ornamentam as fachadas dos defuntos já foram colocados pela agência funerária, o que me espanta. Começo a dizer a mim mesmo que, naquela região, são muito rápidos, quando um polícia vem ter comigo e me explica o que aconteceu. É uma história inimaginável, a tal ponto que não teria acreditado nela se não a tivesse vivido.

Lucette faleceu de morte natural, aos 85 anos, “uma boa morte”, dizem-me, o que me dá sempre vontade de rir, porque não acho que existam boas mortes. O médico declarou o óbito e preencheu a certidão. A família chamou a agência funerária, que preparou o corpo, o lavou, o vestiu e o colocou num caixão, que foi posto em cima de uma mesa de apresentação na casa de Lucette. As visitas começaram no próprio dia e Jeannine, vizinha e amiga de sempre, desde a escola primária, veio prestar a última homenagem à amiga falecida. Quando Jeannine está diante do caixão, subitamente, Lucette levanta-se e diz: “Oh, Jeannine, que simpático teres vindo ver-me!” Jeannine cai ao chão, vítima de um ataque cardíaco.

Lucette teve uma longa crise de catalepsia que foi confundida com uma morte verdadeira, tanto pelo médico que a tratava quanto pelos trabalhadores da agência funerária.

Estas histórias fazem lembrar o medo que algumas pessoas têm de ser enterradas vivas, medo esse que teve o seu apogeu em Inglaterra na época vitoriana (1837-1901). Para atenuar esse temor e por interesse comercial, alguns fabricantes de caixões deram provas de imaginação, criando caixões que podiam ser abertos do interior ou que estavam equipados com um sino no exterior que podia ser acionado a partir do interior puxando uma corda. Esses cemitérios deviam ser engraçados quando o vento fazia soar pequenos sinos por todo o lado.

Há muitas histórias a circular sobre este tema. Quem nunca ouviu falar de, durante uma exumação, se ter constatado que o cabelo e a barba do morto tinham crescido, que o morto se tinha virado no caixão, que tinha arranhado o interior do caixão com as unhas, etc.? Nem todas as histórias são falsas.

Com efeito, aquando da morte, nem todas as células morrem ao mesmo tempo. Deste modo, as células cutâneas que produzem a barba e o cabelo continuam ativas, o que faz com que estes ainda cresçam uns milímetros. Embora este crescimento seja invisível no caso do cabelo, exceto se a pessoa rapasse a cabeça, é perfeitamente percetível no caso da barba de um homem que se barbeasse.

O morto virar-se no caixão é surpreendente, e não há dúvida de que é uma deturpação exagerada do facto de, frequentemente, a posição do corpo já não ser a mesma no momento do enterro, nomeadamente por causa do transporte. A título de exemplo, quando eu era novo, servia missa na paróquia de Cointe. Podia acontecer, quando o enterro se realizava na cripta, que a agência funerária tivesse de inclinar o caixão para o lado para conseguir passar pelas portas demasiado estreitas.

Quanto à parede do caixão arranhada, nunca vi tal coisa; creio bem que pode ser apenas uma lenda urbana. Por último, tranquilize-se: uma pessoa enterrada viva não sobreviveria mais de 15 minutos. O nosso organismo precisa de oxigénio atmosférico (O2) para sobreviver. Em espaços fechados, como um caixão enterrado debaixo de, pelo menos, um metro e meio de terra, o ar não pode circular e renovar-se.

A morte ocorre por carbonarcose, ou seja, o nível de dióxido de carbono (CO2) que o próprio organismo fornece através do consumo de oxigénio começa por adormecer a pessoa, antes de a morte ocorrer por paragem cardíaca. Como é evidente, o tempo de sair do cemitério e de cumprimentar aqueles que vieram prestar a última homenagem e o tempo de sobrevivência foram ultrapassados.

Estamos na Irlanda, num pequeno cemitério local, no dia 12 de outubro de 2019. Faz frio, mas está sol. O caixão de Shay está no fundo da cova quando a sua voz se faz ouvir: “Let me out!” ("Deixem-me sair!". Depois de um momento de perplexidade, seguem-se algumas gargalhadas: Shay, que sempre foi um bon vivant, fez a sua última piada, tendo-se gravado antes de morrer.

A cena foi filmada e poderá encontrá-la facilmente na Internet se pesquisar o nome Shay Bradley. É preciso sorrir à morte antes que ela nos sorria a nós. Shay sorriu à morte mesmo depois de ela o levar, que belo espetáculo!