Na década de 1930, há já quase um século, quando frequentava o equivalente à atual escola primária, a professora da ex-bailarina, coreógrafa e atriz inglesa Gillian Lynne escreveu aos seus pais a dizer que suspeitava que a sua filha tinha um défice de aprendizagem. A criança tinha dificuldade em concentrar-se, perturbava os colegas, não fazia os trabalhos de casa e era irrequieta. Então, a sua mãe levou-a a um especialista para confirmar o diagnóstico da escola.
Terminada a consulta, o médico pediu à menina que esperasse no escritório enquanto falava com a sua mãe em privado. Deixou o rádio ligado e fechou a porta. Pediu à mãe que olhasse atentamente para a filha. Através de uma janela, observaram como Gillian Lynne começou logo a dançar ao ritmo da música. O especialista disse à mãe da pequena que ela não estava doente. Era uma bailarina! E recomendou que a inscrevesse numa escola de dança.
"Entrámos numa sala que estava cheia de pessoas como eu. Pessoas que precisavam de se mover para pensar", contou Gillian Lynne, que morreu a 1 de julho de 2018 aos 92 anos, numa entrevista, em 2006, pouco depois de fazer 80 anos. Três anos antes de morrer, aos 89 anos, ainda trabalhava com Andrew Lloyd Weber, sendo responsável pelas coreografias de alguns dos musicais mais vistos em todo o mundo, como "Cats" e "O fantasma da ópera".
"A criatividade é algo que combina genes, com ambiente e relações com os outros. Isso faz com que cada pessoa tenha uma configuração única de neurónios e conexões entre os mesmos", explicou, em declarações à edição impressa da revista feminina Saber Viver, Clementina Almeida, psicóloga e diretora do projeto ForBabies, uma clínica especializada em bebés que presta um conjunto de serviços que promovem o desenvolvimento físico e mental dos bebés.
E a criatividade é uma capacidade que pode ser aplicada em diversas áreas, não estando restringida às artes, além de que, segundo a psicóloga,"proporciona um leque de benefícios intelectuais, emocionais e até mesmo físicos". Contudo, não devemos pensar que, por ser inata, mantemos o mesmo grau de criatividade a vida toda. À medida que os anos vão passando, muita coisa vai mudando. As rotinas tornam as pessoas menos criativas. As crianças não são exceção.
Como promover e estimular a criatividade
De pequenino é que se puxa pelo menino ou pela menina, consoante o caso. "Se a pessoa passar a infância sem fazer algo, perde-se", ressalva Sara Antunes, arquiteta e artista plástica que já deu aulas ao primeiro e segundo ciclo. Sir Ken Robinson, autor que em tempos entrevistou Gillian Lynne, diz que fomos educados para irmos perdendo a criatividade. Clementina Almeida, à semelhança de outros especialistas, nacionais e internacionais, concorda.
"Há estudos que provam que a criatividade das crianças tem vindo a diminuir nas últimas décadas", sublinha. As muitas horas passadas em frente aos ecrãs das televisões, dos tablets e dos computadores, a ver conteúdos e a jogar. "As crianças têm vindo a tornar-se menos expressivas emocionalmente, menos faladoras, menos engraçadas, com menos imaginação, perdendo a capacidade para ver a realidade de diferentes ângulos", acrescenta ainda.
O medo de errar
Tradicionalmente, as crianças arriscam, experimentam, porque não têm receio que lhes apontem o dedo por uma falha ou um erro qualquer. Precisamente aquilo que impede os adultos de tentarem algo novo. Porém, Sir Ken Robinson sublinha que "se não estivermos preparados para errar, nunca conseguiremos nada de original". Isto é um problema porque, a criatividade é nada mais do que o "processo de gerar ideias originais e com valor", diz.
Um processo "que surge através da interação de diferentes formas de ver as coisas", como faz questão de sublinhar. Logo, implica que o indivíduo se exponha e que revele as suas ideias, nem sempre criativas. Já dizia Pablo Picasso, artista espanhol que viveu no século XX e que foi pintor, escultor, ceramista, desenhador de palcos e poeta, que "todas as crianças nascem artistas, a dificuldade está em continuar a sê-lo quando crescem".
A relativa importância das matérias
A arquiteta Sara Antunes afirma que, em Portugal, vigora, ainda atualmente, uma hierarquização das disciplinas curriculares. "A parte mais criativa, que tem a ver com as expressões artísticas, é pouco valorizada", considera a especialista, que faz ainda uma outra crítica. "Acho que é um ensino muito limitativo em termos criativos. As escolas deviam dar menos coisas para decorar", refere ainda. Só pode haver criatividade quando houver liberdade.
Clementina Almeida acrescenta que nem os pais nem a escola deviam distinguir entre "disciplinas de primeira como o português e a matemática e de segunda como a música e a expressão plástica", como muitas vezes sucede. Essa tendência irá continuar se não mudarmos o sistema educativo e a mentalidade vigente, de tal modo enraizada que também afeta a forma como vemos as artes. Há artes que nem sequer chegam a ser ensinadas.
"A pintura e a música têm, normalmente, mais importância nas escolas do que o teatro e a dança. Penso que a matemática é muito importante, mas a dança também o é", comenta também Sir Ken Robinson. Através da dança as crianças aprendem a expressar os seus sentimentos e divertem-se. Um relatório da Unicef, publicado em meados da década de 2010, também defende que "a família deve estimular a criança a criar e valorizar o que ela faz".
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